João V de Portugal, Filipe II de Espanha, Luís XIV de França, Carlos VII de Nápoles e Maria Teresa de Áustria foram alguns dos soberanos europeus que fizeram chegar à Terra Santa excecionais conjuntos artísticos de ourivesaria, têxteis ou mobiliário, para serem utilizados, sobretudo, no culto e na ornamentação da Basílica do Santo Sepulcro. É o caso da lâmpada de igreja em ouro remetida por D. João V, com as armas nacionais, ou o grande baldaquino (para colocação de custódia ou crucifixo) ofertado por Carlos VII, rei de Nápoles, peças incluídas nesta exposição.
Além de doações da arte europeia, os monarcas e príncipes enviavam também recursos materiais e financeiros destinados ao sustento das igrejas e comunidades locais, tais como moedas de ouro, cera e azeite, e ainda, de forma muito frequente no caso português, bálsamos, perfumes, especiarias e chá provenientes do Oriente. Jerusalém assumia-se como um «palco» onde os príncipes exibiam as suas ofertas enquanto projeção da sua devoção e do seu poder, conferindo à Terra Santa o título de «Teatro do Mundo».
A Custódia da Terra Santa assume-se, desde 1342 como guardiã deste património arqueológico, artístico e litúrgico. Francisco de Assis (c. 1182-1226), fundador da Ordem dos Frades Menores, manifestou durante a sua vida o desejo de estabelecer uma comunidade religiosa na Terra Santa. Contudo, apenas em 1333 um convento viria a ser fundado no lugar bíblico do Cenáculo, propriedade então concedida por Roberto de Anjou, rei de Nápoles. Neste contexto, e através de uma bula papal, os franciscanos da Terra Santa recebem a missão de preservar os Lugares Santos, acolher os peregrinos, celebrar a liturgia católica e desenvolver atividades para o sustento das comunidades cristãs locais. Atualmente, esse compromisso ainda é exercido pela Custódia da Terra Santa, a instituição franciscana criada para esse efeito.
E é da parceria com esta entidade e com o Terra Sancta Museum que nasce a exposição "Tesouro dos Reis - Obras-primas do Terra Sancta Museum” que pode ser vista no Museu Gulbenkian até fevereiro de 2024.
Em preparação desde 2021, a exposição reúne uma centena de peças, com destaque para as provenientes do Terra Sancta Museum, num conjunto composto por vários exemplos de doações régias à Terra Santa, raramente mostrados ao público.
As peças chegaram ao Museu Gulbenkian este verão, tendo um conjunto de cerca de 40 obras sido objeto de conservação e restauro, realizado em colaboração com o Laboratório José de Figueiredo.
O projeto de restauro e conservação – composto por doações de monarcas e príncipes ao longo dos séculos – foi iniciado há dois anos, e a equipa que visitou Jerusalém para o concretizar acabou por encontrar mais peças necessitadas de intervenção do que esperava.
“Algumas peças são usadas pelo culto e outras estão guardadas em sacristias, enquanto não abre o Museu da Terra Santa” na sua totalidade, prevista para 2026, onde terão condições mais protegidas, segundo o comissário executivo da exposição, André Afonso.
Depois de viajarem duas vezes para Jerusalém para observar em detalhe as obras antigas, em metais preciosos, madeira, têxteis e documentos, os responsáveis decidiram “criar sinergias com outras instituições para desenvolver um projeto mais qualificado”, disse o conservador e curador da Gulbenkian.
“Pedimos a preciosa colaboração do laboratório José de Figueiredo, do Estado português, que ficou com a supervisão científica de todo este projeto, e contratámos uma equipa de oito restauradores/conservadores que estiveram em permanência nas oficinas [do Museu Gulbenkian] a fazer intervenção nestas peças”, revelou.
André Afonso disse que globalmente, mais de dez conservadores especializados estiveram envolvidos, ao longo de cinco meses, neste projeto de restauro, cinco dedicados ao metal dos objetos, um para as madeiras, outro para os têxteis, e mais um para os documentos gráficos.
“Era necessário um esforço coletivo para apoiar a Custódia da Terra Santa, que não tem as condições, localmente, para o fazer, nem os meios financeiros", apontou o comissário executivo da exposição, acrescentando que esta intervenção é feita "num património que é verdadeiramente universal, em peças vindas também do Sacro Império, do próprio território da Terra Santa, ainda mais tendo em conta que este património vai ser exposto em 2026”.
A exposição "Tesouro dos Reis - Obras-primas do Terra Sancta Museum exibe dezenas de doações realizadas num período em que a região era um importante centro de projeção da devoção e do poder dos reis e príncipes católicos europeus, contendo ofertas preciosas de João V de Portugal, Filipe II de Espanha, Luís XIV de França, Carlos VII de Nápoles e Maria Teresa de Áustria, entre outros.
«Esmola do rei e dos seus súbditos» é a expressão que surge frequentemente referida nos registos das doações do Reino de Portugal à Terra Santa. Estas ofertas eram compostas por bens de natureza diversa, nomeadamente objetos litúrgicos, que começaram a afluir de forma mais regular a Jerusalém a partir de 1670, dois anos após o Tratado de Paz que pôs fim à Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha.
As obras artísticas oferecidas pelos soberanos portugueses, que se conservam em Jerusalém, situam-se cronologicamente entre a regência e o reinado de D. Pedro II (1648-1706) e o de D. João VI (1767-1826). Contudo, as doações mais significativas foram enviadas por D. João V (1689-1750) que, incluindo luxuosos tecidos genoveses e objetos em ouro proveniente do Brasil, manifestavam a riqueza e a intensa atividade mecenática do rei «Magnânimo».
Conjuntos artísticos de ourivesaria, têxteis e mobiliário foram doados para serem utilizados, sobretudo no culto e na ornamentação da Basílica do Santo Sepulcro, nomeadamente a lâmpada de igreja em ouro remetida por João V, com as armas nacionais, ou o grande baldaquino (para colocação de custódia ou crucifixo) ofertado por Carlos VII, rei de Nápoles, peças incluídas nesta exposição, que tem como comissário científico Jacques Charles-Gaffiot, historiador de arte e autor, membro do comité científico do Museu da Terra Santa.
Mas, do acervo de obras enviadas da Europa para a Terra Santa, os objetos ofertados pelos monarcas espanhóis formam, segundo o catálogo da exposição, "talvez o conjunto mais significativo". Nele se incluem alguns dos objetos de datação mais recuada, como é o caso do cálice doado em 1587 por Filipe II (1527-1598), soberano que também detinha o título de «rei de Jerusalém». Esse cálice encontra-se integrado numa tradição que perdurou até ao século XX na qual os monarcas espanhóis faziam consagrar três cálices na missa da Epifania e que enviavam como esmola para diversas igrejas, numa alusão aos presentes dos três Reis Magos. A simplicidade deste objeto contrasta com o sumptuoso conjunto de baldaquino, castiçais e ramos de altar encomendados por Filipe IV (1605-1665) e Carlos II (1661-1700) e que chegariam a Jerusalém em 1666 e 1673.
Lugar de uma profunda simbologia espiritual, a Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém tornou-se, ao longo dos séculos, um importante centro de projeção da devoção e do poder dos reis e príncipes católicos europeus.
Tendo como eixo central as doações dos monarcas, a exposição estabelece ainda um percurso pela história milenar e simbolismo espiritual da Basílica do Santo Sepulcro, destacando o papel da Custódia da Terra Santa.
Iniciado há cerca de uma década, o projeto do Terra Sancta Museum inclui um núcleo arqueológico, já aberto ao público, neste mesmo Convento da Flagelação de Jerusalém. A segunda parte do projeto contempla a criação de um núcleo para albergar as coleções históricas e artísticas. Atualmente em obras, esta secção do Terra Sancta Museum ficará situada no Convento de São Salvador, em plena Cidade Velha de Jerusalém, estando a data de abertura prevista para 2026. Até lá, algumas das obras mais admiráveis vão poder ser vistas numa itinerância com início em Portugal, passando por Espanha, Itália e, finalmente, por Nova Iorque, na Frick Collection.
O Terra Sancta Museum ou Museu Terra Santa está localizado em Jerusalém, na Via Dolorosa — rota que segue os locais da paixão de Jesus. Instalado no Convento da Flagelação, a segunda das 14 Estações da Via Sacra. Foi aqui, segundo a tradição, que Jesus foi açoitado pelos soldados romanos sob a direção de Pôncio Pilatos e iniciou o caminho do Calvário carregando a cruz.
A vida de Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) conta com diferentes pontos de ligação afetiva, espiritual e material a Jerusalém. Cristão arménio por herança familiar, Gulbenkian inicia esta relação durante a infância, quando realiza a sua primeira peregrinação à Terra Santa. Ao longo dos anos, acompanhando o sucesso alcançado pelo colecionador na indústria do petróleo, esta afinidade consolida-se, manifestando-se energicamente através de esforços filantrópicos.
A Biblioteca Gulbenkian do Patriarcado Arménio de Jerusalém constitui o testemunho mais expressivo desta relação. O financiamento da construção deste edifício e a oferta, em 1948, de um livro de Evangelhos arménio cruzam-se, ainda, com o fascínio pela arte do livro. Após a sua morte, a Fundação Calouste Gulbenkian daria continuidade, até ao presente, a este vínculo com Jerusalém.
*Com Lusa
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