Entre as duas datas ficou um período de intensa luta política em que as diferentes fações - três, basicamente,democratas, comunistas e “spinolistas” - estiveram perto da guerra civil. Quaisquer que sejam as leituras do que aconteceu, a divisão permanece até hoje e, muito provavelmente, nunca terá uma conclusão indiscutível.
O livro da historiadora Irene Flunser Pimentel, “Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975 - Episódios menos conhecidos” (editado este ano pela “Temas & Debates”) não resolve a questão, evidentemente, uma vez que é uma obra académica, mas esclarece ao pormenor as peripécias, e assim contribui para uma clarificação do período. Por essa razão o SAPO24 achou importante ter uma conversa com a autora.
O seu livro é uma obra histórica, portanto relata imparcialmente um período que para a maioria das pessoas continua muito polémico. Mesmo quem o viveu, como é o meu caso, na altura não teve a noção do perigo que representou para a definição do nosso regime. Não sei se aconteceu o mesmo consigo.
Também aconteceu comigo. Não tive, porque a ideologia ultrapassava tudo, mas concordo que foi muito perigoso. Mesmo sendo historiadora, eu não percebia metade das coisas, e foi um bocadinho por isso que me apeteceu escrever este livro. Há colegas meus, historiadores mais novos, que me entrevistaram enquanto testemunha. Foi, então, que vi que a minha cronologia estava completamente errada. Aliás, foram eles que me disseram “mas olha, aquilo assim-assim passou-se antes de não sei quê, não é possível, é anacrónico.” E eu respondi “Pois, estás a ver, é que quem participou e esteve no meio do furacão não tinha noção nenhuma da imagem mais ampla. Do que estava a acontecer.”
"O 25 de Novembro é uma etapa do processo que se iniciou a 25 de Abril"
A primeira questão que ainda se levanta hoje é que há quem diga, à direita sobretudo, que foi o 25 de Novembro que foi a verdadeira revolução e há quem diga que foi o 25 de Abril. O que é que acha?
Para mim é o 25 de abril. O 25 de Novembro é uma etapa do processo que se iniciou a 25 de Abril. Aliás, como o 28 de setembro, o 11 de março. Que são datas memoráveis, mas menos importantes, que reorientaram uma situação que já existia, mas não travaram a situação, não é? No 25 de novembro há uma travagem. Eu acho que o termo travagem, que aliás nem utilizei, é um dos termos que caracteriza bastante bem a data.
Talvez mais uma re-direção, quer dizer, um regresso à ideia original, não é?
Sim. Por exemplo, o Melo Antunes, o Vasco Lourenço, o Grupo dos Nove, todos eles consideram que é um regresso à ideia original que tinha sido deturpada sobretudo a partir do 11 de março, do Verão Quente e por aí fora. E evidentemente que as lutas por poder e as correlações de força eram variáveis.
Mas a grande luta a partir do 25 de abril é entre Spínola e a Comissão Coordenadora do MFA, que ao fim ao cabo era quem tinha feito o golpe e o programa. O programa do 25 de abril é bastante revolucionário no sentido de transformar, de facto o sistema político do país. Não é a mesma coisa que o “Portugal e o Futuro” do Spínola, com aquelas coisas federalistas e outros aspetos que não iam mudar. A própria PIDE ia continuar, com uma nova direção e chefia.
Houve várias propostas para o 25 de Abril e as mais importantes são daqueles que se preocupam em haver um programa, antes ainda da revolução. Desde o Melo Antunes, que é um dos principais obreiros, mas também figuras como, por exemplo, o Almada Contreiras e outras pessoas da Marinha, que eram mais à esquerda do que Melo Antunes, embora aí ainda não se colocasse muito a questão, mas tinham que a resolver. E sabiam que era preciso derrubar o regime e que, provavelmente, aquilo ia desenvolver-se num processo revolucionário.
Mas eles não estavam politizados, não é verdade?
Não, só alguns, e mesmo esses não faziam a mínima ideia do que ia acontecer. Nem ninguém podia prever, não é?
O PCP "queria é meter-se lá dentro [da PIDE] e fazer uma nova polícia política"
Então o Partido Comunista não tinha nenhuma influência nas Forças Armadas?
Não tinha, não. Aliás, o Cunhal tinha aquela célebre linha política, que era o levantamento nacional armado, com civis e com uma parte das Forças Armadas, mas, como o golpe foi só militar, não havia cá massas populares nenhumas, ele depois emendou o discurso e afirmou que era exatamente o que eles estavam a prever e defendiam. Mas isso era a revolução democrática ainda popular e que depois tinha de ser levada mais longe.
Porque o Cunhal, apesar de dizerem que era muito inteligente, eu não acho que ele fosse assim tanto. Defendia soluções como a reforma agrária, que já tinha falhado em toda a parte. E mantinha-se estalinista, depois do que se sabia sobre o Estaline.
É o problema da ideologia, sabe?
Ele seguia o Leninismo puro e duro.
Puro e duro, exatamente.
O Leninismo diz que a revolução é feita pelo povo, dirigido pelo partido.
Porque o partido é o legítimo representante da classe operária.
E o Cunhal estava sempre à espera que fosse o povo a revoltar-se e o partido a dirigir, quando nós sabemos que o povo português não é de se revoltar.
Aliás, nas vésperas, como nós sabemos, o Marcelo Caetano foi muito aplaudido no Estádio Nacional, num jogo de futebol. Com grandes manifestações, nada se conseguiria... Agora, o que de facto aconteceu no dia 25, e isso também o MFA não previu de todo, tanto que queria fazer um golpe de Estado militar, foi a participação popular espontânea. Até disseram na rádio, para o povo ficar em casa, não é?
Sim, nos primeiros comunicados, ainda de madrugada, diziam isso.
E até lhe digo uma coisa, as pessoas que saíram à rua eram as menos politizadas, as menos organizadas politicamente. Porque, por exemplo, eu e outros camaradas meus que estávamos organizados, nunca iríamos às oito da noite para António Maria Cardoso, expor-nos dessa maneira. Os que acabaram por ser mortos, e alguns feridos, quando os PIDEs atiraram das janelas para a rua, não eram pessoas organizadas, nem eram gente do PCP ou da extrema-esquerda, não eram nada.
Uma coisa que nessa altura se falava, é que o PCP tinha conseguido levar uma grande parte do que ainda restava dos arquivos da PIDE, para Moscovo, a seguir ao 25 de Abril. Acha que sim?
Em parte sim. Aliás, há algumas fontes que nos dizem isso. O PCP diz que não, e o próprio diretor da Torre do Tombo, que aliás é do PCP e é um bom diretor, mas há muitos anos e tem-se mantido há muitos anos, eu e outros colegas meus, já lhe dissemos que devia trazer isso tudo para cá, eles podem ficar com fotocópias, mas os originais têm que vir. Mas ele insiste que não há lá nada. E então as fugas dos arquivos do KGB, o arquivo Mitrokhin?
O jornalista do Expresso, José Pedro Castanheira, entrevistou uns tipos da PSP que estavam no restaurante Belcanto e que viram uma camioneta da Marinha e seguiram-na. Foi para Figo Maduro, onde meteram o conteúdo num avião russo.
Porque há uma coisa que eu continuo a não perceber, é como o PCP não liquidou uma data de tipos da PIDE, que os tinham tratado muito mal.
Isso é uma coisa muito interessante também, que é o processo, por exemplo, naquela manifestação do 1º de Maio. Porque eu tenho um livro sobre a Justiça na transição para a democracia, Andei a ver o que aconteceu na época. O discurso mais radical, no estádio do 1º de Maio, que era da FNAC, é do Mário Soares, a dizer que tem que haver justiça, tem que haver uma justiça de Estado de Direito, tudo isso.
O Cunhal não fala nada disso, porque eles queriam é meter-se lá dentro e fazer uma nova polícia política.
É obvio que o PCP faria uma nova polícia política, se pudesse.
E tiveram todas as chances, porque se introduziram entre os militares, que não sabiam absolutamente nada sobre a PIDE, nem percebiam como é que funcionava, e recorreram a pessoas das organizações políticas clandestinas, e sobretudo do PCP.
A sorte é que não eram só do PCP, havia uns da LUAR, e outros extrema esquerda, etc. Mas eles levaram muito material, porque uma das coisas que também lhes interessava muito ver era quem tinha falado na cadeia, verdadeiramente.
Havia outra coisa nos arquivos da PIDE que não lhes interessava nada, que fosse público: as denúncias que eles tinham feito de oposicionistas.
Por exemplo, aquele célebre artigo sobre a FAP, em 64, no Avante, ou no Militante, a dizer “Cuidado que os traidores andam aí, tenham cuidado com eles”. A PIDE lia aquilo e dizia: “Olha, estão cá dentro. Já há uma nova organização.
"Os militares são muito camaradas uns dos outros. E até são camaradas pessoas que não têm nada a sua ideologia"
Porque, de facto, a mim custa-me até hoje que os PIDEs não tenham pago pelo que fizeram. Não estou a dizer todos, havia lá administrativos que nem deviam perceber o que se passava. Mas os torturadores, os que estavam no terreno e que eram brutais.
Havia lá PIDEs que eram amanuenses, mulheres secretárias, motoristas, etc. Mas havia alguns torturadores notórios. Exatamente.
E que eu saiba, nenhum foi castigado.
Não, e não é bem assim. Há aquela ideia que ninguém foi castigado. Mas não é verdade, eles foram presos.
Aqui eu já estou, como historiadora, a interpretar as questões de causalidade. Devido àquelas quatro mortes no 26 de Abril, que foram muito públicas, a PIDE teve que desaparecer em Portugal o mais rapidamente possível.
No mesmo momento em que aquilo estava ocupado pelos fuzileiros, só no dia 26 às nove da manhã, o Spínola mandou uma credencial para o Rogério Coelho Dias, que era Inspetor Superior, a nomeá-lo Diretor da PIDE. Mas a continuação da PIDE era impossível.
Eu acho que até... Bom, aí há uma grande discussão dos historiadores sobre quando é que se inicia o processo revolucionário, ou Revolução, pode-se dizer. Porque, de facto, inicialmente é um golpe de Estado Militar.
Exatamente.
E eu acho que a questão do programa tem muita importância, e depois há a vontade de o aplicar, porque podia ter ficado no papel. Mas aquelas mortes, assim como a libertação de todos os presos em Caxias, primeiro, e depois em Peniche, também vai dar uma modificação do papel que Spínola queria para a PIDE
"A União Soviética e a RDA meteram aqui dinheiro até dizer chega"
Uma radicalização sobre o fim da PIDE, digamos.
Eu assisti à libertação em Caxias. Quando cheguei lá, estava pejada de gente. Familiares, amigos dos presos, e outros como eu. Aliás, foi a primeira vez que se gritou: “O povo unido, jamais será vencido”.
Eu perguntei ao Vasco Lourenço, porque eu tinha a ideia que sim, por ter assistido a isso. E ele disse que sim, foi na libertação de Caxias.
Aliás, por falar em Vasco Lourenço, ele nunca foi do PCP, pois não?
Nada, nem ele nunca foi. Tanto que é um elemento dos Grupo dos Nove. E o Otelo também não era.
Mas o Vasco Gonçalves era, não era?
Era um “compagnon de route” do PCP. Como a própria CIA diz - e eu estou agora a fazer um livro que é sobre o relacionamento entre a PIDE e os serviços secretos estrangeiros.
A própria CIA, e o Kissinger, querem saber quem é aquela figura sinistra que está ali à frente do governo português. E o Carlucci, que curiosamente era da CIA, é quem convence o Kissinger que deve apostar nos moderados e no povo português, porque o povo não é muito revolucionário, é católico, não é comunista em geral. Devia-se apostar nos moderados, e portanto no Grupo dos Nove.
A minha pergunta sobre Vasco Gonçalves, era se ele no 25 de Abril ainda não se tinha aproximado do PCP?
Não, não. A CIA diz que ele era próximo do MDP. Como o Jorge Sampaio e uma quantidade grande de gente.
"Carlucci apercebeu-se muito bem, teve uma intuição política muito grande, e apostou no Mário Soares para conter a extrema-esquerda"
O MDP era toda a oposição ao Estado Novo, antes da Revolução.
Era toda a oposição, exatamente. Depois da Revolução, foi absorvido pelo PCP e saíram todos os que não eram comunistas. Muitos foram para o Partido Socialista. O Francisco Pereira de Moura saiu, eu tenho amigos que também lá estavam e que saíram. Os católicos progressistas todos. E é nessa altura que o Vasco Gonçalves terá sido arregimentado. Mas eu acho que também tem uma radicalização própria. Ele não é... Ele, no Quinto Governo Provisório, que é o último, não é idêntico aos anteriores.
O período das nacionalizações dos bancos e das grandes empresas?
Mas quem decide isso é o MFA, numa assembleia histórica.
Mas o MFA nessa altura devia ser um saco de gatos?
Era um saco de gatos, mas no 11 de março, bastante virado para a esquerda, digamos.
Mas uma coisa é virado para a esquerda, outra coisa é o PCP.
O PCP, pronto, aí é que está. Por exemplo, a Almada Contreiras e outros são elementos ligados aos gonçalvistas. Não é tanto ao PCP, é aos gonçalvistas. Porque sabe que a tropa, os militares são muito camaradas uns dos outros. E até são camaradas pessoas que não têm nada a sua ideologia.
Eu acho que os gonçalvistas não faziam reuniões, nem tinham células do partido, nem nada dessas coisas. Estavam próximos, mas a sua via era o Gonçalves. Uma ideologia um bocadinho terceiro-mundista adaptada a Portugal, mas sempre a receber dinheirinho. Porque a União Soviética e a RDA meteram aqui dinheiro até dizer chega.
"Eu fui da extrema-esquerda antes do 25 de Novembro, depois fui variando. Hoje em dia, tal como amigos que eram meus camaradas políticos, achamos que ainda bem que houve o 25 de Novembro"
A Embaixada faz assim uma esquina, e depois tem um complexo murado com edifícios de apartamentos que hoje estão vazios. Naquela altura deviam ter um staff gigantesco.
Sim, os do KGB vieram todos para aqui, faziam-se passar por jornalistas. Mas aconteceu o mesmo na Embaixada Americana, e na Embaixada Francesa. Todos os serviços secretos estavam cá.
Vamos ao Carlucci. Ele era muito inteligente porque chegou cá em Novembro de 1974 e rapidamente fez uma avaliação da situação que era correta e contrariava a visão do Kissinger.
O Carlucci, que era da CIA, tinha participado na Operação Condor, sobretudo no Brasil, em 1964.
O facto é que ele chegou aqui e em pouco tempo percebeu como era o xadrez político. Enquanto o Kissinger, que é considerado um cérebro, achava que a implantação de um regime comunista era inevitável. Se não fosse o Carlucci, a interferência americana teria sido desastrosa.
Sim, em toda a linha. Eu agora que estou a ler essa documentação, e os europeus também foram muito importantes. Sobretudo os social-democratas do Willy Brandt. E todos eles disseram, atenção, que vamos resolver isto ao nível da Europa. Não há cá invasões, nem golpes de Estado, nem nada dessas coisas que Kissinger queria.
E há muitos moderados também, na altura era assim que os chamavam, moderados. Não é só o Partido Comunista que está a comandar os acontecimentos. Eles sabiam isso.
Agora, de facto o Carlucci apercebeu-se muito bem, teve uma intuição política muito grande, e apostou no Mário Soares para conter a extrema-esquerda.
"A Legião Portuguesa começou por ser uma força paramilitar. Depois acabou... Passou a ser uma coisa burocrática, um clube de velhos salazaristas"
Ele e o Mário Soares até ficaram amigos.
O 25 de Novembro até foi… Eu fui da extrema-esquerda antes do 25 de Novembro, depois fui variando. Hoje em dia, tal como amigos que eram meus camaradas políticos, achamos que ainda bem que houve o 25 de Novembro.
Quer dizer, o 25 de Novembro, não sei se o vê assim.
Não, mas pronto, a situação a partir de então, porque podia ter ido para muitos lados. Se tivessem proibido o Partido Comunista, era o maior dos disparates, eles entravam na clandestinidade, eles sempre se mantiveram.
Aliás, o forte deles é a clandestinidade.
Claro. Portanto, se eles tivessem sido proibidos, tinha que haver censura outra vez, uma nova polícia política .
Então, foi muito importante a aposta do Carlucci nos moderados do Grupo dos Nove, onde estava o Vasco Lourenço, o José Canto e Castro e o Melo Antunes. No dia 25 de Novembro o Melo Antunes vai à televisão e diz, não, nós contamos com todos os partidos políticos para o socialismo. Nem sequer é para a democracia. O Mário Mesquita até comentou que ele podia ter dito para a democracia. Mas é preciso ver a época em que estávamos.
Até o PSD tinha socialismo no programa.
Tinha no programa, todos tinham. Mas, lá está, é porque houve muita gente no dia 25 de Novembro que quis ir mais longe, à direita.
Sim, ali é interessante porque o Spínola não há muitas dúvidas quanto à natureza dele. Tinha estado no cerco de Estalingrado, como observador, do lado dos alemães. Adorava botas altas e usava o monóculo, que era de vidro a copiar o estilo da Wermacht.
Claro, mas no 25 de Novembro já está no MDLP.
"A Índia foi uma referência para os militares que fizeram o 25 de Abril, porque perceberam que o Estado Novo preferia que morressem todos a ceder nos seus princípios"
O Costa Gomes, esse tipo é que é fantástico, porque ele consegue estar sempre no topo e nunca se comprometer com nada e ao mesmo tempo ter a influência certa na altura certa. Era muito esperto.
Muito inteligente. E repare uma coisa, o Spínola, pronto, era assim. Agora o Eanes - li uma entrevista feita relativamente pouco tempo depois em que o Eanes diz que quem poderia ter disciplinado a tropa, porque a disciplina dentro da tropa é a mesma em todas as ideologias, era o Spínola.
Ora, o Spínola quis ir para Presidente da Junta de Salvação Nacional, e depois para Presidente da República. Não era ele que controlava a tropa, era o Costa Gomes, que inicialmente disse que não queria ser presidente e ficou Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas. Os tipos do MFA tinham sempre querido o Costa Gomes como presidente, em primeiro lugar.
Sim, sim. Mas ele não ter querido ir para Presidente foi interessante. Preferia sempre uma certa discrição, para ter mais espaço de manobra.
Pois, ele disse, ah, o Spínola é melhor para isso, até porque lá fora toda a gente o conhece e gosta de estar ali, e eu, ninguém me conhece.
Claro, claro. E no 25 de Novembro foi fundamental. Mais que o Eanes...
E foi fundamental também para serem os moderados a ganharem e não os extremistas, como Jaime Neves, que queriam ir mais longe.
Mesmo indo ao tempo do Marcelo Caetano, ele já nessa altura era um espertalhão, porque autorizou a publicação do livro do Spínola. O Spínola é que ficou com o protagonismo. O Marcelo acabou por demiti-lo, mas não lhe aconteceu mais nada.
Até se pode ir mais atrás. Ao golpe palaciano falhado do Botelho Moniz, em 1961, a Abrilada.
O Costa Gomes esteve envolvido na Abrilada? Não sabia.
O Botelho Moniz era o Ministro da Defesa e o Costa Gomes também esteve envolvido, mas nunca é completamente responsabilizado.
É o problema dos militares, que Salazar percebe sempre, que tem de os ter na mão.
A censura era tudo militar, os censores eram oficiais. E os chefes da PIDE, também.
O Salazar achava que dando aquelas benesses aos militares eles ficavam sempre pacificados.
"Os movimentos de libertação também têm responsabilidades na má descolonização"
Os presidentes da República também eram sempre militares.
Sempre militares, exatamente, porque ele sabia que era dali que vinha o poder e o perigo. E portanto, e esta coisa depois... por que é que falhou o golpe do Botelho Moniz? A história seria completamente diferente. Apoiado pela CIA, hoje sabe-se perfeitamente.
Falhou porque o Botelho Moniz foi dizer ao Tomás para demitir o Salazar, que era o procedimento constitucional. E depois vai para o Algarve, passar uns dias de descanso!
Botelho Moniz foi um nabo, realmente.
Américo Tomás, foi imediatamente contar ao Salazar, claro. Sempre foi dos fundamentalistas até ao fim.
Américo Tomás era sobretudo muito estúpido, não era?
E fundamentalista.
Quer dizer, Tomás foi escolhido porque depois daquele susto do Craveiro Lopes, que quis demitir o Salazar...
É verdade, sim, senhor. E estava próximo de muitos militares do “contra”. E, portanto, Salazar, depois desse susto, resolveu ir buscar um militar que fosse absolutamente canino.
Manipulável.
Zero, não é? Exato. E que teria perdido as eleições de 1958 para o Delgado. O Delgado também não era flor que se cheirasse.
Não era flor que se cheirasse, mas pronto, teve coragem. Mas isso, a história seria outra, não é? Ele como ele foi morto... é o desconhecido, não é?
O Delgado foi para os Estados Unidos fazer um estágio e lá viu a Democracia...
Mas eu acho que a Costa Gomes também foi isso que lhe aconteceu, porque em 1957 esteve a estagiar no Comando da NATO e é dos únicos que viu os planos nucleares. Aliás, mais tarde diz isso ao Kissinger e ao Ford: “Atenção, eu vi os planos da NATO; não confiam em mim? Eu percebo que queiram retirar Portugal do conhecimento desses planos.”
Pois, havia esse problema da Nato, não é? Portugal ter um comunista no governo...
Por isso, o Kissinger quis afastar Portugal. Isso seria péssimo. E aí também o Carlucci é que diz sempre que não há perigo.
O Kissinger queria fazer de Portugal um exemplo comunista, para assustar os outros países europeus.
E podia ter feito disto, de facto, um exemplo, era o que ele queria mesmo. Um exemplo. Um exemplo. Uma vacina.
Carlucci depois foi chefe da CIA.
Sim, foi DCI - Director of Central Inteligence.
E ficou com amigos em Portugal. E mais tarde tem um relacionamento comercial com Artur Albarran.
Artur Albarran tem um percurso próprio dos tempos. Nasceu em Moçambique, veio para Portugal e tornou-se locutor e membro do Partido Revolucionário do Proletariado. Depois fugiu para o estrangeiro, voltou para a RTP e finalmente meteu-se em negócios imobiliários com o Carlucci.
E a esquerda dizia, "ah, o Carlucci, capitalista". Mas os políticos americanos costumam entrar para o sector privado depois de se reformarem.
A política é aquela fase chata, digamos, e a seguir vão curtir, não é?
É preferível isso do que o nosso sistema em que saem da política vão para os tachos das empresas estatais ou em que o Estado é acionista.
Por isso é que há uma data de gente que diz que o Salazar - e todos os outros - ninguém roubava. Aquilo é que era gente honesta. Pois claro, eles sabiam que depois iam para os conselhos de administração da Mabor, dos Cimentos...
Sim, o (Almirante Henrique) Tenreiro teve o azar de não se reformar a tempo...
Esse estava com o Marcelo no Carmo, acho eu.
O Tenreiro, acho que é o mais antigo histórico do salazarismo.
Era da Marinha e também comandante da Legião Portuguesa, (Estado_Novo). A Legião começou por ser uma força paramilitar. Depois acabou... Passou a ser uma coisa burocrática, um clube de velhos salazaristas. As pessoas da função pública estavam lá inscritas.
A Legião é da fase mais fascista do regime, que vai até 1945.
Exatamente. De 1936 a 1945.
Em 1945, Salazar despacha António Ferro para embaixador na Suíça. Foi uma grande injustiça que lhe fez. Porque António Ferro é que dirigiu as melhores atividades culturais do regime.
António Ferro era a parte cultural e intelectual do regime.
E era um tipo culturalmente muito interessante. Muito. Era fascista, declarado.
Sim, ele justamente era mais fascista do que o Salazar. Como aliás o Rolão Preto e outros, não é?
Exato. É mais um reacionário.
Um reacionário ruralista. Um conservador ruralista reacionário e católico. Também tem importância esse lado. Ele até não queria cá até os fascistas porque os fascistas também queriam o poder, não é?
Uma das coisas que Salazar nunca permite é grandes Direções Gerais. Por exemplo, vieram cá os fascistas italianos da polícia em 38 a seguir ao atentado de 37. Porque a PVDE era uma anedota. Então eles vieram cá e disseram ao Salazar que tinha de fazer, exatamente como em Itália, uma Direção geral que dirigisse a todas as polícias, incluindo a PVDE.
Isso é muito interessante porque cada vez que alguém propõe esse tipo de coisa, o Salazar diz não, não. É porque controlava a PVDE, depois PIDE, directamente. Reunia com o diretor. Agora uma Direção Geral com todas as polícias ele teria menos controle.
"Na Guiné começou logo a confraternização. Agora, a responsabilidade, eu assaco a Salazar - e a Marcelo Caetano, porque continuou a mesma linha. Um derrotado"
Aliás, até hoje as polícias são tuteladas por ministérios diferentes, exatamente para evitar que se juntem num golpe.
Pois, a PJ é da Justiça, a GNR do Interior, e a PIDE até ao 25 de Abril respondia diretamente ao Marcelo Caetano. E outra coisa muito interessante é que o Ministro do Interior da GNR, PSP e Guarda Fiscal, é sempre um indivíduo fraquito.
A PIDE também era tutelada pelo Interior, mas o diretor falava pessoalmente com o Salazar, passando por cima do ministro. No final, Silva Pais até se encontrava com Salazar dentro de um carro.
Outra coisa que vale a pena destacar é que as colónias não eram todas iguais. A Guiné era uma verdadeira colónia - não tinha famílias portuguesas, só funcionários e os cabo-verdianos como capatazes.
Assim se criou uma elite cabo-verdiana que foi usada noutras colónias.
Exatamente. Depois, Angola e Moçambique, um dos grandes crimes que Salazar cometeu foi incentivar a colonização com brancos do continente, em grande quantidade, num período em que já se sabia que as colónias iriam ser extintas no futuro.
Pois, já tinha havido a Conferência de Bandung.
O primeiro erro de Salazar foi ignorar Bandung. Os ingleses deram independência à Índia sem luta, porque viram que era inevitável.
E o Congo Belga? A certa altura Bruxelas convida as elites africanas do Congo para um congresso onde se decidiu a independência.
Na altura não percebi - claro, aqui não tínhamos informação nenhuma - mas já quando foi da tomada de Goa pelos indianos, em 1961, já se podia prever que Salazar não tinha a noção do que estava para vir.
Eu acho que a Índia foi uma referência para os militares que fizeram o 25 de Abril, porque perceberam que o Estado Novo preferia que morressem todos a ceder nos seus princípios.
Diga-me lá se concorda com isto: a culpa da má descolonização que fizemos é da má colonização anterior.
Como é evidente. E do atraso em relação à independência. França foi quase a última, em 1962. E a Argélia não era sequer uma colónia, mas uma província do outro lado do Mediterrâneo. O Salazar também tentou isso, ao chamar províncias ultramarinas às colónias, mesmo sabendo que não era suficiente.
Há uma coisa que é interessante; outro dia estive num debate sobre reparações (às antigas colónias). O Macron, em 2021, reconheceu os arquis, os muçulmanos argelinos que combateram pela França. Agora têm os mesmos privilégios de Segurança Social. Na Argélia continuam a considerá-los traidores.
E nós temos o mesmo problema. Deixamos matar uma data de negros que lutaram ao nosso lado.
Na Guiné, sim. Já disse que devem ser ressarcidos. Na altura foram obrigados a fazer o serviço militar.
Agora, a raiva dos retornados, que eu compreendo perfeitamente, só vai desaparecer quando eles morrerem todos.
Eu também compreendo. Perderam tudo. E sim, só vai desaparecer na próxima geração. Os mais novos, só agora alguns ficaram a saber. É o caso da Dulce Maria Cardoso, que escreveu um livro sobre todo esse tempo que foi abafado.
E depois há aquelas figuras de direita saudosista, como a jornalista Helena Matos, que têm imenso prazer em mostrar como aquilo correu mal.
Ainda por cima ela não tem nada com isso. Ela quis ser uma guerrilheira urbana! Eu ouvi-a dizer isso. Tive um debate com ela na Livraria Barata há relativamente pouco tempo. A certa altura disse-lhe que ela era de direita ou extrema-direita, e ela ficou toda ofendida. Um disparate completo.
Pois, por o ênfase na má descolonização é uma maneira indireta de considerar que a colonização estava a correr bem. Mas nós somos assim, fazemos tudo atabalhoadamente.
Os movimentos de libertação também têm responsabilidades na má descolonização. Depois do 25 de Abril, em Moçambique, o Samora Machel decidiu intensificar a luta, para não haver possibilidade nenhuma de voltar atrás. Em Angola, os três movimentos começaram imediatamente a matar-se uns aos outros, com os portugueses no fogo cruzado, e aí o Rosa Coutinho favoreceu o MPLA.
Nós não tínhamos fichas para negociar, porque a tropa, a partir de 26 de Abril, já não queria lutar.
Na Guiné começou logo a confraternização. Agora, a responsabilidade, eu assaco a Salazar - e a Marcelo Caetano, porque continuou a mesma linha. Um derrotado.
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