Anabela Neves é coordenadora do Gabinete Médico-Legal e Forense da Grande Lisboa Norte. Todos os meses passam-lhe pelas mãos dezenas de casos de abuso sexual de crianças e jovens. Explica, revelando detalhes chocantes, o sofrimento dos miúdos, a maioria raparigas, e a atuação dos predadores, quase sempre homens. Começa a conversa com um aviso: se vamos falar disto, só o podemos fazer "de coração bem aberto".
E, conhecendo estas histórias, percebemos porquê. Foi há um ano, eram dez da manhã, a Polícia Judiciária (PJ) é chamada a uma escola de Loures. Passaram sete horas até a comunicação ser feita. Uma pequena de 12 anos, que vivia com a irmã mais velha na época Covid, revela à professora que é abusada pelo cunhado: cópula, coito oral, agressões físicas e psicológicas. A perícia médico-legal confirma, tinha lesões recentes. A mãe é chamada à escola e a irmã e o cunhado também comparecem. O suspeito confessa e, com provas materiais, é preso 12 horas depois da denúncia.
A Polícia Judiciária recebe cerca de 200 denúncias de abusos sexuais de crianças e jovens por mês. Só entre janeiro e setembro deste ano foram 1737. Dos casos apresentados, 76% foram crimes presenciais, 24% online. Foram detidas 153 pessoas, uma média de 17 por mês. Em Portugal, mais de metade dos abusos sexuais são contra crianças e jovens e na Europa uma em cada cinco crianças é vítima de alguma forma de violência ou exploração sexual.
Anabela Neves garante que a Polícia Judiciária "está atenta e tem feito muito e bom trabalho". Com o Gabinete Médico-Legal e Forense da Grande Lisboa Norte, que coordena, está estabelecido que o primeiro contacto é sempre da PJ, que depois se encarrega de "distribuir" os casos por um dos mais de 27 gabinetes das três delegações do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF).
A participação da PJ, tal como do INMLCF, é importante para a recolha de provas materiais e a rapidez de atuação (a lei prevê até 72 horas após o crime), é fundamental. Anabela Neves confirma uma compatibilidade de 93,51% entre a queixa e o exame médico-legal. Mas lembra que ainda há muito a fazer, nomeadamente em termos de consciencialização e formação de professores e profissionais de saúde. Na sua área, desde o início deste ano e até final de Outubro, apenas tiveram assistência médica 52,17% das vítimas, quase sempre no Serviço de Urgências do Hospital de Vila Franca de Xira.
Mas há outro fator importante neste processo, a vitimização secundária (reviver a mesma história de horror vezes sem conta), daí a necessidade de criar este circuito oficial de queixa, com a Polícia Judiciária no início da cadeia.
Dia 5 de abril de 2021. Na Penha de França, em Lisboa, uma criança de nove anos diz que é abusada por um vizinho a quem a avó aluga casa. Depois de uma série de ofensas entre proprietária e inquilino a PJ é chamada ao local. O indivíduo é detido. Os crimes são provados, o agressor é julgado e condenado a 25 anos de prisão em cúmulo jurídico (conjunto das penas), oito anos de prisão efetiva e a proibição de contactar com crianças ou vir a trabalhar em profissões relacionadas com crianças. Entre a queixa e a condenação passaram seis meses e meio, graças à rápida atuação da PJ.
A regente da cadeira de Medicina Legal e Ciências Forenses do Mestrado Integrado de Medicina da Nova Medical School revela que em quase 86% dos casos os abusos são cometidos em casa da vítima. O restante divide-se em partes iguais por via pública, casa de amigos e escola.
O agressor é 16% das vezes o padrasto ou similar, 12% das vezes um irmão, 4% das vezes o pai, 4% das vezes o avô e 8% das vezes alguém conhecido. Em quase metade das vezes os abusos são recorrentes e uma percentagem elevada envolve agressões, físicas e psicológicas. As vítimas sofrem em média mais de um ano de abusos até o revelarem a alguém.
Anabela Neves conta que "isto é tão dramático como um palco de guerra, em algumas estatísticas pior". Muitas vezes estas crianças não sabem sequer o que lhes está a acontecer, noutras acreditam até que será uma coisa normal e noutras ainda o sentimento de vergonha ou de culpa é tão grande que pode levar ao suicídio.
Concelho de Oeiras. O pai de duas crianças, uma de sete outra de dez anos, apresenta queixa contra "um vizinho exibicionista". A polícia começa a investigar, e as crianças mencionam visualização de filmes e masturbação. O indivíduo é detido, julgado e condenado a 99 anos de prisão em cúmulo jurídico. A sentença final é de 18 anos de prisão. Acontece que, afinal, estava envolvido em crimes de abusos sexuais contra três meninas e dois meninos.
Nos casos de abuso sexual de crianças, "5% do total são pedófilos, tudo o resto são predadores", diz a médica-legista, que recorda que não podemos partir para estes casos como "ato de vingança" ou "com ódio". E deixa um alerta: "Não é com a castração química que se vai resolver o problema". Porque, "como provam diversos estudos feitos nos Estados Unidos, onde em alguns estados a castração química ou física é permitida, o agressor continua a sentir desejo sexual".
Em Portugal, 15% das queixas são falsas. Normalmente, adolescentes para justificar namoricos ou notas baixas na escola, mas muitas vezes pais em conflito ou processo de divórcio: "Mães que acusam os pais de abusar das filhas ou pais que acusam o companheiro da mãe, para ficarem com o poder paternal". Nada disto é no superior interesse da criança, que muitas vezes acaba "por rebentar num pranto" no gabinete da médica-legista. Afinal, é melhor pecar por excesso - "e confiar que a PJ e as instituições vão fazer o seu trabalho bem feito" -, do que fechar os olhos e deixar andar.
Uma conversa com Anabela Neves, que passa ainda pelo tema da violência no namoro - "esta malta nova é muito pouco exigente" -, as chamadas violações de Ano Novo (atenção, vêm aí as festas), os comportamentos de risco e os exemplos que chegam de cima.
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