No episódio desta semana dos Palavrões da Ciência, falamos de plantas. Lembrei-me deste texto em que descrevo a gramática como se fosse uma floresta. Oiça em: Spotify | Apple Podcasts
Não será impossível imaginar um mundo em que uma qualquer espécie de símio inventasse palavras – mas só isso. Nada de regras para criar frases a partir dessas palavras. Esse animal imaginário – levemente parecido connosco, que somos conhecidos símios sabichões – saberia dizer:
– Árvore!
– Céu!
– Tigre!
Imagino que as palavras fossem úteis para apontar para a árvore que cai, o céu que escurece, o tigre que aparece com vontade de comer macacos falantes.
Mas, e depois? O que aconteceria?
– Ainda me lembro bem do tempo em que vivíamos perto daquele lago… Aquele lago a que chamávamos Grande Poça Divina! Bons tempos… E ainda o Grande Chefe estava vivo e eu vivia com a Carla…
Não, esta frase nunca sairia das bocas desses seres inventores de palavras. Não haveria regras e, logo, para eles poderia sair qualquer coisa como:
– Lembrar. Tempo. Viver. Lago. Perto. Nome. Lago. Poça. Tempo. Bom. Chefe. Vivo. Carla. Casa.
Nem Grande Poça Divina seria possível, pois «grande» e «divina» já seguem algumas regras de concordância e colocação… E, para dizer a verdade, a sequência de palavras que inventei segue uma vaga ordem que talvez seja um pouco excessiva para os nossos seres produtores de palavras.
As regras dizem-nos onde pôr as palavras, por que ordem, como transformá-las de acordo com o tempo, entre muitas outras coisas.
Que regras são estas? São regras que nos dizem como mudar a forma das palavras (por exemplo, passar de «falar» para «falei») ou como pôr as palavras numa determinada ordem («o cão» e não «cão o»).
Há línguas que preferem usar a forma das palavras (o turco, por exemplo), enquanto outras investem na ordem das palavras (o chinês, por exemplo) – embora, na verdade, quase todas usem ambas as estratégias aqui e ali para criar frases com sentido a partir das palavras individuais.
Em português, por exemplo, se disser «O João falou com a Maria.», estou a usar a forma da palavra «falar» para mostrar que o verbo está no pretérito passado e a ordem das palavras para mostrar que o sujeito é o João, e não a Maria. «A Maria falou com o João.» usa as mesmas palavras, com a mesma forma, mas em ordem diferente.
Este uso das especiarias gramaticais (ordem e forma) varia de língua para língua e de época para época – o latim usava muito mais a forma das palavras para determinar a sintaxe (e é, assim, chamada uma língua mais sintética do que as línguas latinas), enquanto as línguas latinas tendem a usar palavras diferentes numa determinada ordem para chegar ao mesmo sítio (e são, assim, línguas mais analíticas do que o latim).
Todas as línguas têm partes de palavras e palavras inteiras que são peças da maquinaria gramatical. Por exemplo, no verbo «falei», o «-ei» é um pedaço de palavra que lhe dá a forma particular do pretérito perfeito do indicativo (na primeira pessoa). Já na frase «falei de ti», o «de» é uma preposição que liga o verbo ao «tu», que também está numa forma particular (por causa da função sintáctica que tem na frase). Tanto o «de» como o «ti» são peças da maquinaria da língua.
Mudam muito mais lentamente – e raramente aparecem novos companheiros nas suas categorias (preposições e pronomes).
Estas peças fundamentais da língua sofrem um grande desbaste sonoro – mudam muito! Mas, no seu uso gramatical, mantêm aspectos já perdidos noutras classes de palavras. Por exemplo, se no latim cada nome mudava de acordo com o caso, ou seja, com a função sintáctica (a velhinha «rosa, rosae», etc.), em português mudam apenas entre o singular e o plural e o masculino e feminino (e ainda no grau, mas já só em situações muito particulares, como veremos). No entanto, os pronomes, que são uma classe fechada fundamental para o funcionamento da língua, embora sejam hoje muito diferentes dos pronomes latinos e, aliás, dos pronomes das outras línguas latinas (a sua forma sofreu um grande desbaste ao longo dos séculos), mantêm ainda os tais casos que perdemos no resto da gramática. O pronome da primeira pessoa tem o caso nominal («eu»), acusativo («me»), dativo («mim»).
A nossa gramática é mais sintética nos pronomes e mais analítica nos nomes… Nestes últimos, o português perdeu os casos, mas não a marca do plural ou do género. Podia não ser assim. No cabo-verdiano, esta tendência para a análise deu mais um passo: o número é indicado apenas no artigo e não no nome. Já o japonês indica o plural através de outras palavras, e não no próprio nome.
Quanto ao género, há línguas onde este não existe ou existe apenas como vestígio, um pouco à semelhança dos casos, que ainda sobrevivem, mas apenas nos pronomes (como exemplo de língua onde o género resiste apenas nalguns casos particulares temos o inglês).
Se repararmos nos adjectivos, vemos esta variedade entre análise e síntese na diferença entre a forma analítica e sintética de cada adjectivo no grau aumentativo: «muito forte» / «fortíssimo»
Entre a forma e a ordem das palavras que usamos, temos, assim sendo, uma série de regras – agora, a palavra «regra» pode ser enganadora. Aliás, é tão enganadora que muitas das discussões sobre a língua e sobre o que é erro e não é radicam numa incompreensão do que significa «regra de português».
A ideia que perpassa em muitos debates é a de que as regras de português nascem dos livros, pensadas e repensadas por quem percebe disto… Os falantes limitam-se a tentar reproduzi-las o melhor possível – mas, quase sempre, falham. Esta ideia nem sempre aparece assim, preto no branco, mas é o que se percebe de muitas declarações bombásticas sobre a língua.
O mito do nascimento livresco das regras está relacionado com outra ideia muito em voga: a de que a gramática decorre directa e obviamente da lógica… Sim, é verdade: a gramática permite expressar um pensamento mais ou menos lógico – e conhecê-la, da maneira como de facto funciona, ajuda a sermos claros e lógicos quando queremos ser claros e lógicos. Mas a gramática não nasce da lógica – e nem sequer é muito lógica, no sentido de eficiente. É um mecanismo complexo, muito mais complexo do que estritamente necessário, uma máquina que foi sendo construída através da junção de mais peças, da avaria de outras, sendo que ninguém sabe muito bem como tudo funciona lá por dentro. Se a gramática das línguas decorresse da lógica, tenderia a ser igual em todas as línguas. Ora, isso não acontece. Se somarmos a isto o facto conhecido de que não há línguas mais lógicas do que outras, percebemos que a gramática permite expressar o pensamento lógico, mas não funciona de forma estritamente lógica.
O certo é que funciona… E se uma peça cai, logo outra (ou outras) aparece – por exemplo, o sistema de casos do latim caiu, mas os falantes, porque precisavam ou lhes apeteceu, juntaram preposições e outras peças. No caso dos pronomes, as peças ficaram agarradas, como restos do que estava ali e já não está – a gramática é qualquer coisa de extraordinário, uma floresta feita de árvores antigas, outras mais recentes, tudo bem misturado e intrincado, de uma beleza brava que não se dá muito bem com jardinagens.
(Excerto de Gramática para Todos.)
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. Apresenta, com Cristina Soares, o programa Palavrões da Ciência.
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