Quem hoje de manhã passou pela Avenida de Roma deparou-se com um cenário totalmente inesperado, ali a rusga estava a ser encenada e sem presença policial. Mas segundo Miguel Garcia, subscritor e membro da comissão organizadora do Movimento "Não Nos Encostem à Parede", nos bairros "este triste episódio", como o que aconteceu na rua do Benformoso, não é assim tão raro.

Associações que disponibilizam apoio a migrantes:

JRS Portugal — O gabinete jurídico "tem como objetivo assessorar juridicamente os utentes no seu processo de regularização, bem como emitir pareceres e orientações técnicas internas em matérias de Lei de Estrangeiros, Lei de Asilo e legislação acessória". Saiba mais aqui.

Renovar a Mouraria — Centrada na freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, esta associação ajuda com os processos de regularização de quem "vive, trabalha, estuda ou tem filhos que estudam" naquela zona. Conheça o projeto aqui.

Lisbon Project — Este projeto tem como objetivo "construir uma comunidade que integra e capacita migrantes e refugiados". Nesse sentido, tem também disponível um gabinete de apoio jurídico. Fique a par de tudo aqui.

Mundo Feliz — Esta associação ajuda os imigrantes no processo de regularização em Portugal e também na procura de emprego, entre outros serviços. Saiba mais aqui.

Linha de Apoio ao Migrante — Esta linha "tem como principal objetivo responder de forma imediata às questões mais frequentes dos migrantes, disponibilizando telefonicamente toda a informação disponível na área das migrações e encaminhando as chamadas para os serviços competentes". Contactos: 808 257 257 / 218 106 191. Mais informações aqui.

Ao SAPO24, Miguel Garcia, explica que esta manifestação embora tenha como mote "aquele momento da rua do Benformoso", "vai muito além. A nossa luta é contra o racismo, contra a xenofobia, contra o preconceito. Esta é a nossa luta. Uma luta maior." Refere que a rua do Benformoso representou o "momento em que já não dá para continuar a taparmos os olhos ao que está a passar", porque "aquele tipo de ações policiais acontecem com muita, muita frequência em outros bairros".

Ideia que Miguel Cardoso, fundador do coletivo Vozes Coloniais e coordenador nacional da Black Europeans, uma plataforma antirracista europeia, confirma por experiência própria: "Não é nada que nós, as pessoas racializadas, não estejamos habituadas, porque sabemos perfeitamente como é que são as rusgas nos bairros periféricos de Lisboa".

Miguel Cardoso reforça que nasceu em Lisboa, é português e, por isso mesmo, "foi muito triste ver isto", principalmente porque já nasceu "12 anos depois do 25 de Abril,  numa geração que acreditava muito na liberdade, na democracia, no direito de ir e vir."

Miguel Cardoso
Miguel Cardoso

Nuno Ramos de Almeida que além de dirigente do movimento Vida Justa faz também parte da Comissão Organizadora da manifestação "Não nos encostem à parede", reforça esta ideia ao SAPO24: "Este tipo de policiamento é feito normalmente em comunidades pobres, nas periferias".

Acrescenta que existe uma "diretiva das zonas urbanas sensíveis que faz com que os bairros tenham policiamento musculado", e sublinha que, por isso, "mensalmente, as pessoas são colocadas contra a parede, estão lá uma hora, hora e meia, sem se poderem mexer". Contudo, acredita que isto não faz com que deixe "de haver assaltos por causa da droga, por encostarem os comerciantes e os imigrantes à parede", e em resumo, "não funciona nos bairros". Lembra também que é uma realidade silenciosa, porque nos bairros onde este tipo de coisas acontece com regularidade não há visitas tão regulares da comunicação social, "mas como vivemos numa sociedade com telemóveis nós temos profusas imagens deste tipo de policiamento". 

Foi exatamente um vídeo de um telemóvel que foi o motor da indignação que serviu de rastilho ao encontro desta manhã que pretende alertar para todos os sítios onde este tipo de práticas acontece. E que, normalmente, não é em zonas como a Avenida de Roma. Nuno Ramos de Almeida reforça exatamente que "não é bom, nem deve existir, um Estado em que o único serviço social prestado à população da periferia, e às populações mais pobres, é uma repressão policial." Por outro lado, acredita que "as questões da paz social se fazem com desenvolvimento, liberdade, dignidade, pensando e sabendo que estas pessoas que vivem e trabalham em Portugal têm de ser respeitadas, têm de ser como qualquer pessoa".

E, por isso, foi importante para Miguel Garcia reforçar aos jornalistas que esta "não é uma manifestação contra a PSP, é contra a forma como se faz o policiamento" e contra isso só tem uma certeza: "a luta se faz na rua, a luta faz-se de forma pacífica".

Populismo, racismo e percepções

Aftab Uddin Bhuiyan, assistente social e  representante da comunidade do Bangladesh em Portugal, recorda a tristeza que se viveu naquele dia na rua do Benformoso "aquilo não podia ser feito com as nossas pessoas". Acima de tudo, lembra que estão cá de forma legal, "estamos a trabalhar cá, contribuímos com impostos." E sabe que a "polícia não pode ter esse tipo de comportamento". 

Até porque defende que nos últimos cinco anos a situação económica portuguesa beneficiou "muito" das contribuições dos imigrantes. Uma reportagem do Expresso mostra que, em 2023, os trabalhadores estrangeiros contribuíram com €2.677 milhões e beneficiaram de prestações sociais no valor de €483 milhões. O que se traduz num saldo positivo que chega perto dos €2.200 milhões

Marcar presença esta manhã, juntar-se "a muitas pessoas, a alguns políticos e organizações sociais", para Aftab Uddin Bhuiyan era imperioso. Significa aliar-se à comunidade em que está inserido e lutar pelo futuro dos dois filhos que está "a criar".

No fundo, pede que ao Governo que ouçam a sua comunidade porque, acredita, "devemos respeitar todos os humanos, e nós devemos respeitar a nossa democracia." Embora não sinta medo, não nega que os imigrantes estão "realmente assustados com esta situação".

Mas, se por um lado admite haver algum racismo em Portugal, por outro sabe que não se pode tomar as ações da parte pelo todo. "Não posso dizer que os meus cinco dedos são iguais, por isso também não posso dizer que todos os portugueses são iguais." Aos que sofrem de racismo sugere dar-lhes voz e apoiá-los. 

O possível racismo da ação policial foi apontado desde o primeiro dia pelos críticos. Maria João é uma das subscritoras do "Não Nos Encostem À Parede" e esta manhã quis estar presente. "Em solidariedade para com as pessoas encostadas à parede que não fui eu, porque sou branca". 

Acredita que nos dias de hoje este tipo de ação é cada vez mais necessária, "lutar contra o racismo e a xenofobia ainda faz sentido", principalmente, diz, com o aumento dos extremismos. Questionada pelo SAPO24 se a ação da sociedade civil é mais importante quando se trata de comunidades pobres, e sem voz, interrompe para dizer "a sociedade civil somos todos e, portanto, todos devemos apoiar todos. E esse é o pensamento contrário ao dos movimento extremistas que, justamente, acham que o todos exclui muitos."

Para Miguel Garcia o facto de o movimento ter origem na sociedade civil é de extrema importância e vai sublinhando a independência política e ideológica. Fá-lo de forma mais direta quando questionado pelos jornalistas acerca da necessidade daquela rusga. "Dentro do nosso grupo de subscritores, e da comissão organizadora, temos opiniões muito diversas sobre como deve ser uma atuação da PSP, e então acho que há outros fóruns para discutir a forma e o conceito de policiamento. Como não sou filiado em nenhum partido, não tenho qualquer tipo de objetivo político, preferia não entrar nessa discussão, mas o que nos parece muito claro é que não é daquela forma."

Mas é impossível afastar a questão política da discussão,  Miguel Garcia tem "a certeza absoluta, que muitos daqueles que votaram na AD não estão felizes, e não ficaram contentes com aquilo que viram na rua do Benformoso" e garante que "o objetivo é realmente mostrar ao poder político que se pode fazer diferente e que o caminho é o de promover a paz, a paz social, o respeito, a dignidade". 

Por outro lado, Miguel Cardoso não consegue ignorar o facto de "haver um Governo que se diz democrata a surfar numa onda extremista, racista e xenófoba." E, por isso, quer provar ao Governo que não é assim que "vai conseguir ganhar a aprovação da sociedade portuguesa".

Alerta para a perigosidade de se fazer uma "ligação entre a imigração e a insegurança", acrescenta que não só "é totalmente errado", como também "é totalmente mentira". Os dados oficiais confirmam esta afirmação, não permitem fazer essa extrapolação e dão, inclusive, sinais contraditórios. Na população prisional, a percentagem de condenados estrangeiros é de 12,9%, quando em 2012 era de 18,56%. Miguel Cardoso acrescenta que esta realidade é ainda mais premente "nesta comunidade que foi visada na rua do Benformoso, que  é conhecida por ter quase níveis muito baixos ou inexistentes de criminalidade".

Um estudo pedido pelo Público ao INE mostra que o aumento de estrangeiros na última década não se refletiu na evolução do rácio de crimes registados.

Portanto, para este subscritor este tipo de afirmação é "perigosa não só para os imigrantes, mas também para a sociedade em si". Teme que a polarização da sociedade e estas ações do Governo possam "dar força a este sentimento xenófobo e racista que, infelizmente, ainda existe na sociedade portuguesa".

Nuno Ramos de Almeida não tem grandes dúvidas do caminho: "O que nós propomos é que qualquer cidadão, seja pobre ou seja rico, seja branco ou seja negro, seja imigrante ou seja nacional, seja tratado na presunção de inocência e na sua dignidade."

E se dúvidas houver acerca da motivação da ação, alerta "aquilo que conseguiu foi arranjar uma faca de 17 centímetros. Se a ideia era apreender armas, foi um insucesso real". 

Ironiza dizendo que de agora em adiante as rusgas não devem ser feitas de forma "telepática", mas "resolvem-se com respeito, democracia, com direitos sociais, com uma maior igualdade económica, porque os problemas que estão subjacentes não são estes. Aquilo que esta rusga fez parecer é que havia uma grande criminalidade, que é mentira, e que essa criminalidade estava ligada aos imigrantes, o que também é mentira. Aquilo que nós pretendemos é que toda a gente merece ser tratada com respeito. Toda a gente que trabalha, que vive cá, tem que ter liberdade, dignidade e direitos sociais. E a intervenção policial deve ser feita com os cidadãos, não deve ser feita como se fossem inimigos, terroristas, etc. "

Uma manifestação por todos

Se ontem se encostaram à parede na Avenida de Roma foi porque querem que este sábado milhares se juntem na Alameda, às 15h00, numa marcha antiracista. Maria João acredita que juntar-se-á "muita, muita gente", "porque, de facto, nós não somos aquilo que às vezes parece que somos. E a solidariedade, a igualdade e os direitos para todos, continuam a contar e continuam a ser absolutamente estruturais no nosso entendimento enquanto sociedade."

Para Miguel Cardoso a marcha é a tradução do empenho em "mostrar ao país, à sociedade e principalmente ao Governo que nós estamos comprometidos com a causa antirracista", "numa só voz vamos dizer não ao racismo, não à marginalização dos imigrantes, não à discriminação e não à xenofobia."

Miguel Garcia fala com a propriedade de ter sido um dos organizadores da marcha e refere que "o nosso objetivo é mostrar ao poder político que se pode fazer diferente e o caminho é realmente promover a paz, a paz social, o respeito, a dignidade." E, para isso, convida "toda a gente a estar presente amanhã num grande movimento da sociedade civil, de todos os quadrantes políticos a estarem presentes e a manifestarem-se connosco contra o preconceito, contra o racismo, contra a xenofobia", na "manifestação da Alameda ao Martim Moniz, contra o racismo, contra a xenofobia, contra o preconceito".

Espera poder "mobilizar o maior número de pessoas para amanhã podermos dizer alto e bom som que os portugueses não são racistas, não são xenófobos, e querem uma política de integração para os migrantes, e querem um país que respeite os direitos humanos e que seja um exemplo, numa Europa doente, temos de ser um exemplo de uma mudança."

Quando questionado pelos jornalistas sobre o cunho partidário do movimento, Miguel Garcia volta a frisar que "esta é uma causa social, mas como democratas que somos não impedimos qualquer partido de estar presente". Apesar de alguns partidos se terem juntado à causa, o ""Não Nos Encostem à Parede" "é um movimento da sociedade civil, de pessoas", que "não está conotado com nenhum partido específico", ainda que alguns dos subscritores façam parte de outros movimentos partidários. "Somos sim instituições e, pelo que eu sei, a maior parte são instituições conotadas com partidos políticos". 

Ao mesmo tempo, vai estar a acontecer uma vigília organizada pelo partido Chega, na Praça da Figueira, com o mote "Pela autoridade e contra a impunidade". André Ventura chegou a publicar na rede social X uma fotografia de um panfleto falso da manifestação "Não Nos Encostem à Parede", no qual adiciona a frase "Portugueses daqui para fora", em destaque.

Em resposta aos jornalistas, Miguel Garcia recusa a ideia de que esta vigília é uma "contra-manifestação". Acredita, sim, que o partido "tem como objetivo promover ou dar mais poder à PSP", e que, do outro lado da luta, o movimento "Não Nos Encostem à Parede" "tem uma visão completamente distinta da forma [de atuação], mas não é contra a PSP".

Miguel Garcia tem as expectativas altas para a marcha. Aftab Uddin Bhuiyan, já se sabe, vai estar presente por si, mas mais importante pela sua comunidade e pelos seus filhos.

*Reportagem da jornalista estagiária Ana Filipa Paz e da jornalista Ana Maria Pimentel, edição por Ana Maria Pimentel