Do Hygge dinamarquês à Psicologia Positiva
Quantos de nós já não ouviram que o importante é ter pensamento positivo? Se, até aqui, a felicidade tem sido vista como uma meta a alcançar, há quem admita que a pressão para ser feliz pode ter as suas consequências. Da Dinamarca, país onde o Hygge surgiu como uma "filosofia de boa vida", tendo sido propagado por todo o mundo, vem agora a ideia de que pode existir um "lado negro" nesta cultura da positividade.
Svend Brinkmann, professor de psicologia na Denmark’s Aalborg University e autor do bestseller Stand Firm: Resisting the Self-Improvement Craze, veio agora afirmar que os nossos pensamentos e emoções funcionam como o espelho do mundo e, por isso, é normal que existam sempre aspetos positivos e negativos, não se devendo forçar a procura constante da felicidade.
Helena Marujo, Doutorada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa e, atualmente, professora auxiliar convidada do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), em Lisboa, tem vindo a desenvolver como principal área de investigação as questões relacionadas com a Psicologia Positiva.
A investigadora explica que este é “um domínio da psicologia que estuda cientificamente o lado solar da existência humana, ou seja, as situações e circunstâncias em que as pessoas individuais e os sistemas humanos, dos grupos às nações, estão no seu melhor. Estuda, por isso, as condições de felicidade e bem-estar e a virtuosidade e a excelência, através de áreas tão diversificadas como a esperança, o bem-estar, o sentido de humor, a confiança, a generosidade, a gratidão, o sentido da vida, etc.”
O pensamento positivo também se pode transformar numa obsessão? “Sem tirar nem pôr”, diz Helena Marujo.
Deste modo, afirma, o Hygge dinamarquês encaixa-se nesta área da Psicologia, visto que se centra “nas relações interpessoais (ou bens relacionais) mais do que nos bens materiais e convida a uma reorganização de valores sobre o essencial, focando as pessoas no bem-estar físico, no apreço pela conversa com quem lhes é relevante, no uso do tempo para o melhor da vida - que são as pessoas -, de forma descontraída, despretensiosa, desfrutando".
Além disso, a Psicologia Positiva confirma que “a felicidade depende do que dá sentido à vida - e o que dá sentido advém de vivências que transcendem o Eu -, ou seja, a felicidade eudaimónica, como lhe chamou Aristóteles; e do apreciar dos prazeres simples, o hedónico, que traz as necessárias e saudáveis emoções positivas. Juntar ambos é perfeito”, explica.
Quanto à ideia de Svend Brinkmann de que a pressão para ser feliz pode trazer consequências negativas para o indivíduo, Helena Marujo acredita que “depende do tipo de felicidade que advogamos”.
Falando de uma “felicidade estritamente individual, externa e hedónica - procurar o que me faz sentir bem e fugir da dor - só focada em cada um, sem visão do coletivo”, pode ter os seus riscos. “Muitos dos problemas ambientais, organizacionais, económicos e sociais que vivemos podem ser consequência de termos advogado, na atual sociedade de consumo, precisamente esse tipo de felicidade”, afirma a investigadora.
"Ninguém pode afirmar que é feliz ao copiar o que faz o outro feliz. E isso sim, é um fardo", diz Gustavo Santos.
No entanto, se a felicidade que se procura é uma felicidade pública - em que é promovido “o desenvolvimento económico tendo como horizonte o bem de todos, o fim da exploração, da pobreza e da desigualdade, o incentivo a sistemas e organizações humanas virtuosas, ou seja, [uma felicidade] que cria condições e estimula as pessoas a serem virtuosas e a partilharem os seus dons” - estão reunidas as condições para ser possível “elevar a qualidade das nossas vidas, facto inegavelmente necessário no mundo laboral, educacional, comunitário, internacional.”, distingue.
Contudo, é de realçar que o lado negativo anda de mãos dadas com o positivo. Para Helena, o pensamento positivo também se pode transformar numa obsessão, tal como acontece com o negativo. “Sem tirar nem pôr”, esclarece. Apesar disso, “o positivo sempre traz algumas vantagens se for associado a ações férteis, pois pode fundamentar a esperança na mudança ou num futuro bom.”
Para a investigadora Helena Marujo, que se interessa por coaching e terapias positivas centradas na solução, "há uma ideia generalizada e incorreta de que estudar e promover o positivo significa negligenciar o negativo. Não podia haver ideia mais longe da realidade deste movimento. O positivo tem de ser fortificado, pois ele é um passaporte para sermos capazes de transcender o negativo das nossas vidas. Aliás, atualmente, fala-se da segunda vaga na Psicologia Positiva, que é a lembrança de que temos sempre de abraçar o negativo, o sofrimento e a dor, junto com o positivo, o luminoso. A vida é essa dialética. Só que a psicologia, durante décadas, não estudou o positivo nem se interessou por ele, deixando na sombra a capacidade humana de amar, de viver a alegria, de perdoar, de experimentar espiritualidade, de confiar e ter otimismo…”.
O coaching motivacional e a dualidade entre positivo e negativo
No momento em que a felicidade passa a ser vista como algo essencial, as pessoas sentem a necessidade de aprender como atingir um patamar de felicidade ideal. Ao longo dos anos, têm sido vários os livros de auto-ajuda e as sessões de coaching que pretendem facilitar esta caminhada até ao topo.
Em Portugal, Gustavo Santos, escritor e coach motivacional, é um dos representantes deste estilo de vida que pretende dar especial foco ao positivismo. Mas será que acha que a procura por um ideal de felicidade se pode transformar num fardo? Confrontado com a questão, afirma que "o problema da busca pelo ideal de felicidade é que as pessoas estão mal orientadas. Não adianta procurá-la nos outros, no dinheiro, nos bens materiais nem em nada que viva fora da pessoa em si. A felicidade é um estado interior. Não é preciso, portanto, ir longe para encontrá-la. Basta ir dentro de nós.".
"Ser positivo não significa que não existam desafios, dores e más experiências", diz Gustavo Santos.
A felicidade como busca interior surge a partir de uma fórmula que Gustavo diz ser simples e que transforma na questão "Quais são as tuas vontades?". Diz ainda que "o ideal de felicidade é o respeito pelas vontades de cada um. Não existem, portanto, felicidades iguais; ninguém pode afirmar que é feliz ao copiar o que faz o outro feliz. E isso sim, é um fardo. A mentira, aliada à culpa, é a maior cruz que carregamos às costas.".
Para Gustavo, cuja carreira profissional também tem passado pela televisão - é conhecido pela apresentação do programa Querido, Mudei a Casa -, a “prática do amor, (…) essa sim, cura. Ser positivo não significa que não existam desafios, dores e más experiências. Positividade é, perante o malogro, ao qual estamos todos sujeitos, resistir à tentação do medo e acreditar na lição que vive por trás do que escolhemos ou nos aconteceu. Ser positivo é ter fé. É viver com esperança. Não vejo lado negro em celebrarmos as vitórias e muito menos em querer aprender com os erros.".
"Na vida, ou és feliz ou és infeliz. Não existe o mais ou menos feliz", diz Gustavo Santos.
Questionado sobre o reflexo das pessoas no mundo, Gustavo afirma convictamente que "somos nós que o habitamos [o mundo], fomos nós que o pusemos neste estado. E ser feliz também é um estado. Não é um momento, como se costuma dizer. Na vida, ou és feliz ou és infeliz. Não existe o mais ou menos feliz. O que acontece é que a felicidade contempla momentos de tristeza, onde não somos capazes de perdoar nem aceitar, onde não conseguimos alcançar o nosso sonho nem encontrar forças para lutar pelo que desejamos."
O autor dos livros “Arrisca-te a Viver” e “Ama-te” afirma ainda que “uma pessoa feliz ama-se e basta isso mesmo para que tudo passe, a lição se aprenda e a partilha dessa mesma experiência inspire outros a ultrapassar os seus momentos menos bons. Sempre que te respeitas, estás mais perto de ser feliz. É só isso que precisamos fazer. Mas, infelizmente, é tudo o que a maioria de nós não faz.”.
A felicidade em contextos organizacionais: o verdadeiro bem-estar dos colaboradores
Esta procura pela felicidade e por uma vida regida pelo positivismo não se verifica apenas a nível pessoal. Nas empresas, são inúmeros os programas postos em prática para implementar estes ideais. O programa de Desenvolvimento Pessoal e Profissional Aprender e Agir, composto por quatro “caminhos” que podem ser feitos online e complementados com encontros presenciais, pretende ser uma ferramenta de trabalho nesta área. É, então, uma forma de promover a consciência da identidade integrada da pessoa, visando quer a construção de projetos de vida, quer o empreendedorismo a nível profissional.
"O fardo da procura [da felicidade] só surge quando não conseguimos abdicar de uma certa ideia de felicidade que temos", diz José Seruya.
José Seruya, um dos responsáveis por este projeto que surgiu em 2006 na sequência da criação e implementação do Programa Avançado em Desenvolvimento Pessoal e Profissional da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, acredita que "a procura da felicidade é inerente à condição humana, desde sempre, seja qual for o contexto social e cultural."
Mas de que felicidade falamos? “São tantos os conceitos operacionalizado, os modos de defini-la e de procurar alcançá-la… tantos quantas as pessoas que existem! O fardo dessa procura só surge quando não conseguimos abdicar de uma certa ideia de felicidade que temos e, por isso, quando a realidade teima em não se encaixar nessa ideia… pesa-nos. Saber ser feliz, na circunstância concreta da vida da pessoa, é de uma exigência enorme.“.
Quanto ao projeto que desenvolveu juntamente com Ana Costa Cabral, formadora e consultora de desenvolvimento pessoal e profissional, este "proporciona sobretudo um encontro da pessoa consigo própria, constitui um itinerário de autoconhecimento com uma proposta desafiante, muito exigente, no sentido da pessoa se perceber nos seus valores, nas suas crenças, na sua relação com os outros."
"Se a felicidade passar a ser mais uma forma de ter as pessoas a trabalhar mais - porque a empresa e os acionistas ganham mais - entramos num terreno de ‘mais do mesmo’. Trata-se assim de uma felicidade cosmética", alerta Helena Marujo.
Assim, nas organizações, estes ideais podem ser atingidos pelos trabalhadores, partindo do pressuposto que, sendo estes mais felizes, também vão trabalhar melhor. José Seruya lembra que, apesar disso, "há que fixar bem, à partida, os conceitos que estamos a utilizar: o que significa "mais felizes"? E "melhores trabalhadores" são o quê? É fundamental, nestes domínios, não nos precipitarmos nos juízos que fazemos, sob pena de dizermos banalidades, de projetarmos os chamados clichés.".
Nesta questão, Helena Marujo, que também tem como área de interesse a aplicação do ideal de felicidade a contextos organizacionais e comunitários, diz que há inúmeros estudos que comprovam que pessoas mais felizes são mais motivadas. “Os mais felizes são mais produtivos, mais motivados, mais pro-sociais, mais eficazes, melhor avaliados pelas chefias, mais criativos nas soluções e com mais espírito de iniciativa, faltam menos ao emprego…”.
Apesar disso, para a investigadora, a questão já não é essa. O verdadeiro problema é “se passamos a querer ter trabalhadores felizes por razões instrumentais e não porque realmente nos interessamos pela experiência subjetiva dos nossos colaboradores. Se a felicidade passar a ser mais uma forma de ter as pessoas a trabalhar mais, porque a empresa e os acionistas ganham mais, entramos num terreno de ‘mais do mesmo’. Trata-se assim de uma felicidade cosmética, que esconde os vulneráveis, os esmagados, os humilhados, os moralmente e materialmente feridos. Mas se é por razões verdadeiramente humanistas, se cada trabalhador meu conta e é valorizado, se o que desejo como diretor ou CEO ou responsável é verdadeiramente a promoção (não instrumental) do seu bem-estar, então fará sentido levarmos para as empresas estratégias de desenvolvimento da felicidade. Mas tem de haver relações e condições dignificadoras - desde as compensações à igualdade de género ou ao equilíbrio família-trabalho em cima da mesa ao mesmo tempo. Se não, temos uma felicidade balofa, superficial e perigosa. Queremos uma felicidade ética que é resultado de vidas laborais harmónicas e dignificadoras, humanizadoras.”
Em termos práticos, como se pode fomentar a felicidade e positivismo nas empresas? José Seruya responde sugerindo um "barómetro de felicidade" nas organizações, que possa ser preenchido semanal ou quinzenalmente. "Algo bem construído, bem pensado, sério, sem vulgatas, sem superficialidade. Algo que permita auscultar as pessoas de forma clara e honesta, e que tenha consequências, claro, em termos de correção atempada de trajetória, se for o caso. Não bastam as estatísticas, mesmo que divulgadas internamente."
Uma outra vertente que pode ajudar a implementar a felicidade nas empresas é a prática de liderança, de modo a gerar confiança e bem-estar. São precisos "líderes que contribuam de facto para melhorar a vida dos seus trabalhadores, ajudando-os a trabalhar melhor, reconhecendo o seu mérito, criando um bom ambiente relacional.", diz o autor de Aprender e Agir.
Levar a positividade de modo saudável, em tudo
Acreditar na positividade em qualquer contexto da vida é essencial, até porque, segundo Helena Marujo, o positivo tem de crescer para “contrabalançarmos o peso do negativo nas nossas vidas individuais e coletivas. O negativo tem muito mais peso que o positivo, marca mais, tem mais impacto, por isso, para o transcendermos, temos de desenvolver a atenção ao que funciona nas nossas vidas, nas nossas famílias e organizações, estar atentos e otimizar as nossas forças e virtudes individuais e conjuntas, trazer o coração mais para o centro da vida e menos apenas a cabeça e a racionalidade, temos de ser mais gratos e apreciativos do que somos e temos, e trabalhar, em simultâneo, para vidas mais justas, onde os bens relacionais ganhem lugar de centro.”.
Contudo, e olhando para o mundo - com desigualdades, injustiças, guerras, escravidão, pobreza - este ideal de felicidade parece difícil de alcançar. Para a investigadora, é preciso que cada indivíduo se transforme numa "verdadeira e credível oficina de humanidade. Só assim a felicidade terá lugar de vocação nas políticas públicas, nas gestão das empresas, na liderança das salas de aula, nas consultas médicas. Em cada espaço em que as palavras e as ações forem grandes, em que há fecundidade de virtudes, aí habita a felicidade.”.
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