Joana nunca teve nenhum sintoma que a preocupasse, mas "um altinho" no pescoço levou-a ao médico. Uma, duas, três vezes. "À terceira ou quarta vez" a médica também estranhou, e é uma ecografia que há-de mudar a vida da açoreana, na altura com 15 anos. O diagnóstico de Linfoma de Hodgkin, um cancro do sistema linfático, havia de chegar ao fim de uma semana de internamento. Com a notícia do cancro vinha também a de que se teria que mudar para Lisboa. "Não queria acreditar, nunca tinha ido a Lisboa. Foi chocante", conta Joana Laranja ao SAPO24.

Para a, então, adolescente entre as preocupações que a assolaram nenhuma estava diretamente relacionada com a saúde. "Na altura fiquei mais preocupada por causa dos estudos, não foi por causa da doença. Estava no 10º ano e tinha acabado de entrar no curso profissional de contabilidade, que foi o que eu sempre quis. Mas aquele curso, nos Açores, só abre de três em três anos. Não conseguia acreditar só iria daí a três anos."

É aqui que começa a formar-se o grupo de apoio que a ajudará a poder continuar a ter preocupações de adolescente, sem se focar no cancro. Ainda nos Açores, é a assistente social do Hospital da Terceira que fala a Joana, e à sua mãe, da Associação Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro -, e que trata de todo o processo de arranjar acolhimento. "Eu lembro-me que foi rápido. Chegámos a Lisboa num fim-de-semana que passámos num apartamento, mas na segunda fomos logo para a Acreditar."

A Acreditar é a mesma associação que mudou a vida de Margarida Cruz. Em 2002, a multinacional de seguros onde trabalhava sai de Portugal. Sem vontade de ir para o estrangeiro, a gestora estava numa fase da vida em que "queria experimentar coisas novas". "Cruzei-me com uma pessoa que procurava alguém para a fase de profissionalização da Acreditar. Até aí a associação já tinha tido uma obra começada em 1994, com uma ação de um grupo de pais, e já tinham muito trabalho feito, mas em regime voluntariado e sentiram necessidade de ter uma profissionalização."

Com uma filha pequena achou que seria uma ótima opção durante um "horizonte temporal curto, até à minha filha ser um bocadinho maior". 21 anos passados reconhece que é um lugar comum, mas não tem vergonha de o dizer, "apaixonei-me pelo projeto".

É na casa da Acreditar que se dá o primeiro embate de Joana com a realidade, "eu fui muito bem recebida, mas olhava para as pessoas e pensava: o que é isto? Principalmente as crianças carecas, nunca tinha visto uma criança com cancro". A adolescente conseguiu sempre ter a sorte de olhar para os outros sem se imaginar a ela. "Nunca pensei que pudesse ser o meu futuro." Quando a médica lhe disse que o seu cabelo também ia cair, preferiu focar-se nos casos raros em que isso não acontece. "Faz parte do meu feitio o pensamento positivo."

A experiência de Margarida, o seu choque com a realidade, não é muito diferente do de Joana. "A minha filha tinha dois anos quando entrei na Acreditar, quando me comecei a cruzar com todas as crianças que a Acreditar apoia, tinha alguma dificuldade em gerir emocionalmente a situação. Principalmente nas crianças que estavam na idade mais próxima da da minha filha. E notei que isso ia acontecendo à medida que ela ia crescendo. Cada vez que encontrava uma criança mais próxima da idade dela ficava mais abalada." Explica, ao SAPO24, que foi aprendendo a lidar com esses sentimentos. Mas que se por um lado, ser mãe a fazia sentir todos os medos, por outro também lhe deu "mais sensibilidade para perceber a vivência daqueles pais. Não é que não pudesse ter uma capacidade de me por, de alguma forma, no lugar deles, mas o facto de ser mãe deu me uma capacidade maior de perceber." Embora reconheça que há uma dimensão de empatia, mas que nunca poderá ser total. "Nós nunca percebemos totalmente . Felizmente nunca passei por uma situação destas e acho que nunca conseguimos perceber integralmente o abalo que estes pais têm quando lhes é dito que têm um filho com cancro. Acho que ninguém percebe, mas o facto de ter filhos ajudou-me a percebe-la melhor."

A Acreditar foi a casa de Joana durante cinco meses e uma semana, enquanto fazia quimo e radioterapia. Passados três e seis meses voltou a chamar aquele espaço casa, para saber que os tratamentos tinham resultado. Durante os cinco meses em que lá viveu em permanência nunca desistiu do tão sonhado curso de contabilidade. A diretora de turma enviava-lhe os materiais por email e fazia os testes no IPO. Na Acreditar tinha as aulas de inglês e o espaço seguro para estudar.

A escolaridade,  a manutenção da normalidade da vida, é muito importante para a Acreditar. Este apoio a inglês que Joana refere, faz parte do projeto Aprender Mais, Margarida explica que com a ajuda de professores e voluntários "acompanham as crianças ou jovens, consoante as suas necessidades, para que possam recuperar aquele bocadinho de tempo que perderam, ou as matérias que ficaram em falta. E para que eles continuem, sobretudo, a sentir que fazem parte da sua turma, dos seus amigos e estejam integrados. Para nós é fundamental que eles continuem a ter o sentimento da maior normalidade possível."

Hoje, livre de cancro, Joana levou o sonho um bocadinho mais longe. Está a tirar o curso superior de Contabilidade, mas sem a ajuda da Acreditar não teria sido possível. Desde que deixou de viver na Associação, que a Associação passou a viver em si. Manteve o contacto e o grupo de apoio. É Jéssica, uma funcionária da Acreditar a quem chama de amiga, que lhe fala nas bolsas de estudo. Joana prepara toda a documentação necessária, incluindo uma carta "a dizer que tinha concorrido a todas as bolsas. Escrevi a explicar que precisava de ajuda porque tenho que ter que ter cuidado com a alimentação. Eu tenho que ter uma alimentação específica e as coisas hoje em dia estão caras..." Hoje, o dinheiro que recebe da acreditar paga as propinas no ISCAL e a alimentação. A casa na residência universitária é paga com outra bolsa.

Também esta bolsa é no âmbito do Aprender Mais, Margarida não consegue esconder a satisfação enquanto explica. "Damos bolsas de estudo a jovens, sobretudo muitas agora, vocacionados para percursos universitários mas que tenham dificuldade em continuar os seus estudos. Procuramos dar um reforço, porque nós sabemos hoje que não é tanto a questão das propinas - não são assim tão altas sobretudo no ensino que não seja privado -, mas com a deslocação muita gente tem despesas muito grandes de habitação. Portanto, é uma área que tem que ser de certa forma ajudada. E nós procuramos ajudá-los porque queremos muito que eles tenham uma boa vida, e consigam tirar os cursos com que sonharam. Muitas vezes mudam de curso pelo facto de terem tido um cancro, e é importante também ajuda-los nessa rede."

As bolsas, à semelhança dos outros projetos da associação, funcionam com a ajuda de mecenas privados. "A acreditar procura dar a conhecer este projeto a empresas, e várias entidades, explicando qual é o objeto e quantas bolsas é que procuramos dar em cada ano. Depois consoante o número de apoios que conseguimos reunir, percebemos quantas bolsas conseguimos subsidiar. A partir do momento que uma bolsa está aberta procuramos que, desde que haja aproveitamento o jovem,  a bolsa fique aberta até ao fim do seu ciclo de estudo. E abrimos mais se houver mais apoios. É muito com o apoio de empresas e particulares, que sensibilizados com a vivência destes jovens, apoiam numa área que é importante e que é fundamental."

Desde os quinze anos até hoje que Joana mantém contacto com amigos da Associação, desde outras pessoas que lá viviam, aos voluntários. Há uma em especial de que fala com muito carinho, "quando vim estudar para Lisboa, fiquei muito doente. Foi a ela que eu liguei. Foi ela que me ajudou e me levou ao hospital. Econtramo-nos sempre uma vez por mês. É o meu apoio em Lisboa, tem-me ajudado muito", conclui.

A relação com a Acreditar tem dois sentidos. Joana estar-lhe-á grata a vida toda, e quer que a Associação possa fazer o mesmo por outras crianças. Sempre que é preciso ajudar, está na primeira fila seja para gravar vídeos, ou escrever cartas de boas vindas.

Entre as várias preocupações da Acreditar, neste momento, a ampliação da casa de Lisboa ocupa uma boa parte do tempo. E cruza-se diretamente com a história de Margarida Cruz na Associação. "A casa da Acreditar estava mesmo a acabar de ser construída quando eu entrei. Era uma casa para 12 famílias e, na altura, correspondia às necessidades existentes, o protocolo foi feito sobretudo com o IPO de Lisboa e desde então que se acolhem as crianças e jovens em tratamento ambulatório no IPO de Lisboa e as suas famílias."

Mas a realidade do país e da doença mudaram, e obrigaram a Associação a mudar também, explica Margarida. "Uns anos mais tarde, surgiu a oportunidade de fazer uma casa em Coimbra, junto ao hospital pediátrico de Coimbra - que é onde estão em tratamento as crianças todas da zona centro do pais , e também algumas que vêm de outros locais. A segunda casa da Acreditar tem capacidade para  20 famílias, e é a que está menos cheia neste momento." Ao contrário da casa do Porto, que abre as portas em 2017, tem capacidade para 16 famílias e tal como a de Lisboa também está cheia.

Joana, ex-moradora da casa de Lisboa, reconhece que a ampliação da casa vai ajudar muito, "na minha altura era muito complicado entrarem mais famílias porque estava sempre cheia. Mais quartos ajudam mais famílias." E recorda a sua experiência, "estar muito perto do IPO, é um descanso", e lembra todo o apoio "a Acreditar ajuda muito, por exemplo os meus estudos..." Afirma como quem questiona o que teria acontecido sem este apoio.

A realidade de Lisboa é a realidade de uma lista de espera constante. Margarida explica, "cerca de metade dos casos de diagnóstico de cancro pediátrico acabam por ser tratados em Lisboa e, portanto, a pressão sobre Lisboa é grande." Se por si só este seria já um problema, acresce que "a maioria das crianças e jovens que vêm para Portugal para tratamento, ao abrigo de acordos na área de saúde, vindos de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, vêm maioritariamente para Lisboa. E são famílias que precisam de um tempo de apoio muito dilatado, muitas vezes três anos às vez mais - o que é um apoio bastante alargado -, portanto esta pressão junto de uma casa que tinha já por si pouca capacidade, levou a esta necessidade de ampliação."

No fim da obra, que atrasou o lançamento da primeira pedra por causa da pandemia, a casa que agora tem capacidade para 12 famílias, conseguirá ajudar um total de 32. "Os edifícios vão passar a funcionar como um só. Felizmente tivemos a ajuda da Câmara Municipal de Lisboa que nos cedeu um edifício que estava mesmo ao lado do nosso. E que por coincidência era da Câmara e ficou vago."

Um teto maior, é mais esperança, mais ajuda. Joana Laranja lembra que dentro daquelas quatro paredes tudo se torna mais fácil, "sempre ajudava partilhar experiências e ficava tudo mais fácil". Também a sua mãe beneficiou muito do apoio e camaradagem "das outras mães".

Margarida valoriza muito este tipo de apoio da associação, quase tão importante como ter uma cama para dormir à frente do IPO. "Cada situação exige uma análise das possibilidades. E nós procuramos, na medida do possível, ir ao encontro dessas necessidades. Às vezes o apoio é mais emocional, é um apoio de pais para pais, de jovens para jovens. Diria que é apenas emocional. Outras vezes, há necessidade de apoio psicológico, e nós procuramos dar esse apoio às famílias. Reforçando aquilo que está disponível no SNS, e que sabemos que não é suficiente para cobrir as necessidades. Portanto muitas vezes sabemos que temos que avançar por aí e decidimos fazê-lo".

Os apoios que a Acreditar dá são cada vez mais o espelho da realidade do país. E se ter uma criança com cancro é um peso emocional, é também um fardo económico. "Outras vezes temos necessidade de apoio económico, porque as famílias vêem degradadas as suas condições. Não só por terem um filho doente, estarem longe de casa, terem muitas vezes que ter uma parte da família num sítio, e outra parte noutra. Muitas vezes isto é acréscimo de despesas e, às vezes, é necessário um reforço. Muitas vezes já são famílias que tinham muitas carências económicas e, portanto, isto apenas espolotou ainda mais esta necessidade." Conclui a gestora da Associação, "portanto apoio económico, apoio alimentar são também coisas a que nós, em colaboração com os serviços sociais dos hospitais, procuramos responder."

A crise que se sente e a inflação, também batem à porta das famílias apoiadas pela Acreditar. Margarida Cardoso vê os pedidos de ajuda a aumentar, "tivemos que inclusivamente que reforçar a verba dos cartões de supermercado. Reforçámos também o apoio económico para 2023 porque víamos que havia mais pedidos de ajuda das famílias, até de alguns jovens adultos que começamos a apoiar e que sentem muita dificuldade na sua vida. Não só na alimentação, mas também na habitação."

Para a Acreditar um jovem acompanhado durante a doença, é um filho que abandona o ninho. Mas cujos passos em liberdade são acompanhados, sempre com a rede de segurança à disposição. Margarida valoriza a importância destes projetos diretamente ligados à empregabilidade, "capacitação e empoderamento, no fundo é dar ferramentas para que consigam levar com a sua vida para a frente. Há muitos que precisam, e há muitos que têm valências e capacidades que lhes permitem trabalhar connosco. São eles próprios a ajudar os amigos que foram conhecendo na acreditar, e que precisam de apoio." Como quem olha para família a crescer, explica, "nós já temos jovens que apoiámos e que já são pais. Que já têm a sua família."

O tema do futuro independente e o menos limitado possível, é particularmente sensível, porque, como explica Margarida, "um dos problemas dos cancros pediátricos tem a ver com as sequelas. Cerca de dois terços dos sobreviventes de cancro pediátrico têm algum tipo de sequelas. E, desses, pelos menos um terço tem sequelas que são graves. Estas podem, muitas vezes, ter um impacto na orientação da sua vida profissional. Nós procuramos ajudá-los nessa fase tendo em conta as suas atuais características, de forma a que consigam ter uma vida completa, tanto profissional como pessoal."