Os agricultores europeus têm vindo a sair à rua nas últimas semanas, com protestos que já levaram o Fundo Monetário Internacional (FMI) a alertar para uma possível subida dos preços, caso estes prossigam. Em Portugal, os agricultores reclamam a flexibilização da PAC – Política Agrícola Comum, assim como condições justas de trabalho e de concorrência, entre outras reivindicações. Mas há um problema associado: o excesso de burocracia e os apoios que nunca chegam a ser pedidos até ao fim. É verdade que faz falta mais dinheiro para apostar na tecnologia que pode ajudar o setor, mas o essencial seria aproveitar os recursos e ver como "gastamos melhor ou pior" esses fundos, para que continue a haver comida na mesa.
Francisco Gomes da Silva, professor do Instituto Superior de Agronomia, administrador da AGROGES e ex-secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural do XIX Governo Constitucional (entre fevereiro de 2013 e outubro de 2014), explica ao SAPO24 quais têm sido as principais queixas dos agricultores, o potencial do país e das novas tecnologias e ainda as dificuldades do setor, assentes essencialmente em burocracia.
"Praticamente todos os agricultores são beneficiários da Política Agrícola Comum (PAC)"
Há diferenças nas reivindicações nas diferentes regiões em Portugal?
Agricultores de diferentes regiões do país saíram à rua nas últimas semanas — e as reivindicações ouvidas têm as suas diferenças, mas é mais aquilo que une o território nacional.
"O que pedem não é igual, no sentido em que, de facto, as agriculturas são diferentes. No entanto, o pano de fundo não difere assim muito, no caso português, entre o norte, o centro e o sul, do vale do Tejo para baixo. Portanto, o grosso das queixas ou das reivindicações é relativamente partilhado", refere Francisco Gomes da Silva.
Além do mais, "praticamente todos os agricultores são beneficiários da Política Agrícola Comum (PAC)". Contudo, também há aqueles que não pertencem ao grupo. O motivo? "Porque a informação não lhe chega, porque são mais pequenos, até info-excluídos. E a burocracia de todo o processo de candidaturas é uma barreira suficientemente grande para que estes agricultores não se aproximem do sistema. Isto é a grande diferença", evidencia.
"Como é que se abrem as portas a estes agricultores que não têm acesso ao sistema?"
Neste sentido, a região norte tem uma reivindicação que pretende alterar esta situação e que é perceber "como é que se abrem as portas a estes agricultores que não têm acesso ao sistema e que, portanto, estão excluídos de todo e qualquer tipo de apoio".
"Normalmente já são mais necessitados à partida, porque dada a sua dimensão, dada alguma tecnologia mais rudimentar que utilizam, têm alguma escassez de competitividade. Portanto, por maioria de razão, seria importante abrir-lhes as portas do sistema", explica ainda.
Todavia, a PAC nasceu e evoluiu e neste momento "mantém um bocadinho excluídos esta franja de agricultores". E não só pela dimensão, porque o sistema "prevê um regime especial para a pequena agricultura, mais simplificado, com menos burocracia, com menos controlo". Aquilo a que se chama "pagamento à pequena agricultura".
Em causa está, segundo o administrador da AGROGES, o facto de o procedimento de candidatura ser totalmente informatizado. "Já não há como o fazer de outra forma e, portanto, há sempre uma franja de agricultores que estão de fora, normalmente no centro e no norte do país".
Sabemos o que produzir no país — e como?
E o que se produz no país? De acordo com Francisco Gomes da Silva, é realmente possível "saber o que precisamos de cultivar e o que vale a pena", mas é preciso considerar que "o que cultivamos ou não é uma coisa que tem que ser escolha do agricultor. Cada agricultor sabe o que quer ou não quer fazer".
"Os agricultores são agentes económicos, estão no mercado, correm riscos"
"Não acredito que o Estado tenha capacidade ou conhecimento para determinar o que é que os agricultores, numa zona ou noutra, devem fazer, muito menos a forma como o devem fazer. O Estado não tem essa competência", diz. E continua: "não domina as tecnologias, não é um agente económico e, portanto, será estranho que seja o Estado a dizer que os senhores agricultores ali no Minho têm de cultivar milho e feijão. Não faz sentido".
Por sua vez, "os agricultores são agentes económicos, estão no mercado, correm riscos. E sabem que às vezes as coisas correm bem, outras correm mal e, portanto, são opções do agricultor".
Mas é preciso olhar também para "o modo de fazer" — e o que isso implica ao nível de ajudas.
"No modo de fazer entram, por exemplo, as questões da agricultura de precisão, isto é, fazer da melhor maneira possível na óptica dos recursos. Ou seja, aplicar apenas os recursos que são necessários, no momento em que são necessários e no local em que são necessários", justifica.
"Um exemplo simples é quando pensamos numa fertilização ou numa aplicação de um herbicida numa parcela de terreno que tem uma determinada cultura. Aquilo que se faz tradicionalmente é fazer uma aplicação homogénea nessa parcela, de uma determinada quantidade por hectare. A precisão significa que não vou adubar de forma igual a parcela toda, porque sei previamente que há umas manchas que precisam de mais azoto, outras que precisam mais de potássio, outras que eventualmente não precisam de nada ou, no caso do herbicida, há umas manchas onde a infestação é elevada e, portanto, eu aí devo aplicar o herbicida. Logo, onde não tenho infestantes não é necessário estar a aplicar", nota.
"Não podemos dizer que estas técnicas são usadas por todos os agricultores"
Porém, tal procedimento envolve um certo investimento. "São tecnologias sofisticadas, porque isto significa que os equipamentos têm de estar geo-referenciados, para saberem exatamente qual é o ponto do terreno que precisa de intervenção, e têm de ter também débitos variáveis, já que não podem estar sempre a debitar a mesma quantidade de produto, consoante o levantamento que foi feito do campo".
Apesar disso, já é prática recorrente no país. "Hoje em dia usamos muitíssimo em Portugal. É, por exemplo, não regar a olho, mas sim por determinação daquilo que são as necessidades hídricas em cada momento", o que permite "fazer uma rega mais eficiente, ou seja, gastar muito menos água para que a cultura tenha satisfeitas as suas necessidades".
Mas "não podemos dizer que estas técnicas são usadas por todos os agricultores. São tecnologias um bocadinho mais caras, que exigem maior conhecimento. Até os próprios técnicos das associações têm de aprender para depois poderem prestar o apoio aos agricultores".
Mesmo assim, "são são práticas que vão fazendo o seu caminho" — e prova disso é o facto de os agricultores também falarem no tema nestas recentes reivindicações.
Por outro lado, a verdade é que a PAC não tem nenhuma "medida especificamente vocacionada para apoiar a adoção das tecnologias de precisão", quando Bruxelas, cada vez mais, estabelece metas que só assim seriam facilmente atingidas.
"Foi esquecida, digamos assim. É uma daquelas medidas que, agora um bocadinho à pressa, vai ser apresentada na próxima revisão em Bruxelas, para poder vigorar. Há pelo menos um compromisso de que isso possa vir a acontecer", nota.
O dinheiro que vem de Bruxelas chega?
Entre esses compromissos surgem também medidas monetárias, tão pedidas pelos agricultores."Podemos dizer sempre que o dinheiro nunca chega, não é? Mas em Portugal, quando olhamos para a aplicação da Política Agrícola Comum, a questão não é não haver dinheiro, é a forma como gastamos melhor ou pior esse dinheiro", defende.
"Sabemos que temos uma população mundial a aumentar. Por isso, não podemos reduzir a produção de alimentos, temos de aumentar"
E para isso é preciso ver exatamente como se procede. "Temos de perceber se temos ou não uma aplicação adequada ao melhor desenvolvimento da nossa agricultura, que deve ser muito focado. Hoje em dia — já deveria ter sido no passado, mas hoje em dia é inquestionável —, devem ser medidas de política muito focadas para o aumento da eficiência das tecnologias. É esse o grande desafio que a que a economia como um todo tem, que é ser mais eficiente, gastar menos recursos para produzir".
"No caso da alimentação, todos sabemos que temos uma população mundial a aumentar. Por isso, não podemos reduzir a produção de alimentos, temos de aumentar, mas ao mesmo tempo somos confrontados com o desafio de gerir melhor os recursos que existem. E se não conseguimos fazê-lo bem feito damos cabo do do planeta, digamos assim, ou pelo menos não cuidamos suficientemente dele", frisa ainda.
Assim, "se houvesse mais dinheiro e a política estivesse bem desenhada, do ponto de vista da adoção de tecnologias adequadas pelos agricultores teríamos imensos caminho a fazer".
"Sempre se tentou que a alimentação seja barata, segura para a saúde humana e para o ambiente"
"Não tenho dúvida nenhuma de que esse dinheiro a mais faria muito jeito, porque o que não falta são coisas para se fazerem", atira. Mas há ainda outra vertente a considerar. "Não podemos esquecer que uma parte deste dinheiro que vem de Bruxelas, no âmbito da PAC, se destina a apoiar rendimentos, isto é, não se destina a apoiar nenhuma medida de política em particular, mas sim a apoiar os rendimento dos agricultores. A Europa entende, e bem, que há um custo da alimentação que deve ser distribuído pelos contribuintes e não pelos consumidores".
Desta forma, "se não houvesse este apoio ao rendimento para todos os agricultores europeus, nos diferentes países, teriam de vender mais caros os produtos para terem o rendimento que têm". "A opção europeia nunca foi essa, pois sempre se tentou, por questões sociais, uma questão de equidade, que a alimentação seja barata, segura para a saúde humana e para o ambiente".
"Quando estamos a chegar ao fim de um quadro comunitário de apoio, vemos que não executámos tudo, porque a burocracia na aprovação dos projetos atrasou tudo"
Portugal aproveita mal os recursos que tem
Em Portugal, a grande questão não é apenas não haver apoios para determinado setor, porque estes até vão surgindo. Mas o país deixa-os escapar entre os dedos. Para o ex-secretário de Estado, "somos bastante maus" a aproveitar recursos — e de uma forma geral, "esse mal não é só da agricultura".
"Quando estamos a chegar ao fim de um quadro comunitário de apoio, seja nos fundos da agricultura ou nos fundos para o resto da economia, vemos que não executámos tudo, porque a burocracia na aprovação dos projetos atrasou tudo. E depois andamos a correr na lufa-lufa dos últimos anos para fechar cada quadro financeiro, a tentar executar a totalidade das verbas para não devolver verbas a Bruxelas", recorda.
"Era preciso que tivéssemos políticas mais bem desenhadas"
Mas talvez haja solução. "É claro que se pode dizer que se as medidas de política fossem mais bem desenhadas, se a burocracia fosse menos, se a máquina burocrática do controlo que é exercido sobre este sistema todo fosse mais aligeirada, teríamos maior capacidade de executar, havia menos desistências, etc. Mas a verdade é que é característico nosso, temos sempre dificuldade na execução total dos fundos", considera.
Em primeiro lugar, "era preciso que tivéssemos políticas mais bem desenhadas para ser fácil executar o dinheiro que está à nossa disposição e depois, sim, precisaríamos de mais dinheiro. Certamente que há muito mais para fazer do que aquilo que nós conseguimos fazer com o dinheiro que existe".
Qual o futuro dos protestos?
Para Francisco Gomes da Silva, os protestos das últimas semanas "são importantes na medida em que chamam a atenção", apesar de serem "inorgânicos" por não terem as organizações da área por trás. "É um sinal interessante de vitalidade e de capacidade de protesto de um setor".
"É importante que os decisores políticos percebam que esta capacidade existe, mas do meu ponto de vista, agora é importante os agricultores voltarem para as suas explorações e continuarem a trabalhar", constata. Porém, devem "manter a vigilância através das suas associações, de forma a perceber se o governo, qualquer que ele venha a ser, dará os passos que têm que ser dados para resolver os problemas que foram identificados".
Além disso, é importante olhar-se para os "sinais que a Comissão Europeia já deu e que os governos de alguns Estados Membros já deram" recentemente. A título de exemplo, o administrador da AGROGES aponta o comunicado lançado a 22 deste mês, em que é referido que Bruxelas enviou um documento à Presidência belga em que descreve as primeiras ações possíveis para ajudar a reduzir os encargos administrativos que pesam sobre os agricultores e que servirá de base para debates e ações conjuntas com os países da União Europeia, entre outras medidas.
"Este movimento atingiu os seus propósitos, foi um alerta muito sério ao poder político"
Por outro lado, o mês de março vai trazer também um inquérito em linha dirigido diretamente aos agricultores, para que seja possível ajudar a identificar as suas "principais fontes de preocupação e a compreender as fontes de encargos administrativos e de complexidade decorrentes das regras da PAC, bem como de outras regras da UE em matéria de alimentação e agricultura na UE".
No que diz respeito ao Governo português, não é assim tão fácil antever soluções, apesar das medidas que também já surgiram, como a que foi a anunciada no último Conselho de Ministros e que diz respeito aos apoios para atenuar os efeitos da seca e da inflação sobre o setor agrícola.
O futuro dependerá, então, do próximo Governo. "Não sabemos como vai ser, mas olhamos para aquilo que foi a posição assumida pelo Governo francês, pelo Governo alemão, que são governos que estão para ficar e que se comprometeram. Estão ativamente em negociações com os agricultores para conseguirem ultrapassar alguns destes obstáculos, pelo menos, e é isso que se espera também em Portugal".
"Estou confiante de que este movimento atingiu os seus propósitos, foi um alerta muito sério ao poder político de que a alimentação é um assunto importante", diz. "A ideia de que podemos trocar os alimentos pelo ambiente é falsa".
"Nós precisamos de um ambiente defendido, mas precisamos que, a partir desse ambiente, se possam produzir os alimentos de que precisamos. Portanto, não vale a pena termos políticas muito ambiciosas do ponto de vista ambiental, que depois têm consequências muito nefastas e negativas sobre a capacidade que cada país tem de produzir os alimentos, senão qualquer dia sujeitamo-nos a ter um problema grave de dependência alimentar de outras geografias, que decidam que não põem cá os alimentos", evidencia.
E passar fome é o que ninguém quer. Como muitos agricultores lembraram nos protestos, "se o campo não produz, a cidade não come". "A maior parte das das pessoas que vivem na cidade já não tem família fora da cidade e, portanto, perceber que estes agricultores que são chatos, que até têm subsídios e etc., são os responsáveis pelo alimento, não é uma relação causal direta. Nesse sentido, foi importante esse protesto, porque a sociedade percebeu que se isto acaba não temos comida no supermercado".
Todavia, "isto não não pode ser visto como uma chantagem. Isto não é um agricultor a dizer 'eu tenho direito a tudo, porque sou eu que produzo a comida'. Não, não é isso. Não pode é ser confrontado com situações de injustiça, de que são um bom exemplo a entrada na Europa de alimentos produzidos com produtos que a Europa proíbe os seus agricultores de utilizar por questões de saúde", conclui.
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