A barreira geográfica dos Picos da Europa foi nação antes de Fernando e Isabel darem início, a partir deste bastião cristão na Ibéria, a reconquista aos mouros e fizeram das Astúrias um dos pontos isolados de Espanha.
Enclausurada entre a região da Galiza e a cordilheira Cantábria, fortificada pelos Picos da Europa, assente no planalto de Castela e Leão e banhada pelo Atlântico e mar Cantábrico, a diversidade paisagística desta província e principado espanhol deixa quase adivinhar uma criação nascida a partir de um algoritmo inteligente e politicamente correto concebido para deixar toda a gente contente.
No Principado das Astúrias não se vive o dilema da tomada de decisão. Fazer muito em pouco espaço é a norma. Caminhar ou pedalar. Trepar montanhas ou perdermo-nos floresta adentro. Seguir os trilhos da aventura ou partir no encalço dos Caminho de Santiago (Fé). Tudo em silêncio e sem vislumbrar viva alma.
No mapa das opções coabitam praia (surf) e campo (montanha). Não se alimenta a dúvida existencial entre percorrer os 400 quilómetros de uma costa ainda inexplorada ou mergulhar nas mais de 200 praias de todos os tamanhos e feitios, submersas numa variedade de paletes azul-turquesa e outras tonalidades que lavam um areal onde desaguam vertiginosos penhascos e pastagens verdejantes.
Há vestígios históricos e marcas do presente. Na bússola das escolhas podemos “viver” a cidade, percorrer edifícios Património Mundial da UNESCO ou observar um dos últimos redutos de ursos pardos na Europa.
Sentados à mesa, temos diante de nós pratos ou copos, sidra numa mão e magistrais queijos asturianos, na outra, ou avançamos mais a fundo para a cozinha local e típica – onde entra arroz de leite (arroz-doce), o ex-libris das sobremesas locais, a fabada asturiana (pedaços de feijão branco ensopados em enchidos) e peixe, sardinha incluído. Para quem aprecia inclinar o prato para prémios, há duas mãos cheias de restaurantes com Estrela Michelin.
E, por fim, por entre escolhas, temos a possibilidade de experienciar um testemunho raro dos contrastes que caraterizam esta compacta região no Norte de Espanha, outrora zona industrial e mineira, hoje batizada de Paraíso Natural cujo terço do território é protegido ambientalmente e composto por sete Parques da Biosfera.
Em suma, nas tradicionais e populares escapadinhas de três dias, podemos dedicar um começar pela sidra (equacionar um pulo a Navas, a capital da bebida à base de maçã) e ao queijo, escorrendo pelas 40 variedades, entre as quais o Cabrales e o Gamonedo, produtos da transumância ainda praticada, ícones renomeados deste quarteirão queijeiro de Espanha, escalar as paisagens alpinas e, por fim, mergulhar na costa.
Oviedo. Os primeiros passos do Caminho de Santiago e a vertigem de uma sidra
O turismo em cima de um selim foi o leitmotiv da viagem do SAPO24.
A convite do Turismo das Astúrias, ficamos instalados a escassos quilómetros de Oviedo, no hotel Las Caldas Hotel, no complexo Las Caldas Villa Termal, 40 mil metros quadrados de natureza em estado puro onde assentam dois hotéis ligados por três séculos e uma ponte metálica, totalmente envidraçada; o primeiro, o Grand Hotel, datado de 1878, o outro, de 2011, Hotel Las Caldas.
Foi pela capital asturiana que demos os primeiros passos, a pé ou não tivesse sido a partir de Oviedo que o Rei Afonso II, no século IX, deu vida aos Caminhos de Santiago ao assumir-se como o primeiro peregrino. O Camino Primitivo dá o pontapé de saída na Catedral de São Salvador, peregrinação que perdura até hoje.
Neste caldeirão de contrastes coabitam em Oviedo testemunhos únicos pré-românicos – as veneradas igrejas de Santa María del Naranco e San Julián de los Prados (fora da cidade) - ao lado de modernices em forma de estátua.
Nesta moldura arquitetónica na qual tropeçamos a cada esquina, duas estátuas merecem destaque pela notoriedade dos visados. Uma, em homenagem a Woody Allen, cineasta que colocou a cidade de 200 mil habitantes no mapa-mundo através do filme “Vicky Cristina Barcelona” ou Mafalda, a eterna BD de “Quino”, historiador e cartoonista argentino galardoado com o Prémio das Astúrias de Comunicação e Humanidades (2014), plantada no campo de São Francisco, pulmão verde citadino, outrora “quintal” do convento com o mesmo nome.
A sidra, um verdadeiro património local e nacional (80 por cento é produzida nas Astúrias), integra uma check-list mais que obrigatória. A vertigem da rua inclinada, Calle Gascona, também conhecida como "Cider Boulevard -serve de teste à gravidade a esta preciosidade líquida jorrada a um braço de distância do copo de vidro (escanciada) e bebida (bem fresca) de um trago só (vulgo penálti). Provaríamos no dia seguinte, mas vinda de uma garrafa (champanhe) sem cumprir o ritual atrás descrito. Críticas de heresia, aceites.
Da montanha às ondas no mar
Segundo dia. Finalmente as bicicletas, a razão da nossa ida.
Grande parte dos nossos companheiros de aventura são agentes e consultores de agências de viagem de nicho e 4.0 destinadas a amantes dos passeios em duas rodas. No meio do pelotão, dois portugueses, Paulo Almeida Lopes (Portugal Green Walks) e Elsa Gavinho, operadores em busca de novas rotas.
Ao longo de dois dias pedalámos e planámos em cima de uma e-bike de montanha da MMR Bikes. De bicicleta, viajámos pelo mundo asturiano em duas rodas e um motor elétrico, o melhor amigo do trepador ou rolador.
Esta é uma aposta do Turismo e da marca “Asturias, Ciclismo por Naturaleza”, no original, que quer posicionar o cicloturismo como um dos braços estratégicos na promoção turística de uma região que recebe 2,3 milhões de turistas por ano, a larga maioria, internos.
A Vuelta anda por aqui
Uma aposta tão natural que a Vuelta, uma das três grandes provas velocipédicas mundiais (além do Giro e Tour), resgatou esta dureza da Mãe Natureza. Fez das quatro paredes do território um cenário ao alcance dos olhos de todos, mostrou-o ao mundo e transformou a região asturiana numa paisagem de excelência de subidas aos céus, onde se incluem as míticas etapas - Alto de Farrapona, Alto de Angliru, na Montanha Central das Astúrias, Cruz de Linares e Lagos de Covadonga, nos Picos de Europa, à distância de um pedal e uma bateria carregada a 100% para o comum dos mortais.
Numa região de clima chuvoso e de verões temperados, mal o sol começa a jogar às escondidas com as nuvens, de junho a setembro, os ciclistas, de ocasião e outros, mais rotineiros e “profissionais”, começam a pintar as estradas, montanha acima e elevação abaixo, curva à esquerda e à direita, sentados no selim, mãos coladas no guiador e vestidos a preceito, licras, calções almofadados, capacete e calçado próprio.
Fomos austeros na abordagem (calças, t-shirt e ténis). A partir da capital da província, rumámos, dentro de duas vans, para sudoeste. O Parque Natural de Somiedo, Monumento Natural e Reserva da Biosfera pela UNESCO, foi o primeiro ponto assinalado na rota das montanhas Cantábricas, território ocupado pelos afamados ursos pardos e terreno de pousio de lagos glaciares.
Já em altitude, recebemos curtas e providenciais palavras sobre mudanças e como acionar o modo eco e sport conforme as aptidões e caixa pulmonar do corredor, além de um briefing sobre o botão para subir e descer o selim. Teste rápido às duas rodas elétricas, dois “8” e estávamos prontos para medir o pulso da diversidade asturiana.
O urso pardo permaneceu à distância de uma lente. Os carros estacionados estrada acima deste observatório natural escondem donos armados de tripés, telescópios, binóculos e telemóveis em riste à espera de alcançar uma nesga do urso castanho, visão facilitada nos meses de primavera (fim da hibernação) e verão.
Seguimos em frente. Sempre a subir. A subida ao Alto de la Farrapona, a 1708 metros, palco de três finais de etapa da Vuelta, serviu de primeira prova de fogo nesta imersão velocipédica na alta montanha.
Conquistado o primeiro prémio de montanha, aproveitamos o embalo para serpentear a rota dos lagos Saliencia, lagos glaciares (la Cueva) até Valle del Lago, paisagem a servir de estafeta para Pola de Somiedo, local de pausa para reforço de calorias.
Observadas, in loco, os hórreos, dispensas de bens agrícolas suspensas e cujo património registe à memória nacional, de pulmão e estômago cheio qb fomos encher a vista com a vista oceânica.
Mudámos de cenário. Rumámos (de carro, outra vez) para norte até à famosa costa asturiana banhada pelo mar Cantábrico.
Às bicicletas estavam à nossa espera. A partida é dada no campo que é vizinho do mar. O percurso é feito pela orla costeira, com paragens nos miradouros naturais de Cabo Busto, verdadeiros anfiteatros com vista para o oceano, falésias e infinitos areais, onde o verde dos pastos e montanhas abraça o imenso azul do mar e formações rochosas escarpadas, penhascos de mais de 50 metros de altura servem de albergue de um singular ecossistema habitado por espécies protegidas de fauna e flora.
Este é o desenho da orografia litoral das Astúrias dentro do qual os faróis assumem o papel de eternos testemunhos deste silêncio e rara beleza natural.
Por trilhos onde não cabem duas bicicletas lado a lado, um terreno empedrado e arenoso desemboca na praia de Cueva, enorme concha de areia escura e de pedra.
Carregadas as baterias na maresia, seguimos para a oficina ambulante, vulgo pequeno camião que transportava as bicicletas. O esqueleto pede o merecido descanso no hotel.
Subida ao mítico alto de Angliru
Terceiro dia nas Astúrias, segundo dia em cima das duas rodas elétricas.
Uma das atrações que nos estava reservada era, outra vez, “brincar” à Volta à Espanha em bicicleta e vestir a pele de Evenepoel, Roglic, Yates, Quintana ou Contador.
Alto do Gamoniteiro - Angliru e Cruz de Linares são palavras que nos fazem saltar os olhos das órbitas face ao desafio colocado de trepar uma pendência que pode atingir 23%.
Um aparte. A edição de 2023 da Vuelta, a decorrer de 26 de agosto a 17 de setembro, Angliru (desde 1999) e Cruz de Linares (em estreia este ano) entram na rota à passagem da 17.ª e 18.ª etapa. Uma dupla de montanha de de onde pode sair o nome do vencedor da prova.
Já com uma subida nas pernas, partimos para outro prémio de 1.ª categoria.
As nuvens estão em cima da nossa cabeça e a subida inicia-se um pouco acima dos 600 metros, em Viapará. Foram sete quilómetros por este Olimpo do ciclismo mundial acima. Uma fonte batizada de Alberto Contador (vencedor em 2008 e 2017 da Vuelta), ausência de carros, pastores (poucos) e vacas, por vezes a marcar passo à nossa frente, são a companhia até à estrada sem fim a 1573 metros assinalados numa placa onde consta mais data: os quilómetros da base ao topo, 12,5 km, o desnível (1,266 m) e a pendência média (10,13%) e máxima (23,50%).
No alto, o pelotão de duas dezenas de ciclistas encontra quatro pastores de quatro municípios vizinhos. Cada um “guiava” cerca de “22 adultos (vacas)”, o “limite, por pastor”. Foi essa a informação recebida numa curta troca de palavras com um deles, instantes antes de se instalar nas casas de apoio durante a transumância.
Pelo troço das minas de carvão com o urso pardo à distância de um braço
Tarefa seguinte: descer do topo do céu até ao sítio de onde partimos com os pés bem assentes na terra. As mãos são avisadas para permanecerem sempre atentas às travagens controladas, não fosse o travão aquecer (e colar). Uma descida feita com a ajuda das pontas dos dedos.
Entramos em território do urso pardo. Um ponto de observação a partir do lago de Valdemurio, às portas da Senda del Oso (“O Caminho do Urso”, em português) abre o apetite à hora de ganhar forças e acrescentar hidratos e proteínas no corpo.
Esta via verde que se estende por 18 quilómetros, atravessa bosques, montanhas, túneis, pontes, desfiladeiros, grutas, passa por barragens e esconde o antigo trilho férreo de apoio às minas de carvão.
O cercado da Fundação Urso das Astúrias serviu de pausa para um quase-contacto com este animal outrora em vias de extinção (havia apenas 50 nos anos 60-70) e que hoje se estima com uma população a tocar os 400.
A facilidade com que estes pequenos ursos desciam, e principalmente, subiam os íngremes metros do seu habitat natural, a montanha, serviram de inspiração para o que viria a seguir.
Verificadas as baterias, a partir do centro de BTT, em Valles del Oso, sete quilómetros sempre a subir antecipavam a pausa seguinte no Alto de la Cruz de Linares, uma meta a atingir antes se estrear na etapa da Vuelta 2023.
Para este último esforço num dia longo e duro estava reservada uma surpresa ... pessoal. A meio do percurso, após anúncio de abrupta diminuição da percentagem de bateria e confortado pelas palavras de quem liderava o pelotão - “está quase, faltam 3 ou 4 quilómetros, não te preocupes que chegas lá cima” - soltámos o João Almeida dentro de nós, reduzimos ao mínimo olímpico a pedalada elétrica e demos força aos músculos para chegar ao topo sem ser de empurrão.
Conseguimos. Cada metro escalado foi como uma pincelada numa capela Sistina pessoal. Respirámos fundo. Terceira subida feita.
A descer todos os anjos ajudam e fomos ao encontro da casa ambulante das bicicletas, incapaz de alcançar, dada a estreiteza da estrada, o que os humanos conseguem em cima de uma bicicleta.
De ego massajado prosseguimos viagem. Próxima paragem: Artiem Asturias hotel - hotel amigo das duas rodas onde viríamos a deixar escorrer a sidra pelo esófago.
Picos da Europa ou o estado em que a Natureza fica quando é deixada sozinha
Último dia reservado aos Picos de Europa, montanha densa, desenhada como o primeiro Parque Natural em Espanha, em 1918.
Não embarcámos na rota. Virámos, ao mesmo tempo, para uma viagem de carro até ao aeroporto localizado entre Gijon, cidade portuária e Oviedo para rumar a Madrid.
Nem mesmo de vista aérea alcançamos a vista de Cangas de Onís e a ponte romana, porta de entrada dos Picos da Europa, cujos mais de 100 anos de conservação ativa reproduziu um exemplo daquilo que a Natureza consegue alcançar quando deixada sozinha pelo Homem.
Nem tão pouco deitámos olho na Basílica, nem nos Lagos Covadonga, cujo drama de subida vive estampado no rosto dos vencedores recentes da Vuelta, Nairo Quintana, Thibaut Pinot e Primož Roglič.
Ficará para uma próxima oportunidade, prometemos a nós mesmos. A fazer de carro, mota, bicicleta ou mesmo a pé.
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