Cena: Conversa entre alunos e a nova professora, que acaba de chegar.
Local: De dia, sala de aula, numa faculdade.
Aluna: É a substituta?
Professora: Não, sou a professora.
Aluno: Vi um vídeo no Pornhub e era assim que começava.
[risos na sala]
Professora: Misoginia, que inovador. Se lhe juntares uma piada de índios sobre a Pocahontas, acertas na aposta tripla.
Aluno: Já que fala nisso…
Professora: Como te chamas?
Aluno: Trent.
Professora: Consegues dizer-me a definição de poder, Trent?
Aluno: [Revira os olhos, não dá resposta]
Professora: É a capacidade de direcionar ou influenciar o comportamento de eventos ou de outros. É isso que eu tenho. Posso expulsar-te desta cadeira e chumbar-te ou posso mandar-te ao reitor por violar o código do aluno. Tudo isto são coisas que podem mexer com o curso da tua vida. Isto é poder. E tu não tens nenhum.
Este é um diálogo que envolve uma das personagens e elucida bem ao que se vai quando se galopa pelas impressionantes paisagens neo-Western de "Yellowstone". No entanto, o diálogo em causa, que na verdade é um pequeno excerto de um episódio, acarreta uma curiosidade: está a ser amplamente difundido e replicado nas redes sociais e nem sequer envolve o cowboy principal da história. (Por "amplamente partilhado", falamos de uma Short publicada no YouTube há três meses, com 82 milhões de visualizações.) O que se percebe. Afinal, na sua essência, a série é sobre poder.
Mas é também sobre legado e família — e do que abdicamos, do que somos, pelo amor que nutrimos pelos nossos. Os trilhos do rancho dos Dutton muitas vezes apontam em direção ao abismo e as personagens sabem-no tão bem quanto o espectador, que vê e percebe a sua angústia quando recusam (ou não conseguem) mudar de direção. Sabem que é errado, que alguém vai sofrer com a decisão de irem por ali, que vai dar asneira. E, no entanto, não obstante o grau moral implicado, fazem-no. Pelo pai, pelo irmão de sangue, pela irmã, pelo irmão dos estábulos, pela irmandade criada por quem esticou a mão quando mais ninguém o fez. Pela família de sangue, pela família de adopção.
Porém, falar de "Yellowstone" é falar de Taylor Sheridan, ator tornado argumentista-realizador que atualmente detém um poder - lá está - quase ímpar na indústria. Conhecido por ter interpretado o delegado da polícia David Hale em "Sons of Anarchy", saltou para a ribalta depois de escrever "Sicario" (2015) e "Hell or High Water" (2016) — este último contou com três nomeações para os Óscares, incluindo para Melhor Filme. Em 2017, ocupou pela primeira vez a cadeira da realização ao assumir as rédeas (e argumento) de "Wind River", um indie com Jeremy Renner e Elizabeth Olsen que estreou em Sundance, ganhou prémios em Cannes e que conta com uma taxa de aprovação de 88% no Rotten Tomatoes. Os três filmes, ainda que contem histórias independentes, fazem parte da sua trilogia sobre "a fronteira americana moderna".
Até que chegamos a 2018, ano em que estreia a série que co-criou com John Linson.
Em "Yellowstone", Sheridan continua a expandir a sua visão das fronteiras dos EUA e a tocar em temas como a exploração dos povos indígenas, a ocupação de território e a mostrar o mundo moderno dos cowboys. Neste caso em particular, fá-lo pelos milhares de hectares da família Dutton sitos no Estado do Montana, ali na fronteira com o Canadá. Encabeçada pelo patriarca John Dutton (um Kevin Costner a ganhar 500 mil dólares por episódio), controla o maior rancho contíguo da América e enfrenta batalhas políticas e escaramuças com o líder da reserva índia de Broken Rock e promotores imobiliários do Texas que querem construir hotéis nas terras que já pertenciam aos seus antepassados.
O pior, parece, é que não consegue controlar as ações dos três filhos: Jamie (Wes Bentley) é o aparente natural "sucessor"e o mais "normal" de todos, visto que é um advogado a piscar o olho à política; Cory (Luke Grimes) é o mais tranquilo, mas é um veterano de guerra que prefere ignorar a existência do pai e passar os seus dias a cuidar da sua esposa de ascendência indígena (é a professora do início deste texto) e do seu filho de sete anos. Por fim, temos Beth (Kelly Reilly), quiçá a personagem mais interessante e inteligente da série, que é a filha passivo-agressiva e alcóolica funcional que não tem qualquer problema em meter os homens, num mundo de homens, no sítio.
Segundo revelou à The Atlantic, Sheridan explicou que escreveu a série para dar resposta à questão: "quando se tem um reino, e se é o rei, existe essa coisa da moralidade"? Noutros termos, quis explorar e testar os limites de alguém que vê o seu legado ameaçado, bem ao jeito americano. Onde é que se traça a linha do que é aceitável para defender o que é nosso, ainda que o "nosso" signifique ter muito mais do que todos os outros juntos à custa de conquistas sem escrúpulos dos antepassados? É possível fazê-lo sem corromper o que é moralmente aceitável? Numa parte de um dos primeiros episódios, um turista chinês confronta Dutton com o repto de que "ninguém devia ter tantos terrenos". De espingarda em punho - que, com honestidade, foi utilizada para salvar o referido turista de um urso -, a personagem de Costner responde que "isto é a América, nós aqui não partilhamos terrenos!" e expulsa o homem.
Domínio territorial à parte, existem, claro, comparações em "YelloStone". Há quem diga que nesta história moderna de cowboys se identificam semelhanças entre as vidas de John Dutton e de Tony Soprano, uma vez que as idiossincrasias de ambos e ameaças que os afligem surgem não só dentro (da própria família), mas também do que os rodeia (rivais demasiado ambiciosos). Inegável, todavia, será comparar a parte dos homicídios, em que muitos intervenientes acabam na "Estação do Comboio" por simplesmente irem contra o status quo dos Dutton, qual máfia do Gado. Outra paridade televisiva frequente, por conter tricas e abusos emocionais entre irmãos e pai, que vergam a lei quando isso beneficia o negócio da família, é com "Succession", numa espécie de Sucessão do Wild West Moderno, já que o líder Dutton quer preparar o pós-vida e envolver os filhos nas decisões que envolvem o rancho.
Fenómeno da televisão
Inicialmente, "Yellowstone" não teve direito ao mediatismo de "A Guerra dos Tronos" e de outros pares similares. Os críticos não foram muito simpáticos, os media não lhe deram assim tanta importância, as primeiras temporadas foram meio ignoradas pelos prémios (só agora 2022 é que conquistou umas nomeações para os Emmys). Não obstante a tudo isto, nos Estados Unidos, o facto é que se trata de um fenómeno que só fica atrás da liga de futebol americano (NFL) ao nível de audiências em televisão por cabo — tanto que a Variety apelida Sheridan como o "novo Rei do primetime" —, agarrando uma média impressionante de 11 milhões de espectadores na exibição do último episódio da 4.ª temporada. Na estreia da 5.ª temporada, bateu mesmo o recorde, com 12.1 milhões de espectadores.
Contudo, essa mesma popularidade também reflete a segmentação demográfica da América atual. Segundo o The Guardian, a série é muito popular por espelhar a realidade vivida em alguns estados do Interior ou mais rurais, onde a riqueza via heranças, detida por famílias brancas, está a desaparecer ou a perder influência. Além disso, o elenco diversificado de "Yellowstone" contrasta com a sua audiência (apenas 23% são não-brancos). Mais: há até quem a catalogue de "Prestige TV" para os conservadores e fale em "Redneck Succession".
Às críticas, Taylor Sheridan responde com risos (por não concordar). "Referir-se [a "Yellowstone"] como 'série conservadora', 'série Republicana' ou 'A Guerra dos Tronos: Red State'. Eu apenas me rio. Penso para mim: a sério? A série fala sobre o desalojamento dos Povos Nativos da América, de como as mulheres destes povos eram tratadas, da ganância empresarial e da gentrificação do Ocidente, do roubo de terras. Como é que isto é uma série de um estado vermelho?".
Críticas e popularidade à parte, a realidade é que a Paramount está a capitalizar neste sucesso e criou um Universo Yellowstone. Para já, através de duas prequelas: "1883", com Sam Elliot e Faith Hill, que mostra como a família Dutton tentou escapar à pobreza; e "1923", que vai estrear nos EUA em dezembro, com Harrison Ford e Helen Mirren, que se vai focar na geração Dutton que se instalou num estado do Montana Sem Lei e batalhou contra a seca e a Grande Depressão.
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