
2015
Vão atrás da guia, uma jovem pálida e delgada, que traz um vestido de linho simples em verde-musgo e tem uma tatuagem a contornar-lhe o braço direito, um desenho de linhas finas, espetadas, que parecem arame farpado. Cushla desloca-se para a extremidade do grupo, distanciando-se dos turistas franceses e italianos dos impermeáveis de marca; gente da idade dela – que continua a surpreendê-la. Distanciando-se do sujeito que tem à sua esquerda, um homem pelos seus cinquenta anos, cabelo cinza-aço penteado para trás com gel, óculos pequeninos e casaco de lã macia.
A guia posiciona-se ligeiramente ao lado da peça que quer mostrar a seguir, a cerca de meio metro de Cushla – que, a esta distância, consegue distinguir o desenho que a rapariga tem no braço. É um tojo, cachos de talos espinhosos e flores douradas. Cushla fica a gostar dela por isto: por ter preferido o arbusto que sufoca as colinas desta terra a uma tatuagem de rosas, borboletas ou estrelas.
A peça é uma escultura feita com resina, tecido e fibra de vidro. Uma figura de gesso, branca e tumular, sobre um plinto, a expressão do rosto envolta em mistério, feições indistintas. O corpo é estranhamente assexuado, embora se trate de uma figura masculina; há largura no tronco, volume no peito. Da cintura para cima, a figura parece pacífica, a cabeça adormecida repousando junto à curva do braço. Mas há qualquer coisa estranha na postura: os membros têm uma disposição bizarra, não foram arrumados.
A rapariga começa a falar. Esta obra é dos anos 1970, explica. A artista sentiu-se levada a fazê-la na sequência do assassínio de um amigo. E se é verdade que a composição quase clássica é uma representação reconhecível da morte, a desordem da configuração, sendo chocante, aponta para a violência do momento em que ocorreu o homicídio, e para o caos das horas que se seguiram. A escultora apresenta-nos o seu amigo como um ser humano comum, mas o porte algo desalinhado dá-lhe uma configuração mais pessoal.
Os outros elementos do grupo avançam para a peça seguinte, uma estrutura tipo Tardis feita com seis portas provenientes da Prisão de Armagh. Cushla deixa-se ficar para trás e aproxima-se da escultura. A rapariga com o tojo tatuado no braço está enganada. A artista não queria esculpir o ser humano comum. A obra é detalhada, íntima, rigorosa até, como se tivesse sido feita a partir de um molde do corpo sem vida. A precisão de alguma gordura acumulada no ventre. O ombro direito ligeiramente soerguido. Uma textura algo pastosa em volta do maxilar. Cushla olha-o nos olhos, receosa de neles ver medo ou dor; mas ele está, muito simplesmente, como era a dormir.
Sente tocarem-lhe no braço. É o homem dos óculos pequeninos.
Menina Lavery, diz ele, lembra-se de mim?
DIZER NÃO EM IRLANDÊS
1
Cushla enrolou a carteira no casaco e meteu-os no espaço entre o frigorífico das cervejas e a caixa registadora. O irmão, Eamonn, que estava debruçado sobre o balcão a verificar uma lista de compras, ergueu a cabeça para ela, estreitou os olhos e fez um movimento com o queixo na direção do espelho que corria toda a largura do bar. Cushla inclinou-se para diante, a conferir a sua imagem. O padre Slattery tinha-lhe feito uma cruz enorme na testa, dois dedos de largura por três de altura. Cushla tentou limpá-la com o dedo, mas o máximo que conseguiu foi libertar o odor resinoso a pinheiro do unguento sagrado com que as cinzas tinham sido misturadas, transformando a forma crucífera numa mancha que parecia fuligem.
Eamonn passou-lhe um guardanapo humedecido para a mão. Despacha-te com isso, sussurrou-lhe.
A maioria dos clientes do pub não ia receber as cinzas na Quarta-feira de Cinzas, não fazia a via-sacra na Sexta-feira Santa nem ia à missa ao domingo. Uma coisa era beber num bar que era propriedade de um católico, outra coisa muito diferente era a mulher que tirava as imperiais ostentar pinturas de guerra papistas. Cushla esfregou-se até ficar com a pele da testa vermelha, deixando o guardanapo enegrecido e em farrapos. Depois atirou-o para o caixote do lixo.
Eamonn resmoneou qualquer coisa baixinho, mas a única palavra que ela conseguiu perceber foi idiota.
Os clientes habituais ocupavam os lugares ao balcão. Jimmy O’Kane, o ovo solitário que tinha comprado para o jantar a inchar-lhe o bolso do peito. Minty, o vigilante da escola, que consumia uma quantidade tal de Carlsberg Special Brew que o bar tinha recebido um prémio por ser o que mais vendia a marca na Irlanda do Norte, embora Minty fosse o único consumidor da dita. Fidel, de boné de caqui e óculos escuros. Durante o dia, Fidel pesava guloseimas de mentol e rebuçados de cravinho na loja de doces da mãe; à noite, era brigadeiro do ramo local da Associação de Defesa do Ulster. Um mecânico do estaleiro chamado Leslie, que só começava a falar quando já estava bêbedo e que, certa noite, tinha comunicado a Cushla que adoraria dar-lhe banho. E outro homem. Meia-idade, com um uísque na frente. Olhos escuros, um começo de duplo queixo. Vestia fato preto e camisa branca engomada, da qual tinha tirado o colarinho, indumentária que chamava a atenção naquele meio de fatos-macaco e roupa sintética. Tinha o cabelo liso até às orelhas e ondulado na nuca, como se tivesse passado o dia a suar debaixo de um chapéu. Ou de uma peruca.
Cushla trepou a um banco para aumentar o volume da televisão. Quando voltou a descer, o homem do uísque dava palmadinhas no filtro do cigarro com o polegar, como se tivesse acabado de desviar os olhos.
O noticiário começou como começava sempre, com uma montagem de cenas curtas. Tumultos. Um rapaz de seis ou sete anos a trepar pela lateral de um tanque Saracen para tapar com uma pedra as aberturas por onde os soldados apontavam as armas. Uma marcha em Stormont, milhares de pessoas subindo a comprida avenida que ia dar ao Parlamento. Tinham acrescentado uma nova. Um carro isolado, estacionado numa rua deserta. Parecia uma fotografia, até que o carro começava a inchar e explodia, formando uma enorme bola de fumo e fogo, as portas projetando-se no espaço e revoluteando no ar, os vidros das janelas dos edifícios circundantes estilhaçando-se sobre o asfalto como granizo. O segmento acabou como sempre acabava, com uma imagem de Mary Peters a mostrar a medalha olímpica.
Foi há três anos que ela ganhou aquela medalha, fez notar Eamonn.
É a última coisa passada nesta terra de que nos podemos orgulhar, comentou o homem. Tinha uma voz grave, quase áspera, apesar da pronúncia refinada.
Tens razão, Michael, concordou Eamonn.
Como é que o Eamonn sabia o nome dele?
Fidel inclinou a cabeça na direção do pivô. O Barry aparou a barba, informou, enrolando os pelos da sua com o polegar e formando uma ponta afunilada.
O noticiário. Uma estrada rural; um Land Rover da polícia atravessado na estrada, interrompendo o risco branco, duas pernas enroladas num pano a saírem de uma sebe de espinheiro meio ratada. Homens de balaclava sentados a uma mesa de fórmica, as caras de lã encostadas a uma sequência de microfones, esporadicamente iluminados por flashes de máquinas fotográficas. Um pub sem janelas, fumo aquoso a sibilar na cratera do teto.
A última notícia era uma história com interesse humano. Toda a gente gostava desta parte, porque era quase sempre uma notícia politicamente neutra e por isso aberta ao comentário geral. A estação tinha mandado um repórter para o centro da cidade perguntar aos transeuntes que opinião tinham sobre quem andava a correr nu pelo meio da rua. É ridículo, disse uma mulher de barrete de lã na cabeça, está demasiado frio. Fungadelas de riso por todo o balcão. Um homenzinho besuntado de Brylcreem afirmou que estava disposto a fazê-lo se alguém lhe pagasse bom dinheiro. O homem seguinte bradou «é uma obscenidade» e seguiu caminho. Depois o repórter parou uma rapariga morena, de cabelo comprido e olhos grandes, que vestia um casaco com forro de pele, a gola levantada a emoldurar-lhe a face. Acho que é fantástico, disse ela, é uma coisa diferente. Parecia estar pedrada.
Aquela tem qualquer coisa que pareces tu, Cushla, comentou Minty. Não queres fazer uma corridinha toda nua?
Deixa a minha irmã em paz, seu tarado, interveio Eamonn com um sorrisinho. Em situação normal, ela teria dado uma resposta que os teria calado a todos, mas desta vez teve consciência da presença do homem do uísque simples e das unhas limpas.
Eamonn ordenou a Cushla que fosse recolher os copos vazios e ela começou a percorrer a sala. Na mesa do canto, que estava coberta de canecas de cerveja morta, estavam três homens com o cabelo cortado à tropa. Quando Cushla estendeu a mão para a última caneca, um dos homens pô-la no chão e disse-lhe, com a maçã de Adão a subir e descer no pescoço: Esqueceste-te desta. Cushla debruçou-se para pegar na caneca e o homem pôs-lhe as mãos nas ancas, mesmo acima do rabo. Ela soltou-se e voltou para trás do balcão ao som das gargalhadas dos três homens.
Viste o que aquele soldado me fez? perguntou Cushla a Eamonn, pousando as canecas no lava-louça.
Não, respondeu ele sem olhar para a irmã, e ela percebeu que ele tinha visto.
Apalpou-me, caraças.
E queres que eu faça o quê? replicou ele, só que não era uma pergunta. Eamonn não podia fazer nada.
Eles viviam numa cidade onde havia um posto militar, embora só tivessem começado a ter noção disso em 1969, quando as tropas tinham sido enviadas para o local; não que os soldados patrulhassem as ruas. Os Lavery conheciam-nos do outro lado do balcão, vestidos à paisana. Os primeiros regimentos eram gente boa. Depois deles, vieram os paras, que gostavam de deixar memórias: cigarros apagados na carpete, azulejos arrancados da parede da casa de banho dos homens e caídos no chão em bocados. No dia a seguir ao Bloody Sunday, um grupo deles tinha ido ao bar, e nem Fidel e os rapazes se haviam sentido à vontade na companhia destes homens. A certa altura, apenas estavam lá Gina, Cushla e os militares; o pai já estava demasiado doente e não conseguia ir trabalhar. Gina, sentada num banco, com o copo debaixo dos medidores de bebidas, observava-os. E conseguiu ignorá-los até que um deles, instigado pelos outros, mordeu o copo da cerveja e cuspiu cacos e sangue para o cinzeiro. Cushla viu a mãe atravessar a sala como se estivesse a assistir a um filme de terror. Qual foi a prisão inglesa de onde vocês foram vomitados? perguntou Gina, antes de ligar para o quartel. Tinha ligado tantas vezes a queixar-se que já sabia o nome do comandante. E ordenou-lhe, no tom de voz que usava ao telefone, que mandasse buscar os seus homens, porque não os queria lá mais. A polícia militar foi buscá-los, mas a presença de soldados no pub ainda incomodava Cushla. Gina tinha mostrado o seu jogo.
Quando conseguiu voltar a levantar a cabeça, o homem atirou-lhe um sorriso. Tinha uns olhos doces. Ele tinha ouvido a conversa e Cushla sentiu-se envergonhada, mais por Eamonn do que por si própria, e começou a limpar as prateleiras das cervejas engarrafadas.
Bela paisagem, disse uma voz inglesa. Cushla olhou de relance para o espelho. O homem que a tinha apalpado estava ao balcão com uma nota na mão. Atrás dela, a torneira da cerveja, da qual Eamonn servia o homem, engasgou-se.
Está a fingir que não ouve, comentou ele.
Talvez porque tu estás a humilhá-la, interveio Michael. Cushla deu por si a voltar-se. Ele tinha virado o banco e olhava o soldado de frente, com o uísque na palma da mão esquerda.
Vá lá, pá, estou só na galhofa, replicou o soldado, mas num tom tão agudo que parecia uma criança birrenta.
O humor funciona melhor quando é mútuo, disse Michael.
O militar inclinou-se para diante, fez uma pausa, e a seguir recuou o pescoço, como se tivesse pensado duas vezes. Depois pegou de modo desajeitado nos três copos e voltou para a mesa, salpicando o chão de cerveja. Eamonn fixava implacavelmente a televisão, mas Cushla percebeu, pela posição do queixo, que o irmão se sentia diminuído. Fidel e os outros também estavam com ar de que nada se tinha passado. Quem era aquele homem?
Cushla continuou a limpar e a arrumar, tentando não olhar para ele. A porta bateu com força. A mesa dos militares ficou deserta, uns dedos de cerveja abandonados no fundo dos copos.
Os clientes habituais começaram a ir-se embora. Devias pôr-te a andar durante uma hora, disse Cushla a Eamonn. Vai ver as miúdas antes de elas se deitarem.
Não te quero deixar aqui sozinha.
Eu agora fico bem.
Então OK. Se houver algum problema, telefona, disse ele, e desapareceu.
Michael acendeu um cigarro e deixou sair o fumo pelo nariz. Serve-me aí outro, por favor, pediu, fazendo deslizar o copo na direção dela.
Cushla olhou de relance para o espelho enquanto lhe servia a bebida. O homem estava a observá-la. Encorajada pelo facto de estar de costas para ele, não desviou o olhar.
Cushla pôs o uísque em cima do balcão. Cushla, não é? Eu sou o Michael. Não queres também um? perguntou, pondo os dedos em redor do copo. O bar tornava-se mais agradável estando lá ele. As velhas lamparinas fixadas nas paredes projetavam círculos de luz acolhedora sobre as mesas de teca, e o tweed verde-jade que forrava as banquetas e os bancos adquiria um toque de opulência esquálida.
Obrigada, mas amanhã de manhã tenho aulas, respondeu ela.
Onde é que dás aulas? perguntou ele. Era uma daquelas questões que as pessoas faziam quando queriam saber de que lado é que a pessoa estava. Como te chamas? Que apelido tens? Que escola frequentaste? Onde vives?
Dou aulas a crianças do terceiro ano na escola de St. Dallan.
Isso quer dizer que os miúdos têm quê, sete, oito anos? É uma bela idade.
Pois é, concordou ela. Nos primeiros dois anos, estive com crianças do primeiro ano. Passava a maior parte do tempo a levá-los à casa de banho.
E levaste os miúdos a receberem as cinzas esta manhã, comentou ele.
Devia tê-la visto limpar a testa. A irritação de Eamonn para com ela. Sim, respondeu.
Eu vivi em Dublin quando era novo, contou ele. É uma cidade de católicos duma ponta à outra. O comentário foi feito com ligeireza, mas o homem observava-a com uma intensidade tal que foi um alívio quando desviou os olhos dos dela e bebeu um gole do uísque.
Eu também fui receber as cinzas hoje de manhã, informou Jimmy O’Kane num sussurro audível.
Mas limpaste-as melhor do que eu, fez notar Cushla.
Umas gotinhas de Lifebuoy num pano da louça, explicou o velhote.
Cushla olhou de relance para Michael, que tinha pequenas rugas de riso em volta dos olhos.
Ela fez uma chávena de chá e virou o banco, para ficar de frente para a televisão. Tinha começado a peça de teatro. Reclinada num canapé, Helen Mirren afagava um gato branco, enquanto o marido se atirava a Malcolm McDowell por ter dormido com ela. Cushla não percebia como é que ela se tinha interessado por McDowell, que era um magricela de expressão cruel e vestia uma camisolinha azul toda amaricada, quando era casada com Alan Bates, um homem bem constituído e de expressão melancólica. Helen Mirren levantou-se e deu uma volta pela sala. Trazia um vestido camiseiro branco. Era uma mulher com classe. Cushla envergava uma blusa de morim cor-de-rosa e calças de ganga com um remendo cosido no bolso de trás a dizer: «Carregue no meu botão do pânico».
Jimmy terminou a cerveja, o lábio inferior a trabalhar o rebordo do copo para não perder nem uma gota, e, dando uma palmadinha suave no bolso do peito, encaminhou-se lentamente para a porta.
Michael pediu mais uma bebida, e comentou que aquela peça tinha sido a Peça do Ano em 1960. Na opinião dele, Mirren estava a ser mal dirigida e McDowell ficara marcado pela sua atuação em Laranja Mecânica. Cushla comentou que não tinha conseguido acabar o livro e muito menos ver o filme. Oh, mas o filme é lindo, replicou ele, até a violência é refinada. E acrescentou que conhecia o homem de Armagh que fazia de aleijado. Ele próprio escrevia alguma coisa. Uns quantos documentários, peças curtas. Os advogados são atores frustrados, afirmou. Falava como quem está habituado a que o oiçam.
Ao voltar, Eamonn beliscou Cushla nas faces como se ela fosse uma criança pequena. Obrigado pelo babysitting, disse a Michael.
Eu tenho vinte e quatro anos, protestou Cushla. Eamonn olhou-a com a habitual combinação de desdém e indulgência; Michael, com uma expressão que ela não conseguiu perceber.
Ele saiu ao mesmo tempo que ela, segurando-lhe a porta para Cushla avançar. Ao passar, o braço dela roçou o dele. Era um braço sólido, substancial.
O pub ficava ao fundo de uma pequena transversal, na extremidade da rua principal, vigiado por trás pela torre do relógio, que se erguia nos terrenos do convento em ruínas, e tendo na frente um prédio baixo de apartamentos de renda controlada. Cushla atravessou o parque de estacionamento meio às escuras até ao lugar onde tinha deixado o seu pequeno Renault vermelho, junto ao túnel que passava por baixo da rodovia de duas faixas e ia dar à beira do lago. Ouviam-se vozes, que ecoavam nas paredes de cimento do túnel, cigarros brilhavam no escuro. O cheiro acre das águas, o murmúrio que antecedia o encher da maré, oleosa e lamacenta.
Boa noite, Cushla, disse Michael. Estava ao lado de um enorme carro castanho, estacionado perto da entrada do pub.
Adeusinho, correspondeu ela. Quando acendeu os faróis, ele continuava no mesmo sítio, com um peso nos ombros que o fazia parecer mais velho do que quando estava sentado ao balcão.
A polícia tinha transformado a High Street em Zona de Controlo, de maneira que a rua estava deserta. Quando Cushla ia a chegar ao rio, apareceram três homens na rua, saídos de outro bar. Eram os militares. O que a tinha apalpado avançou aos tropeços para diante do carro dela e Cushla foi obrigada a travar a fundo para não lhe bater. O homem pousou as mãos abertas sobre o capô e espreitou pelo para-brisas; quando viu que era ela, espetou a língua e agitou-a, num gesto obsceno que, sendo ele tão jovem, se tornava ridículo. Cushla sentiu o carro iluminado por trás pelos faróis de outro automóvel e olhou para o retrovisor. Era Michael. Ele ergueu-lhe dois dedos e aguardou, com o motor ligado, que os amigos do rapaz o tirassem dali. Cushla avançou devagar, deixando-os a rir no passeio. Michael seguiu-a até casa e, fazendo um sinal de luzes, seguiu pela estrada na direção da colina.
A luz intensa que provinha da janela saliente do andar térreo da casa dos Lavery era quase indecente, dada a escuridão que dominava as fachadas das outras moradias. Cushla entrou em casa e correu as cortinas de veludo amarelo da sala de estar. As brasas tinham-se afundado na grelha de ferro, formando uma camada de cinza branca, que se transformou em pó quando Cushla esvaziou sobre ela o cinzeiro alto de metal que estivera posicionado ao lado do cadeirão da mãe.
Cushla pôs o guarda-fogo em frente da lareira, apagou as luzes e subiu a escada.
És tu? perguntou a mãe.
Quem é que havia de ser? respondeu Cushla, empurrando a porta do quarto. Gina Lavery estava recostada em três almofadas, um par de cuecas a tapar-lhe os rolos. Ouvia-se o rádio, baixinho. A mãe deixava-o ligado toda a noite, dizia que lhe fazia companhia. De vez em quando, contava à filha, de manhã, que tinha sonhado com George Best, com corridas de iates à volta do mundo, com o programa espacial americano – acabando por verificar, quando vinham entregar o jornal, que tudo aquilo era verdade. Tanta informação absorvida subliminarmente.
Voltaste a deixar as cortinas abertas, disse Cushla.
Quem é que vai desperdiçar uma bala em mim? perguntou Gina. Estava a tentar ser arrogante, mas a voz arrastava-se-lhe ao de leve, por causa do comprimido que tinha tomado para dormir. Tiveram muita gente?
O habitual. Além de três militares.
Lixo.
Mandei o Eamonn a casa um bocadinho.
Não gosto que fiques sozinha ao balcão.
Correu tudo bem. Um homem chamado Michael fez-me companhia. Por volta dos quarenta e cinco anos. Moreno. Supersuper. Diz que é advogado.
Michael Agnew. E tem cinquenta e qualquer coisa, corrigiu Gina.
Parece mais novo, comentou Cushla.
Continua lindo de morrer? perguntou Gina. Era um parte-corações quando era novo. Meu Deus, não o vejo há séculos. Dava-se muito bem com o teu pai.
Eamonn tinha trinta e dois anos e trabalhava no bar desde os quinze. Devia lembrar-se do Michael dessa altura. Onde é que ele vive? perguntou Cushla.
Numa grande moradia na estrada da colina. E tem um apartamento no centro. A mulher não deve ser grande coisa, comentou Gina. E depois fez o que as mulheres da família dela faziam quando tinham pena de alguém: meteu uma bochecha para dentro e disse «socorro» com o outro lado da boca. Como quem diz «Pobre criatura».
Qual é o problema da mulher dele?
Gina levou a mão à boca como quem está a beber de um copo.
Ela é de Dublin, informou, como se isso explicasse tudo.
Ah sim? É católica?
Não, é de uma família protestante chique.
Têm filhos?
Um rapaz. Que deve andar pelos dezassete ou dezoito anos.
Cushla debruçou-se sobre a mãe e deu-lhe um beijo na cara, absorvendo os tristes odores a Je Reviens e a cigarros, a creme de fixação de cabelo e a gin. A mulher de Michael Agnew não era a única que apreciava a bebida.
Já no quarto, Cushla preparou a roupa que ia levar para a escola no dia seguinte: saia direita de pregas, camisola de lã azul, camisa cinzenta. Era uma espécie de uniforme. Nunca tinha pensado muito na roupa que usava atrás do balcão, vestia qualquer coisa que pudesse manchar de lixívia, prendia o cabelo para não lhe cair nos olhos. Até agora.
2
Cushla foi acordada pela tosse da mãe, uma tosse espessa que lhe causava repugnância. Levantou-se e abriu um nadinha as cortinas. A manhã tentava atravessar uma camada de nuvens baixas e cinzentas. Da casa do outro lado da rua, saiu uma figura que se estendeu no chão como se estivesse a preparar-se para fazer flexões. Alistair Patterson, um guarda prisional que se apresentava como funcionário público, espreitava para baixo do carro a ver se alguém lá tinha posto uma bomba. A mulher observava a cena da porta da rua, metida dentro de um roupão azul-turquesa e segurando o cão do casal.
O aquecedor de parede fixado por baixo da janela não tinha conseguido tirar o frio ao quarto e Cushla vestiu-se rapidamente. Já na casa de banho, lavou-se e aplicou um toque ligeiro de maquilhagem, o vapor da sua respiração embaciava o espelho. No andar de baixo, ligou a cafeteira elétrica e meteu uma fatia de pão na torradeira. Avançou em seguida para a porta das traseiras, que abriu e fechou em gestos amplos, tentando expelir os cheiros rançosos a fumo e a comida. Começou a chover, gotas lentas e pesadas tilintando na tampa do caixote do lixo. Pouco depois, o ritmo acelerou tanto que a chuva fazia ricochete nos ladrilhos pretos e brancos. Cushla voltou a fechar a porta e fez o pequeno-almoço para a mãe, levando-lho ao andar de cima num tabuleiro.
Gina estava na posição em que Cushla a tinha deixado na véspera à noite, à qual se somava um cigarro aceso. As cuecas tinham descaído para a testa.
Um dia destes, chego a casa e tu estás feita um torrão crocante, comentou, confiscando o cigarro e apagando-o no cinzeiro de vidro lascado que a mãe tinha em cima da mesa de cabeceira.
Gina endireitou-se com esforço e recebeu o tabuleiro das mãos de Cushla. Depois pegou numa torrada e deu uma dentada no centro, mastigando com a boca contorcida numa expressão de desagrado. Tem pouca manteiga, declarou.
A manteiga faz-te mal, recordou-lhe Cushla.
Está tão seca que mais depressa morro engasgada do que tenho um ataque de coração, disse a mãe, atirando a torrada para cima do prato. E não te passe pela cabeça dar-me margarina. Gina recusava-se a ter enlatados – feijão, carne, beterraba – em casa; e tinha aversão a aperitivos embalados, porque havia trabalhado numa fábrica de picles durante a guerra e, quando ia aos bailes, tinha de usar luvas, para os magalas não verem que ela tinha os dedos manchados de amarelo. O pai de Cushla tolerava estes caprichos, dizendo que a mulher passara fome na infância e, portanto, tinha gosto em ser esquisita na comida.
Cushla voltou ao andar de baixo, agarrou no cesto, que tinha deixado em cima da mesa da entrada, e foi-se embora para a escola. Os Lavery viviam numa fiada de casas de tijolo vermelho de estilo Eduardo VII; as casas do outro lado da rua eram do mesmo período, mas com acabamento em estuque branco. As habitações iam-se tornando mais pequenas e modestas à medida que a rua se ia aproximando do centro, e o troço final era de casas simples, erigidas nos anos 1950. No verão, estas casas tinham bandeiras do Reino Unido a espreitar das janelas; sem elas, ficavam com ar espartano, pareciam caixotes. Cushla viu uma figura pequena virar a esquina que dava para a ruela da escola. Era Davy McGeown, um miúdo da sala dela, que ia sem casaco. Cushla tentou evitar a poça de água que se formava no exterior do estabelecimento de fish and chips quando chovia, mas vinha um carro na outra faixa. A água fez um som característico quando foi deslocada pelos pneus. Olhando de relance para trás, viu Davy de braços abertos, observando-se de cima a baixo, encharcado.
Cushla entrou no pátio da escola pelos portões traseiros e estacionou rapidamente. Já lá dentro, avançou contra a corrente de crianças que entravam no edifício, percorrendo o corredor que ia dar à entrada principal. Davy entrou a pingar, a pele avermelhada por causa do frio.
Molhei-te todo, comentou ela.
Ele abanou a cabeça como um cachorro, salpicando-a com pingos de chuva. Não há problema, respondeu, batendo os dentes. Ela levou-o para a casa de banho dos professores e limpou-lhe a cara e a cabeça com toalhas de papel. O miúdo encolheu-se porque o papel era áspero.
Ouviu-se o som da campainha. Vais ter de ficar assim, comentou ela.
Quando saíram os dois para o corredor, depararam-se com o senhor Bradley, o diretor da escola, que, lá do alto, olhou para Davy. O teu casaco? perguntou-lhe.
Esqueci-me dele, senhor diretor.
Pois, respondeu Bradley, como se estivesse a tentar pensar num castigo adequado. O nome de Davy era referido ocasionalmente nas reuniões de professores. O pai reparava telhados e parecia ter muito pouco trabalho, a mãe era protestante e, embora os filhos estivessem numa escola católica, não tinha abandonado a sua igreja. Para Bradley, esta gente estava na mesma categoria que os membros da Família Manson.
Ele esqueceu-se, interveio Cushla, apoiando as mãos nos ombros do miúdo e fazendo-o avançar para a sala.
Alguns professores exigiam que os alunos se levantassem quando eles entravam na sala, mas Cushla preferia não chamar a atenção, o que lhe permitia ouvir as conversas. Davy foi sentar-se na primeira fila, mesmo debaixo do nariz da professora; não porque se portasse mal, mas porque os outros lhe faziam a vida negra. Cushla esvaziou o cesto e pendurou o casaco nas costas da cadeira. As crianças calaram-se e assumiram a pose que tinham andado a treinar para a primeira comunhão: palmas das mãos juntas, os dedos a apontar para o céu. Cushla rezou com eles uma ave-maria, as bocas de tal maneira acostumadas à oração que as palavras se arrastavam, todas sons e entoações, qual hino de clube que se canta antes de um jogo de futebol.
Antes da aula propriamente dita, eram As Notícias. Cushla detestava este ritual, que tinha sido imposto pelo diretor com o argumento de que tornava as crianças mais cientes do que se passava à sua volta. Cushla achava que elas já sabiam demasiado do que se passava à sua volta. Davy levantou-se: era sempre o primeiro a oferecer-se; o encarnado da camisola estava mais carregado nos ombros e no decote, devido à humidade.
Rebentou uma bomba em Belfast, anunciou.
Ele diz isto todos os dias, comentou o Jonathan, que se sentava ao lado dele.
Pois, e hoje é verdade. Obrigada, Davy, rematou Cushla.
Jonathan levantou-se. Não foi em Belfast, declarou. Foi uma bomba-relógio destinada a uma patrulha a pé do Exército Britânico que explodiu antes do tempo, matando dois rapazes junto à fronteira. Os rapazes tiveram morte instantânea.
Bomba-relógio. Dispositivo incendiário. Gelenhite. Nitroglicerina. Bomba de petróleo. Balas de borracha. Carro de combate. Detenção. A Lei das Competências Especiais. Vanguarda. Era este o vocabulário atual das crianças de sete anos.
Muito bem, Jonathan, elogiou Cushla.
Levantou-se outro rapaz. Houve uma coisa sobre pessoas que andam nuas pela rua no Cenário pelas Seis.
Cushla recordou-se da véspera à noite no bar, Michael Agnew fazendo rodar o uísque no copo enquanto Eamonn e os outros se metiam com ela. E aquele sorriso. E sentiu-se corar.
Chega desse assunto. Alguém tem notícias positivas?
Davy levantou-se de novo. O meu pai arranjou trabalho, disse, olhando em volta à espera de aplausos, mas ninguém lhe estava a dar atenção. Andar pela rua sem roupa, dizia um dos miúdos. Em pelo.
Cushla estendeu a mão para a pilha de cadernos e começou a chamar as crianças por ordem alfabética do primeiro nome. Tinha-lhes pedido que escrevessem um poema inspirado em «Narcisos», de Wordsworth, e Davy tinha escrito: «Os jacintos parecem dardos, agitando-se velozmente dum lado para o outro», com as palavras a formar o caule da flor que desenhara do lado direito da folha. Está genial, Davy, disse Cushla baixinho. O rapazito pôs a cabeça de lado, como se estivesse a analisar a qualidade do seu próprio trabalho, e voltou para o seu lugar.
A última era Zoe Francetti, uma das crianças do quartel. Havia uma escola no complexo militar, mas alguns militares católicos inscreviam os filhos na escola de Cushla. Zoe tinha nascido em Londres e vivido na Alemanha e em Hong Kong. Este percurso dava-lhe um ar mundano e exótico, e os colegas não se mostravam incomodados com o facto de ela ser filha de um militar britânico. Zoe tinha feito um desenho de Sindy, de vestido cor-de-rosa até aos pés. Não foi o que eu pedi, comentou Cushla, mas o desenho é muito bom.
Uma cadeira a arrastar no chão. Cushla ergueu os olhos a tempo de ver Davy cerrar o punho e enterrá-lo no antebraço de Jonathan. O que é que se passa? perguntou.
Ele disse que eu cheiro mal, queixou-se Davy.
O miúdo não cheirava mal, mas a roupa dele fedia a comida. Devias ter-me dito, Davy, e não bater-lhe, ralhou Cushla.
Eu não sou bufo, replicou o miúdo, estendendo a mão encarniçada com a palma voltada para cima. Cushla devia dar-lhe uma reguada. Se não resultasse, mandava-o ao diretor.
Levanta-te, Jonathan, pediu ela. O miúdo levantou-se com dignidade, como se estivesse a preparar-se para fazer um discurso. O que tu disseste magoou o Davy. Pede-lhe desculpa.
Jonathan abriu a boca e voltou a fechá-la. Não ouvi nada, comentou Cushla.
Desculpa, disse.
Davy, pede desculpa ao Jonathan por lhe teres batido.
Desculpa, disse o pequeno, estendendo a mão ao outro miúdo, que mal lhe tocou. O gesto tinha sido mais de castigo do que de pacificação. Cushla ordenou aos dois rapazes que fossem para cantos opostos da sala, nos quais ainda se encontravam quando o diretor entrou com o pároco.
O padre Slattery vestia um casaco de veludo preto sobre o fato eclesiástico, tinha uma expressão macabra no rosto pálido, como se lhe tivessem tirado o sangue todo. A escola fora construída nos terrenos da paróquia, terrenos que partilhava com a igreja e a residência paroquial. Slattery tinha o costume de circular pelos corredores e o pátio da escola, entrando nas salas de aula sem se fazer anunciar, a fim de pregar o seu catecismo assustador. Cushla tinha-se queixado a Bradley daquelas visitas, explicando-lhe que perturbavam as crianças. Ele é o pároco, respondera-lhe o diretor. Cushla tinha outro motivo para não gostar de Slattery: quando o pai estava no hospital, em delírio por causa da morfina, o pároco fora rezar com ele e, a seguir, convencera-o a passar um cheque para comprar uma televisão a cores.
Dois meninos malcomportados, comentou Slattery, detetando as crianças que estavam nos cantos.
Davy olhou de relance para Cushla com uma expressão suplicante. Jonathan tinha os olhos fixos na presilha da tira de couro que saía do bolso de Bradley. Cushla voltou-se para o diretor, para lhe pedir que acabasse com aquilo, mas Bradley já ia a caminho da porta da sala.
Slattery atravessou silenciosamente a sala, fez uma pausa por trás de Davy e seguiu caminho, posicionando-se diante da secretária de Cushla. Ela estalou os dedos aos rapazes e eles escaparam-se para os respetivos lugares. Slattery começou a recitar o ato de contrição, mas as crianças não fizeram coro com ele, receosas, achava a professora, de se enganarem em alguma palavra.
Não sabem rezar, comentou o pároco, olhando para Cushla de través. E se calhar há mais coisas que não sabem. Ela emitiu um som de desdém sem querer, e sentou-se, cruzando os braços.
Qual é a primeira frase da confissão? perguntou Slattery. Ninguém respondeu. Os mistérios do rosário? Como continuou a não haver mãos levantadas, o pároco começou a recitá-los lentamente, no tom melancólico que o caracterizava: gozosos, dolorosos, gloriosos. Palavras lindas, mas que visavam aterrorizar as crianças. Depois avançou para Davy e apontou-lhe um dedo esguio à cara. Quantos anos tens? Davy mostrou-se confuso, como se a pergunta viesse armadilhada. Não me digas que não sabes a tua idade, comentou Slattery.
Sete, respondeu Davy.
Sete. Vou contar-te uma história sobre uma menina pequena, pouco mais velha do que tu, começou o padre, cruzando as mãos ao de leve sobre o peito. A mãe mandou-a ir dar um recado, prosseguiu, erguendo as mãos com as palmas para cima, como fazia na missa, para dar mais ênfase ao gesto. Algum de vocês já foi encarregado pela vossa mãe de ir dar um recado? Algumas crianças acenaram a cabeça. Ao voltar para casa, esta menina foi seguida por um grupo de homens, que a empurraram para dentro de um prédio. Homens adultos. Fizeram com ela o que quiseram e, no final, gravaram-lhe as letras UVF no peito com uma garrafa partida.
A menina tinha sete anos? perguntou Davy, que tinha o lápis na boca e arrancava a tinta da extremidade mordida.
A idade que ela tinha não importa. O que interessa é que os protestantes nos odeiam, declarou Slattery, batendo com as palmas das mãos na carteira de Davy. O miúdo deu um salto. Tu és McGeown, não és?
Sou.
Então deves dar muita atenção a esta história, vivendo no bairro onde vives.
Tocou a campainha para o intervalo. Em geral, ao ouvir este toque, os miúdos começavam a arrastar as cadeiras e a tirar os lanches das mochilas, mas desta vez deixaram-se estar. Lá fora, ouviam-se as gargalhadas e os berros dos outros alunos, correndo para o pátio. Ao pé da janela, uma bola de futebol fez ricochete no alcatrão, distraindo Slattery por momentos.
Cushla avançou para a porta e abriu-a com um gesto amplo. Muito bem, meninos, ponham-se a andar, mas eles não se mexeram. Embora!, exclamou Cushla, e as crianças passaram por ela a correr.
Como está a tua mãe? perguntou Slattery.
Está ótima, replicou Cushla e, deixando o padre sozinho na sala deserta, saiu a passo decidido para o corredor mal iluminado.
Gerry Devlin, o professor da outra turma do terceiro ano, estava ao pé da cafeteira elétrica. Embora só tivesse começado a trabalhar naquela escola em setembro, já ocupava o cargo de ensaiador do coro, para o qual escrevia poemas líricos a favor da paz, e a respetiva música, inundando Cushla com o seu entusiasmo. Essa cafeteira está a ser vigiada, comentou.
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