Artur Carlos de Barros Basto nasceu em Amarante a 18 de dezembro de 1887. Educado pela mãe após a separação dos pais, foi do avô paterno, Francisco Carlos de Barros Basto, que conheceu "a ascendência judaica da família" e a "doutrina hebraica".

Mas é pelos feitos militares que fica conhecido em primeiro lugar, já que se tornou "militar de carreira condecorado com diversas medalhas, nomeadamente a Cruz de Guerra", de acordo com a nota biográfica do Centro Português de Fotografia, ou não tivesse registado parte da sua vida "em diários escritos e em fotografias", principalmente o que diz respeito à sua participação na Primeira Guerra Mundial a partir de 1917, que lhe valeu o título de Capitão.

A sua carreira teve início anos antes, em 1906, quando se alistou voluntariamente no Regimento de Artilharia n.º 4, em Amarante. O percurso continuou e foi promovido a Alferes em 1912, e a Tenente em 1916. Antes, em 1910, participou nos movimentos políticos republicanos no Porto, onde morava, e foi ele que hasteou a bandeira republicana no 5 de Outubro, na janela da Câmara Municipal.

Porém, a vivência religiosa não ficou esquecida neste tempo: aos 19 anos, enquanto cumprir serviço militar em Lisboa, tentou frequentar a sinagoga, mas não o aceitaram. Posteriormente, durante a Guerra, "contactou com a comunidade judaica francesa" e ficou "cada vez mais inclinado a praticar a religião dos seus antepassados".

Já depois do conflito, em Tânger, Marrocos, "sujeita-se a um exame perante um Tribunal rabínico (Beit Din), onde é admitido no seio da comunidade judaica". Nessa altura, "é submetido à circuncisão e recebe o nome hebraico de Abraham Israel Bem-Rosh". Quando regressa a Lisboa, em 1921, já não há recusas: "apresentou-se na sinagoga como judeu orgulhoso do seu certificado, ali casou com uma judia [Lea Montero Azancot], e voltou com ela para o Porto".

E é na Invicta que funda, em 1923, a Comunidade Israelita do Porto, "com cerca de 20 comerciantes judeus da Europa central e de leste", tendo por objetivo trabalhar "no sentido de localizar nesta cidade o centro da comunidade nortenha, com a construção de uma sinagoga", inaugurada a 16 de janeiro de 1938 — e cujo processo registou também em fotografia.

Um militar na sinagoga — e está instalada a polémica

Contudo, é precisamente o seu envolvimento com a comunidade judaica/israelita que cria polémica e que o faz vir a ser conhecido como "o Capitão Mal-Amado". "Nos anos 30, com a mudança de regime, começou a ser conotado com a oposição, e a sua dedicação e empenho a favor do judaísmo fazem surgir no exército protestos e a reações anti-semitas, acusando-o de ser homossexual por presidir à circuncisão de jovens judeus", é explicado na nota biográfica.

Já em 1934, foi aberto um processo na PSP contra Barros Basto, com base numa denúncia anónima, mas acabou por ser arquivado no mesmo ano. Dois anos depois, a história repete-se, mas desta vez é o Tribunal Militar quem instaura um processo, "com uma componente penal e uma componente disciplinar". Daí surge a condenação a uma pena de "Separação do Serviço", já que foi referido que ficou "provado que interviera nas operações de circuncisão dos seus alunos". Num outro processo, o Capitão foi acusado de "práticas homossexuais" na sua passagem pelo Quartel de Bragança.

Com tudo isto, Barros Basto é afastado do exército em 1937, por se considerar que não tinha "capacidade moral para prestígio da sua função oficial e decoro na sua farda". Na decisão, aprovada por unanimidade, é referido que a prática da circuncisão afetava a sua "respeitabilidade", bem como "o decoro militar".

Por outro lado, é frisado que o Capitão não usou "qualquer atitude legal ou mesmo violenta" para livrar a sua honra e que apenas apresentou queixa depois de o assunto estar a cargo dos militares.

Miriam Barros Basto, a filha mais nova, contou em 1996, no programa de documentário Lugar da História, da RTP, as suas memórias sobre o dia em que o pai foi afastado do Exército. "O meu pai estava em pé, fardado, com a farda — que era fechada — um bocadinho aberta, e tinha um revólver ao lado. Nessa altura, disse 'o pai já vem' e eu dei-lhe um beijo, como era costume. Agarra-se a mim e desata num choro, uma coisa enorme, e eu não percebi. Mais tarde vim a perceber que foi o dia em que ele veio de Lisboa", recordou.

Isabel Barros Lopes, filha de Miriam e neta do ex-Oficial, também guarda memórias do homem com quem viveu na mesma casa até aos oito anos. "Tenho memória de um avô muito presente. Tinha os mimos todos, era um avô que contava imensas histórias, fazíamos uns passeios de verão pela Avenida da Boavista, à noite", conta em entrevista telefónica ao SAPO24.

E há um episódio em específico que diz fazer um bom retrato da pessoa que era o Capitão, sempre próximo de todos. "Lembro-me de um sítio no quarto dos meus avós onde havia rebuçados de mentol, uma caixa sempre cheia. Só aos meus 18 anos é que a minha avó me disse que era o meu avô que ia enchendo a caixa e nunca deixava acabar. Dizia 'estão a acabar, vou ali comprar mais para a pequena'. Achei delicioso aquele ato de avô que tem este tipo de atitudes com a neta", recorda.

Contudo, admite que nem sempre soube o que tinha acontecido a Barros Basto. "Fui sabendo a história aos poucos. Soube primeiro a parte da comunidade, relacionada com a sinagoga e com todo o edifício, que era quase uma segunda casa. Até que a minha mãe me foi contando que o meu avô tinha tido muitos problemas e que tinha sofrido muito com tudo aquilo, mas a história em detalhe soube quando li, talvez em 1994, notícias que saíram no Público com o que nunca deveria ter sido divulgado, porque são as falsidades e peças processuais que nos chocaram a todos", frisa.

Por outro lado, também foi esta confrontação com o processo do avô que levou Isabel Barros Lopes a "avaliar quem era aquela pessoa". "Fiquei com uma grande admiração. Quando a minha mãe faleceu, foi como uma herança que passa. A partir daí fiquei envolvida e senti-me na obrigação de fazer justiça".

Por isso, agora critica o que levou ao afastamento de Barros Basto, apesar de não ter vivido esse período. "Na base da separação do meu avô do Exército estiveram cartas anónimas caluniosas — a velha tática contra os judeus — que o acusavam de comportamentos imorais. O Estado aproveitou aquelas denúncias para investigar a vida do meu avô até ao limite e, uma vez que as acusações eram falsas, improvisou uma vergonhosa condenação por ele intervir nas operações de circuncisão dos seus alunos", afirma em comunicado enviado ao SAPO24.

Para esta leitura contribui o que muitos referem sobre o Capitão Barros Basto: o facto de ser assumidamente um homem da oposição e um judeu durante o Estado Novo fizeram com que fosse seguido pela PIDE — que até acompanhou a família no velório do ex-Oficial — e também o seu envolvimento na Maçonaria.

Apesar de tudo, o envolvimento do Capitão com a comunidade judaica não esmoreceu. Durante a Segunda Guerra Mundial, Barros Basto, juntamente com a Comunidade Israelita do Porto, prestou auxílio aos refugiados judeus que escaparam ao conflito e ao Holocausto. Por isso, é conhecido pelos judeus como o "Apóstolo dos refugiados", nome que lhe foi dado pelo historiador judeu Cecil Roth, e também como o "Dreyfus português", em referência a Alfred Dreyfus, um militar francês de ascendência judaica que foi injustamente acusado de passar documentos militares secretos ao exército alemão, no século XIX.

Todavia, a família de Barros Basto tem travado uma luta que dura há três gerações pela reintegração póstuma do ex-oficial no Exército, por considerar que a separação foi injusta. Como reforço deste facto estão os últimos momentos do Capitão: no leito de morte, em 1961, exclamou que um dia lhe seria feita justiça e foi enterrado no cemitério de Amarante "envergando a farda com a qual sempre serviu a sua pátria".

Os (demorados) passos para a reintegração

Anos mais tarde, em 1975, já depois da Revolução do 25 de Abril, foi determinada a reintegração dos servidores do Estado, militares ou civis, que tivessem sido afastados por motivos políticos. Por isso, a viúva de Barros Bastos, Lea Montero Azancot, na altura com 82 anos, entregou um requerimento a favor do marido, dirigido ao então presidente da República, o General Costa Gomes.

"Meu marido era Capitão da Infantaria e em 1937 foi vítima duma infame e miserável calúnia levada a efeito por pessoas de má índole e baixeza moral que lhe promoveram a organização de um abominável processo disciplinar que teve por finalidade o seu afastamento do serviço militar que sempre serviu dignamente. Para prova está a sua folha de serviços que, entre outras, tem averbada a 'Cruz de Guerra' conquistada em França, quando da I Guerra Mundial", explicava.

"Do processo então instaurado ao meu falecido marido não ficou provada a acusação de aberrações execrandas que lhe eram imputadas, mas apenas o facto de ele seguir e praticar os preceitos da religião israelita; ele foi nesta cidade do Porto o fundador da sinagoga. Para os senhores Generais do Conselho de Disciplina que o julgaram foi tido como indigno para um Oficial do Exército a prática das cerimónias religiosas que a Lei de Moisés manda praticar nas pessoas dos seus iniciados e, somente por esta prática, foi imposta a sua separação do Exército, sancionada pelo então ministro Santos Costa", evidenciava também.

Lea Montero Azancot garantia ainda que o marido foi "sempre atormentado pelo desgosto sofrido" até à morte, falecendo "sem ter conseguido a sua reabilitação moral e reintegração das fileiras do Exército". Além disso, afirmava que o sucedido era apenas uma forma de "aniquilar os adeptos dos credos religiosos que não fossem católicos", pelo que Barros Basto seria "uma vítima da feroz perseguição político-religiosa".

Apesar dos argumentos, a viúva viu recusado o requerimento de integração do antigo militar, uma vez que foi referido que as acusações de homossexualidade se mantinham. Na altura, ainda eram motivo suficiente para banir um militar das Forças Armadas.

No parecer, é descrito que o Capitão foi separado do serviço por "práticas homossexuais com vários alunos do Instituto Teológico Israelita do Porto, de que era diretor, práticas essas que mantinha de longa data — há mais de dois anos e menos de cinco — e que nada têm a ver com as cerimónias prescritas pela religião semita".

Nessa sequência, explica-se ainda que seria possível "duvidar-se do significado real de tal atitude do então arguido" para com dois dos alunos, "visto terem sido por ele circuncidados", mas quanto aos restantes [dois] alunos, nenhumas dúvidas poderão subsistir".

Apesar da decisão, a família continuou a lutar, passando depois essa tarefa para a filha Miriam. Já em 2011, a neta Isabel Barros Lopes entregou uma petição na Assembleia da República que solicitava a reintegração do Capitão Barros Basto no Exército. "Nessa sequência, os Grupos Parlamentares do PSD, PS, CDS-PP e BE elaboraram conjuntamente um Projeto de Resolução", que foi aprovado por unanimidade em dezembro de 2012 e recomendava ao Governo que o avô da peticionária recebesse o seu cargo de volta a título póstumo — e nunca um inferior.

Num extenso documento, podia ler-se que Barros Basto "foi separado do Exército devido a um clima genérico de animosidade contra si motivado pelo facto de ser judeu, de não o encobrir, e, pelo contrário, de ostentar um proselitismo enérgico convertendo judeus portugueses marranos e seus descendentes".

"Depois de uma recomendação do Parlamento ao Governo, em 2012, com vista à reintegração de Barros Basto, e de o Chefe do Estado Maior do Exército propor que tal reintegração se fizesse no posto de Coronel, não mais recebi qualquer notícia, o que é chocante", diz Isabel Barros Lopes.

Ao SAPO24, a neta do ex-Oficial evidencia que há mesmo "pouca vontade em fazer aquilo que é justo ser feito, que é a reintegração, de forma a corrigir o erro" associado ao processo de Barros Basto. "É um caso fácil, a injustiça é tão evidente que não há razão para que o assunto não seja resolvido. É um assunto que pesa na família", garante.

Entretanto, o processo continuou a correr, mas nunca se chegou a nenhuma conclusão. Em 2015, um parecer entregue na Assembleia da República referiu que foi apresentado um projeto-lei para a reintegração do Capitão no Exército, de forma a ser "feita justiça para com uma situação que já se desenrola há demasiados anos e que se consubstanciou numa inaceitável segregação político-religiosa, num inadmissível atentado à liberdade religiosa e de culto e num atropelo dos mais elementares direitos fundamentais".

Assim, era definido que o projeto-lei estava em "condições constitucionais e regimentais para ser debatido na generalidade em Plenário".

Isabel Barros Lopes recebeu novidades em 2018, quando o Bloco de Esquerda fez aprovar uma lei que permitia a reintegração de oficiais afastados por razões políticas ou político-religiosas. "Logo fui contactada pelo grupo parlamentar daquele partido que afirmava que a reintegração póstuma do meu avô poderia ser realizada à luz daquela nova legislação. No entanto, uma vez mais, o meu requerimento foi indeferido pela Comissão de Avaliação porque o meu avô não estava vivo com mais de 130 anos", justifica.

Segundo a neta do Capitão, a Comissão de Avaliação alegou que o pedido teria de ser realizado pelo próprio Barros Basto. Contudo, Isabel Barros Lopes, enquanto descendente do Capitão, voltou a pedir, através de um requerimento, a 9 de maio de 2022, a reintegração no Exército a título póstumo.

"Estas últimas respostas recebidas vão ao encontro do que já foi dito à minha avó e à minha mãe nos anos 70.  Tinham sempre umas razões [a apontar], ou porque não era exatamente a alínea certa que se aplicava àquele caso, ou porque havia outra, ou porque não era o argumento necessário", recorda.

"Se o pedido fosse mal colocado ou seja o que for, era natural que, se houvesse vontade em resolver, dissessem qual era a forma correta de fazer o pedido. Desde essa altura até aos dias de hoje isso vai-se repetindo. É insultuoso para mim, para a família, para a memória [do Capitão] e para o país continuarmos a ouvir este tipo de respostas. Não há explicação ou justificação para que a reintegração póstuma não possa ser efetuada", garante Isabel Barros Lopes.

Assim, o próximo passo será "avançar até ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos caso o assunto não seja resolvido em Portugal".

"Apresentei um novo pedido à Comissão de Apreciação que envolve a Caixa Geral de Aposentações, o Exército e a Força Aérea portuguesa", explica, mas novamente foi negado.

"Recorrerei para o Tribunal Administrativo e, depois, para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, caso o pedido venha a ser recusado novamente. Pretendo evitar que esta matéria transite para as minhas filhas", conclui