Levantar e partilhar questões equacionadas ao longo de três anos de investigação, resultantes da análise de mais de 500 aerogramas do tempo da Guerra Colonial adquiridos na Feira da Ladra de Lisboa, estão na base do espectáculo que a dramaturga, atriz e colecionadora de histórias Keli Freitas estreia no próximo dia 25, no Amphiteatro Chimico do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, da Universidade de Lisboa.
Neste espectáculo, que encerra o ciclo “Abril Abriu” do Teatro Nacional D. Maria II, a artista procura a essência dos factos, para contrariar a romantização dominante da madrinha de guerra e desse passado. Perante esse objetivo, equaciona também até que ponto o “género atribuído a uma história pode determinar a perceção" sobre ela, como disse em entrevista à agência Lusa.
“Na verdade, o que pretendo com esse espectáculo é abrir perguntas, partilhar as perguntas que encontrei em três anos de pesquisa; quais são as histórias que associo a isso, sejam histórias minhas, pessoais, pequenas, irrisórias, ou seja a forma como Portugal mesmo, enquanto sociedade ou institucionalmente na macro-história, relê e reconta determinados episódios da sua história”, frisou.
As perguntas que as madrinhas de guerra levantaram à criadora, acabam também por levá-la a querer “indagar outras narrativas históricas que ainda são bastante repetidas como o conceito de história única da escritora e feminista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie", observou.
O tema para o espectáculo surgiu à criadora brasileira residente em Portugal por ter sido o da sua dissertação de mestrado em Estudos Portugueses na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Desde 2020 que Keli Freitas começou a aproximar-se do tema das madrinhas de guerra, vindo depois a ser convidada pelo diretor artístico do Teatro D. Maria, Pedro Penim, a conceber um espectáculo sobre o assunto.
A Feira da Ladra, sem paralelo no Brasil e completamente desconhecida para si, aproximou a atriz e encenadora do tema, assim como do Movimento Nacional Feminino, organização da ditadura do Estado Novo que punha mulheres portuguesas a escrever cartas aos militares destacados na Guerra Colonial.
Dedicou-se assim à investigação dessas cartas para os militares e do movimento fundado por Cecília Supico Pinto, com o objetivo inicial de reunir a “maior quantidade possível de aerogramas” das madrinhas e, a partir do estudo desses objetos, seguir para a escrita.
O objetivo tornou-se difícil, já que, nos últimos anos, adquiriu “cerca de 500 aerogramas, um pouco mais talvez”, muitos dos quais eram escritos por familiares dos soldados.
E foi justamente por não ter tantos aerogramas escritos por madrinhas como gostaria, que a atriz começou a procurar outras fontes, pensando que “talvez tivesse de partir de outros corpos, de outros materiais para escrever”.
Aí, "travou um conflito" consigo própria, pois a narrativa oficial que ainda é veiculada sobre as madrinhas de guerra continua a ser “muito romantizada”. Mesmo nos livros que leu sobre o assunto, não encontrou “uma problematização da questão digna dos debates feministas de hoje”.
“O que encontro por todos os lados, em todos os artigos escritos por homens e escritos por mulheres, é que existe sempre uma romantização da figura da madrinha e é contra essa romantização que quero trabalhar”, disse à Lusa.
Com o processo de escrita a decorrer à medida que vai criando o espectáculo, Keli Freitas afirma que pretende “juntar nessa dramaturgia várias linhas de carretéis [sequências, ‘rolos’ de histórias] que sejam vistos como diferentes”.
“Não é um estudo tão afastado assim de mim", afirmou, exemplificando que na história que constrói, “entra a forma como tomou conhecimento" do Movimento Nacional Feminino e como essas informações chegaram até si.
"Eu poderia ser uma personagem, uma mulher em Portugal em 2024, não por acaso imigrante", uma mulher dessa narrativa, "interessada em descobrir o que aconteceu e qual é a história que é contada hoje", disse Keli Freitas à Lusa.
“São estas madrinhas, mas também sou eu querendo saber quem foram as madrinhas. São os autores e autoras com quem dialoguei durante a minha pesquisa, para tentar perceber esses autores e essas autoras que me ajudaram a pensar o que estava acontecendo - e porque é que, para mim, aquela história [romantizada] não me parecia uma história contada no género como gostaria de a receber em 2024”, concluiu.
Com texto, direção e interpretação de Keli Freitas, “Madrinhas de Guerra” fica em cena de 25 a 28 de julho, com récitas nos dias 25 e 26, às 21:00, e nos dias 27 e 28, às 19:00.
A cenografia e figurino são de Marine Sigaut, o desenho de luz de Lui L’abbate, o desenho de som e a sonoplastia de João Neves. No apoio à criação estiveram Diogo Liberano e Mariana Ricardo.
Keli Freitas, formada em Letras e em Artes Cénicas, mestre em Estudos Portugueses, dedica-se a desenvolver trabalhos autorais a partir de escritas quotidianas. Entre as suas criações contam-se “Osmarina Pernambuco não consegue esquecer”, “Adicionar um lugar ausente”, “fábrica de matar baleia”, “Outra Língua”, “BAqUE”, com Gaya de Medeiros, e “Es tr3s irms”, com Tita Maravilha.
Este ano, na sequência de uma residência em O Espaço do Tempo, desenvolveu o projeto "Volta para a tua Terra", de desafio a ideias de imigração e pertença, a partir da procura pela sua bisavó portuguesa.
* Cláudia Páscoa, da agência Lusa
Comentários