O primeiro cigarro chegou aos 25 minutos de conversa. Nada mau para um fumador inveterado. A explicação é simples: António Coimbra de Matos, psiquiatra, já sofreu dois enfartes e aos 88 anos tenta refrear o vício. Recebeu-nos no seu consultório, na zona das Amoreiras, onde continua a receber pacientes e a exercer como psicanalista.
Especialista em depressão, concorda que existe um lóbi poderoso que favorece a indústria farmacêutica e também psicólogos e psiquiatras. Muitas vezes, acredita, cria-se uma dependência excessiva e desnecessária. Já mandou de volta para casa alguns (não) casos. No divã, “que para o analista tem a desvantagem de perder informação essencial, expressões, olhares, sorrisos”, estiveram políticos, anónimos e o país.
A eurodeputada Marisa Matias afirmou em tempos que isto já não vai lá com política, só com psiquiatria. Concorda?
Precisamos de pessoas sensatas, que não abundam. Em todos os meios: na política, nas universidades, nas empresas, nas fábricas.
Perdeu-se a sensatez ou perdeu-se a liderança, o rumo?
Ainda há pessoas sensatas, mas não sei responder a essa pergunta. De todo o modo, deixou de ser fácil encontrar pessoas de referência. Tenho 88 anos feitos em Dezembro, mas ainda sou do tempo em que, por exemplo, no liceu, ainda que habitualmente houvesse professores que não eram muito bons, havia um ou dois que eram uma referência. E serviam de exemplo. Noutros sítios que não na escola acontecia o mesmo. Hoje essa figura de referência não existe. Nem sempre é um professor. Sou um antimilitarista convicto, mas quando acabei o curso de Medicina fui mobilizado para a tropa, onde estive quatro anos, primeiro em Mafra, depois na Estrela, em Lisboa, e depois ao pé de casa. Nessa altura já era oficial, médico do regimento da Escola Prática de Cavalaria de Santarém. E no quartel de cavalaria - os cavalos estavam em Tancos – havia um comandante e um segundo comandante. Ao primeiro comandante chamavam o homem verde, porque andava com uma caneta verde e assinava tudo com ela. O segundo comandante era um vaidoso. E depois havia um cabo, que era quem resolvia os problemas todos e a quem nós chamávamos o terceiro comandante. Era um homem sensato, e quando havia qualquer dificuldade sabíamos que nem o primeiro nem o segundo comandantes resolviam nada, mas aquele cabo sabia sempre o que fazer. Hoje as pessoas estão talvez menos disponíveis para se preocupar com os outros, para cuidar dos outros. A sociedade é mais egoísta.
E é uma sociedade mais feliz?
Não. Mas criou-se este espírito de egoísmo… Antes, se passávamos por alguém que parecia estar em apuros, parávamos para ajudar. Hoje, se passamos por alguém que parece atrapalhado, aceleramos, não nos vá chatear.
(...) no tempo em que eu era aluno passávamos apontamentos uns aos outros. Hoje nas faculdades passam-se apontamentos falsos. É o espírito da concorrência, uma concorrência agressiva.
Lembro-me que quando havia greve dos comboios, por exemplo, os automobilistas paravam ao longo da marginal para dar boleia a desconhecidos. Hoje isso seria impensável, até pelo perigo. Vivemos também condicionados pelo medo?
Mais ainda, tenho essa experiência como professor: no tempo em que eu era aluno passávamos apontamentos uns aos outros. Hoje nas faculdades passam-se apontamentos falsos. É o espírito da concorrência, uma concorrência agressiva. Porque a competição é necessária, mas a competição mais normal é aquela que cada um faz consigo, para tentar superar-se, não para ser melhor do que o colega. Criou-se esta ideia de que é a competição que nos faz evoluir. Errado, não é a competição que nos faz evoluir.
O que é que nos faz evoluir?
A cooperação. Evoluímos quando andamos em congressos, quando ouvimos colegas, quando pensamos com os outros. Debatemos, argumentamos e saímos de lá, uns e outros, mais esclarecidos. Dialogamos.
“Então deu 20 valores a uma aluna?!”
Hoje ainda se assiste muito ao exercício do poder mesquinho? O superior que tenta impor a sua vontade, o funcionário que tem o poder de bloquear ou fazer andar um processo, um professor que pode passar ou chumbar… Ter o outro na mão e fazer gala nisso?
Sabe, uma vez dei um 20 a uma aluna, foi um escândalo. Um professor veio logo perguntar: “Então deu 20 valores a uma aluna?!” Dei. Era um trabalho individual, entendi que eu não teria feito melhor, que nota havia de lhe dar? Nota máxima. Responde ele: “Eu não dou mais de 15 valores. Acima disso é nota para professor.” E pronto, ficámos assim. É a necessidade de criar uma distância... Lembro-me de outra vez, uma aluna mais velha do que o habitual, dos seus 40 e tal anos, que estava a estudar Psicologia, ter vindo falar comigo e dizer que estava muito zangada com um professor lá da faculdade porque em conversa lhe disse: “Ó, professor...” e ele respondeu: “Professor?! Senhor professor, trate-me com respeito.” Eu conhecia esse professor, que era até um homem simples, e não acreditei assim muito na história. Passado um tempo encontrámo-nos, fomos tomar café e ele contou-me a mesma história: “Calcula tu que uma aluna…” Afinal era mesmo verdade. Quando na realidade o tratamento por professor foi até simpático e também uma prova de afecto. Este é um aspecto importante das sociedades neoliberais, a concorrência, a competição. E - por isso - da distância.
Imagino que já tenha tido políticos como pacientes...
Sim, já tenho tido políticos, deputados e outros. E há alguns virtuosos.
Espero que sim. O homem tem uma relação particular com o poder?
Tem uma relação complicada com o poder quando ele próprio não se sente suficientemente capaz. Aí a relação é difícil. Vou dizer uma coisa que se costumava dizer aos alunos no tempo da minha passagem pelo ensino: só puxa dos galões quem não tem colhões. Quem é seguro de si não precisa disso para nada.
Há uma diferença entre homens e mulheres nesta matéria?
Há um pouco, até hormonal. A hormona sexual do homem é a testosterona, que a mulher também tem, mas em quantidades muito pequenas, e que é também uma hormona de agressão. Tem essa base, o homem tem mais depressa uma resposta agressiva do que a mulher, que tem uma resposta mais assertiva.
Muitos defendem as mulheres no poder por serem mais racionais, mais sensíveis, melhores gestoras. Faz sentido?
Eu tenho uma opinião muito própria; as sociedades só estão bem com a mistura dos dois. E disso tenho experiência: as equipas só com homens ou só com mulheres não correm muito bem. Quando são equipas mistas e mais ou menos equilibradas correm melhor. Num serviço público onde trabalhei havia uma mulher, psicóloga, muito desconfiada e que passava a vida a fazer-me queixas. Um dia perguntei-lhe: “Acha mesmo que toda a gente a persegue?” Mas, de uma maneira geral, as mulheres têm mais tendência para se acomodarem, para encontrarem uma solução de equilíbrio, enquanto com os homens é uma coisa mais de ruptura. Até biologicamente, o homem tem mais uma forma convexa, mesmo sexualmente, a mulher tem mais uma forma côncava.
“Em muitas coisas estamos muito atrasados em relação a outros países europeus, mas a nível das mentalidades não. Nas questões da sexualidade muitos países estão até mais atrasados do que Portugal, como é o caso de França ou até da Alemanha”
Se hoje tivesse o país no divã do seu consultório, qual seria a sua análise, como avaliaria Portugal e os portugueses?
O país evoluiu muito, mais do que as pessoas pensam ou do que se diz. Em 40 e tal anos evoluiu economicamente, socialmente, culturalmente. O ensino superior, a mortalidade infantil... Antes e depois do 25 de Abril, não tem nada a ver. Falar de homossexuais, de adopções gay, da eutanásia, mais recentemente. As pessoas têm ideias e aceitam-nas. Mesmo em relação à eutanásia houve uma evolução rápida em três anos. Em muitas coisas estamos muito atrasados em relação a outros países europeus, mas ao nível das mentalidades não. A nossa maneira de pensar actual está ao nível dos países mais evoluídos da Europa. Nas questões da sexualidade muitos países estão até mais atrasados do que Portugal, como é o caso de França ou até da Alemanha.
Temos essa mentalidade aparentemente aberta, mas um comportamento contido, de certa forma espartilhado. Volto à questão da felicidade…
Toca num ponto importante. Isso vê-se até na maneira de estar, de vestir. Há uns anos fui a um congresso internacional e convidaram-me para dar uma conferência. Era verão e muitos colegas criticaram um americano que apareceu de sandálias, quando já em parte nenhuma do mundo isso é relevante. Outra vez estava um calor horroroso e todos vestiam casaco e gravata. Nisto somos muito provincianos e isso conta contra nós. Também já estive almoços inteiros com alguém a fazer comentários sobre as meias do outro, que era um parolo... Nisso somos um país tradicionalista.
O presidente da República dar um beijinho na testa dos velhotes e das velhotas é humilhante para o outro. É inferiorizante
Temos traumas, somos um povo traumatizado?
Há coisas curiosas. Os espanhóis realizam umas conferências a que chamam mano a mano; é dado um tema surpresa e duas pessoas argumentam sobre ele. Fui convidado para uma dessas conferências, eu e um professor da Faculdade de Engenharia do Porto. A alturas tantas ele deu-me um exemplo: um tipo português, doutorado nos Estados Unidos, montou uma empresa e foi lá ver se arranjava financiamento. Foi falar com um investidor, penso que da Universidade de Berkeley [Califórnia], que lhe perguntou: “Já teve alguma empresa?” “Já”, respondeu. “E o que aconteceu?” “Não correu bem e seis meses depois faliu.” “Ah faliu?! Então vou investir em si.” Ou seja, aprende-se com os erros e o investidor sabia que o empresário não ia cometer o mesmo erro que levou a empresa a falir. Em Portugal, o empresário teria um rótulo e nunca mais conseguiria fazer uma empresa. A nossa história tem vários aspectos, um deles é que somos um país pobre. Outro é que tivemos um poder 100% centralizado. Foi dos poucos países da Europa onde praticamente não houve feudalismo e, o mais significativo de tudo, tivemos quase 400 anos de inquisição – e agora o cardeal vem dizer que os recasados não devem ter relações... Repare, é como o presidente da República: também o vemos a dar um beijinho na testa dos velhotes e das velhotas. E dar uma beijinho na testa é humilhante para o outro. Suponho que isto não fosse possível em França ou coisa parecida. O próprio presidente não se atreveria a fazê-lo.
Aqui é visto como um gesto amoroso, de afecto.
Mas é inferiorizante. Vou contar-lhe uma história passada com um indivíduo que veio de Moçambique. Ele contava que lá, quando se perguntava a um branco pelos filhos ele respondia, virando a palma da mão para baixo, que estavam a crescer. Quando se perguntava a um negro pelos filhos ele respondia, com a palma da mão para cima, que estavam a crescer. Dizendo isto, disse tudo. Os brancos enterravam, puxavam os filhos para baixo, enquanto os negros elevavam, puxavam os filhos para cima. Isto tudo lembra-me a minha primeira guerra, em Santa Margarida, onde estive em 1974 e 1975. Houve lá umas manobras da NATO e vieram uns americanos assistir. No fim, o general americano cumprimentou o português e depois daquilo cumprimentou as tropas todas com um aperto de mão. O general português ficou ofendidíssimo: "Cumprimentar os soldados com um aperto de mão?!” Achou escandaloso. É a tal coisa de gostar de manter as distâncias, quando uma coisa é a cerimónia, outra o à-vontade que se tem depois.
A sua veia antimilitarista, de onde lhe vem?
Aos 42 anos fui mobilizado para a guerra do Ultramar, para Moçambique. Estive lá dois anos, já tinha dois de tropa, o que significa que estive quatro anos naquela marmelada. Não sou muito reverente.
O ideal era não existirem militares, apenas tropas para fazerem prevenção.
Concordou, então, com o fim do serviço militar obrigatório?
Penso que não tem nada que existir. O ideal era não existirem militares, apenas tropas para fazerem prevenção.
Viveu a Segunda Guerra Mundial. Não receia uma terceira, não vê esse perigo iminente?
Penso que não, que estamos longe de uma guerra mundial. O Trump é um perigo, mas hoje os grandes países têm contrapoderes, que não deixam as coisas entrar num descalabro. Estou convencido que temos ameaças maiores.
Quais?
A da sobrepopulação, por exemplo. Em 1900 e qualquer coisa a população mundial não chegava a 3 mil milhões. Hoje estamos perto dos 8 mil milhões. Entretanto a sociedade mudou e é preciso fazer adaptações. Vive-se até mais tarde, é preciso mais tempo livre... No princípio dos anos 70 o que se pensava é que se iria trabalhar menos horas. Acontece que cada vez se trabalha mais. É preciso ter tempo e as pessoas não o têm. Perdem-no em transportes, em deslocações, no trânsito, e depois não têm tempo para estar com a família, para se divertir. Isto cria frustrações, mal-estar, etc. A qualidade de vida também melhorou, há agora mais velhos e mais velhos saudáveis. Há 40 anos a maior parte dos velhos eram doentes. Hoje chega-se a idades mais avançadas e com uma relativa saúde. Tem de haver um maior aproveitamento, a maior parte das pessoas pode trabalhar até tarde. Não estou a ver um primeiro-ministro com 80 e tal anos num governo, mas um presidente da República, não vejo porque não, não é o mesmo que andar a cavalo ou ter reuniões até às tantas da manhã.
Falou em frustração, em mal-estar. O que o fez interessar-se por um tema como a depressão? Como é que a depressão entra na sua vida?
Quando comecei, as explicações que existiam sobre a depressão não me chegavam. E comecei a investigar por mim próprio. O que sei hoje sobre a depressão é quase tudo da minha própria investigação. É uma doença muito frequente, é quase que a base de toda a patologia mental. O sintoma depressivo é muito frequente e, aliás, o primeiro livro que publiquei, e que se chama precisamente “A Depressão”, é em busca do seu sentido.
E encontrou?
Na depressão, como em todas as perturbações mentais, há dois tipos. Aquele em que a pessoa tem consciência da depressão - sente-se cansada, abatida, mais triste, não quer fazer coisas de que gosta habitualmente - que é a depressão sintomática, a que nós chamamos egodestónica, em que a pessoa não está em consonância com aquilo que costuma ser. E há a depressão egossintónica, aquela em que a pessoa está deprimida mas não se apercebe, quem se apercebe são os outros. A primeira é mais fácil de tratar porque a pessoa tem consciência de que não está bem e procura ajuda. No segundo caso, normalmente não vêm procurar ajuda ou vêm porque a mulher ou o filho ou o amigo disseram para vir.
Antes os miúdos portavam-se mal e apanhavam uma palmada ou ficavam de castigo. Hoje há sempre uma desculpa e, ou porque são hiperactivos ou porque têm défice de atenção ou porque os pais não têm tempo ou porque alguma coisa, lá vai um comprimido. Os adultos também.
Isso é culpa da indústria farmacêutica, que é um grande negócio.
Há um abuso de medicamentos e também dos tratamentos psicológicos
Quando não são os medicamentos, são os psicólogos. É mesmo necessário?
Tem razão, há aí uma certa tendência. Há um abuso de medicamentos e também dos tratamentos psicológicos. Ainda hoje vi um miúdo de 16 anos, filho de um casal divorciado, que me apareceu aqui um dia com a mãe. Depois tive vontade de falar com o pai. No fim não encontrei nada de anormal, é um miúdo com 16 anos, isola-se um bocado, fica lá agarrado aos jogos e computadores, tem as manias de um rapaz da sua idade. Mas há uma certa “psicologisação” ou “psiquiatrização” de tudo. Além do caso do rapaz, também recebi uma senhora dos seus 60 e tantos anos que me foi encaminhada por um colega e pelo irmão, que é médico. Vi a senhora uma primeira vez, uma segunda vez e disse-lhe que não precisava de psicanálise nenhuma. O que se passava é que lhe tinha falecido um filho com cancro um ano antes e ela estava num luto difícil. Eu sou especialista e sei isto, somos levados a criar esta dependência. Mas vivemos numa sociedade de consumo, há um remédio para tudo. Eu já fiz dois enfartes, tenho um pacemaker. Como de manhã sentia alguma indisposição e tenho dois filhos médicos, um disse-me logo o que eu tinha de fazer, que era ir ao médico ver isto e aquilo e ainda me obrigou a telefonar a um colega que me mandou fazer mais não sei o quê... Não fiz nada, fiz uma sesta. [risos] Meia hora depois estava bem-disposto. Um colega meu, o Amaral Dias, costuma dizer: “Tu não vás ao médico. No mínimo vens de lá com uma dieta chata.” [risos] Mas vivemos nesta sociedade de consumo que tem um remédio para tudo; o sapato que não faz calos, os óculos que não fazem reflexo... Desgasta-se a si própria.
A solidão não é boa, mas é bom ter a capacidade de estar só e livre de estímulos e do exterior. Até porque se não se adquire a capacidade de estar só, a tendência é procurar companhias a qualquer preço, selecionando-as mal
Hoje fala-se muito na solidão, que é um problema terrível. Mas não se fala no tédio. O ócio também é necessário ou não?
Toca num ponto. Porque a solidão importante é a solidão interior. A minha mulher morreu há dois anos e tenho momentos de solidão. Mas tenho os meus filhos, os amigos, o trabalho. Aqui há tempos, uma colega sua telefonou-me por causa da solidão e da senhora Theresa May, que queria criar o ministério para a solidão. E eu pensei: é mais uma prova da incompetência da senhora May. Isto não se resolve com a criação de um ministério, as pessoas precisam de conviver, de ter espaços de discussão, de distração. Há pessoas que vivem em prédios e não conhecem os vizinhos. Há até a história de um senhor já com uma idade avançada, casado, que tinha uma relação extraconjugal com uma mulher também casada. Ao fim de dois anos descobriram que viviam no mesmo prédio. A solidão não é boa, mas é bom ter a capacidade de estar só e de estar livre de estímulos e do exterior, que tem excessos incomodativos. Até porque se não se adquire a capacidade de estar só, a tendência é procurar companhias a qualquer preço, selecionando-as mal. É preciso escolher as companhias convenientes. Tem de haver momentos para não sermos perturbados, para podermos pensar, estar com o nosso íntimo.
O professor é do Douro. Como era a sua vida em miúdo, também tinha momentos de tédio?
Nasci na Galafura. A aldeia onde vivia tinha poucos habitantes e a minha mãe, que dizia que fui sempre o mais indisciplinado dos irmãos, contava que a partir dos dois anos e meio só sabia de mim quando eu tinha fome.
Era muito independente.
Sim, andava pela aldeia e é verdade que isso estimula a imaginação, a criatividade, a competência. Fazia coisas que os meus pais nunca souberam. Uma das memórias da minha infância é o senhor Pombinho, que tinha tido uma paralisia infantil e ficou com uma perna mais curta do que a outra, e que andava por lá a abrir uma poço, já com uns 17 metros de profundidade. Descia-se por uma escada e ia-se perfurando com pólvora. O senhor Pombinho recrutava as crianças da escola para irem lá abaixo acender o rastilho, porque ele, como era manco, demorava mais a subir, os miúdos eram mais ágeis. Fiz isso várias vezes e ainda me lembro de uma vez que saí de lá já com as pedras a saltar e eu ainda a subir as escadas, teria aí uns sete ou oito anos. Há um ditado na minha terra usado para as pessoas que não se expunham aos perigos: “Aquele de coice de burro não morre, morre de coice de pulga.”
Hoje morre-se mais de coice de burro ou de coice de pulga?
Não sei. [risos] O que dizem as estatísticas é que se morre muito só.
Ainda vai muito ao Douro?
Sim, vou. Geralmente duas a três vezes por ano ou quando há um congresso no Porto. Tenho lá a casa dos meus pais, que está desabitada, o meu pai fazia vinho e eu e os meus irmãos - hoje somos três - mantemos aquilo. O mais novo, que é médico no Porto, é que vai lá todas as semanas. Agora tive até uma boa notícia, foi aprovado um dos nossos novos vinhos do Porto, o Valriz, que é a abreviatura de Vale da Perdiz.
É católico?
Não, mas tive uma educação católica. Aos 13 anos decidi que não era católico.
O meu pai também era antimilitarista e perguntava-me: “Que curso vais fazer? Se quiseres ir para padre ponho-te fora de casa, se quiseres ir para o Exército deixo de te pagar a pensão”
Porquê?
Suponho que foi a ida para o Porto, aos nove anos. Comecei a conviver com outras coisas... A minha mãe era muito católica, o meu pai nem tanto, ia à missa uma vez por ano, a Missa do Galo. O meu pai também era antimilitarista e perguntava-me: “Que curso vais fazer? Se quiseres ir para padre ponho-te fora de casa, se quiseres ir para oExército deixo de te pagar a pensão.” [risos]
E a sua mãe, como reagiu?
Essa ficou muito zangada. Isto aconteceu numas férias da Páscoa, decretei que não era católico e não ia à missa. Ficou furiosa e disse-me várias coisas e eu a ela também. Tinha no meu quarto uns quadros religiosos e queimei aquilo, com caixilharia e tudo. Fiz um grande fumeiro. Ficou amuada comigo dois ou três dias. Era muito beata e ao mesmo tempo um bocado histérica e misturava aquilo com sexualidade. Faleceu com 101 anos, sempre bem de saúde. A nossa casa tinha uma capela e ela passava o tempo a dizer: “Quando eu desaparecer vocês vão dar cabo disto tudo...” Um dia eu disse-lhe: “Oh mãe, esteja lá descansada. Eu só quero uma coisa, a capela.” “Para que queres tu a capela?” “É que, como a mãe sabe, gosto muito de cavalos. Quero a capela para fazer uma cavalariça; o altar-mor vai ser a mangedora e o sacrário vai ser para guardar umas garrafinhas de vinho.” Para completar a dose disse: “Mas a sério, há uma coisa que se puder quero levar para Lisboa.” “Queres uma coisa da capela?” “Sim, quero a pia baptismal.” Para que queres tu a pia baptismal?” “Quer mesmo saber? Preciso de um bidé para lavar as partes.”
“Aos 13 anos decidi que não era católico. Aconteceu numas férias da Páscoa, a minha mãe ficou furiosa. Tinha no meu quarto uns quadros religiosos e queimei aquilo, com caixilharia e tudo. Fiz um grande fumeiro”
Porque diz que a sua mãe misturava sexualidade e religião?
Porque vinha da igreja cheia de histórias. A vizinha não sei das quantas que era amante do outro e o padre que tinha namoradas... Mas era bem disposta quando não estava com a veneta. Há muitos anos foi lá para a aldeia um padre de quem eu gostava muito, o padre Nunes. A determinada altura o padre Nunes zangou-se com o bispo, que era de Vila Real e que começou a puxá-lo para outro lado. Ele disse que não saía. O bispo lá o deixou estar mais um ou dois anos, mas depois mandou para lá outro padre. Mas o padre Nunes não saiu: fazia baptizados, sermões, tirava o diabo do corpo e até comprou um jipe e fazia de motorista. [risos] Um domingo fomos almoçar a minha casa na aldeia e convidei o padre Nunes. A minha mãe também estava e começou com as coisas dela até que a certa altura ele diz: “Pois fique sabendo, minha senhora, que eu sou o único padre deste país, o único, que vive da clínica privada.” [risos]
Os dois grandes problemas, que depois derivam nas patologias, são a ansiedade e a depressão. A ansiedade é o medo em relação a qualquer coisa do futuro, ao que se vai passar. (...) A depressão é um perigo, algo que já aconteceu.
Que problemas lhe trazem normalmente os pacientes?
Os dois grandes problemas, que depois derivam nas patologias, são a ansiedade e a depressão. A ansiedade é o medo em relação a qualquer coisa do futuro, ao que se vai passar. Todos nós temos uma dupla reacção em relação ao desconhecido, se somos mais saudáveis, o fascínio, se somos mais doentes, o receio. A depressão é um perigo, algo que já aconteceu. Depois há diversos arranjos dentro disto. A depressão devido à perda de alguém, se é alguém que morreu ou que nos deixou – porque uma coisa é o luto, a reacção a alguém que morreu, outra é rejeição, os problemas com os filhos, com os pais, os problemas amorosos, de trabalho... Mas tudo conflui em ansiedade e ou depressão.
Como um advogado recusa, por exemplo, um caso de pedofilia, há casos que recuse tratar?
Há. Há casos que não me sinto capaz. Há principalmente duas situações: uma mulher que vejo pela primeira vez e que me atrai - acredito que não vá dar bom resultado - ou um homem a quem me apetece dar dois socos: você é um chato, vá lá chatear outra pessoa.
Já lhe aconteceu alguma dessas situações?
Sim. Antigamente fazia isso e ensinava que para não desiludir o paciente devia indicar uma pessoa do mesmo sexo. Por exemplo, à mulher indicava um colega e explicava: “Penso que as nossas personalidades não se vão adaptar, de maneira que não serei a pessoa mais indicada para si”. Já me aconteceu. Uma mulher, dos seus 45/50 anos, que vinha com um problema depressivo. Era uma actriz, muito inteligente, senti-me atraído e pensei que poderia haver ali qualquer coisa. De maneira que disse-lhe que sim, que julgava haver ali indicação para uma psicanálise, mas eu não seria a pessoa mais indicada para a ajudar. Não ia dizer-lhe que me podia apaixonar por ela. E lembro-me também de um homem. Um homem que tinha uma agressividade enorme, que andava sempre à pancada, era filósofo. Ganhava dinheiro como professor de filosofia e andava à porrada por todos os lados onde ia. Um caso difícil, tinha uma raiva maciça. E também lhe disse: “Acho que sim [recomendo psicanálise], mas não me parece que seja eu a pessoa indicada para si.”
Do que gosta, o que o diverte?
Gosto de poesia, de Camões, de Shakespeare. Gosto de falar, gosto de conversar, de dar aulas. E ainda gosto de ir a congressos. Quando estava no centro de saúde mental havia uma técnica que me dizia que eu não as deixava falar, não me calava. Eu respondia que na minha profissão falava pouco e ali aproveitava. A minha mãe dizia a mesma coisa, quando a minha irmã dizia que ainda me caía uma mosca na sopa: “Não lhe digas nada, está a falar e nem dá conta, come a mosca, come tudo.” Sempre gostei de conversar.
Alexandre O'Neill escreveu: “Às dores inventadas prefere as reais, doem muito menos ou então muito mais”. O que diz sobre isto?
Em resumo, costumo dizer que é bom ter a cabeça na lua e os pés assentes na terra. Os dois tabuleiros são importantes.
Tenho uma teoria: a unidade biológica é o ser, a unidade psicológica é o par e a unidade social é o trio
Esteve agora num congresso no Porto, onde foi falar sobre o vazio e a criatividade. Tem uma definição?
Não é fácil de definir... Todos nós somos criativos na relação, não se é criativo sozinho. Quando estou a escrever, estou a pensar em quem me vai ler, no que me vai achar inteligente, no que vai dizer que sou um banana, no que vai rir de mim... Uma pessoa só não existe, só existe numa relação. Tenho uma teoria: a unidade biológica é o ser, a unidade psicológica é o par e a unidade social é o trio. Eu e o outro, sempre. O resto são variações disto.
A propósito de criatividade, ou nem tanto, lembrei-me dos sonhos e da sua interpretação, do significado dos sonhos, dos pesadelos…
…Sabe, eu tenho sobre essa matéria uma opinião diferente de outros psicanalistas. Acredito que os sonhos não têm grande significado, os sonhos tratam memórias. O que aparece nos sonhos é de fácil análise, está mais ou menos explicitado. Mas mais importante que os sonhos a dormir são os sonhos projectivos: gostaria de ter uma casa à beira-mar, umas férias em Nova Iorque, tirar um curso em Londres. Sonhar acordado, mas como projecto, não é estar a olhar para as nuvens e ver passarinhos ou comboios. Isso é bom.
Qual a fronteira entre a extravagância e a loucura?
É difícil, não é consensual. Depende da vida de cada um e vai de acordo com o senso de quem observa. Voltamos ao início.
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