"Encontramos um grande rio de água doce", descreveu, em referência ao rio de Solis, hoje Rio da Prata, o cronista da expedição de Fernão de Magalhães, Antonio Pigafetta.

Nas suas célebres crónicas de há 500 anos, baseando-se na experiência que havia tido, quatro anos antes, a expedição de João Dias de Solis, Pigafetta acrescentou: "Aqui é onde habitam os canibais, isto é, aqueles que comem carne humana".

O navio-escola “Sagres”, no final de fevereiro, navegou no Rio da Prata, entre os portos de Montevideu (Uruguai) e Buenos Aires (Argentina), onde registou um total de cerca de cinco mil visitas, recordando a rota de Magalhães há cinco séculos.

"Aqui foi onde João de Solis, quem andava como nós a descobrir novas terras, foi comido com sessenta homens da sua tripulação pelos canibais em quem se havia confiado demasiadamente", recordava à época da epopeia marítima Antonio Pigafetta.

Na verdade, a tripulação de João Dias de Solis consistia em 60 homens, mas oito deles foram mortos, incluindo Solis.

Para enterrar o despenseiro Martim Garcia, que morreu durante a presença na região, nove homens desembarcaram numa ilha, hoje conhecida por Martim Garcia, onde foram atacados com flechas pelos índios. Solis e os seus homens foram desmembrados, assados e devorados num banquete ritual.

Apenas um deles, Francisco do Porto, um mancebo com cerca de 15 anos, teve a vida poupada pelos índios charruas, tribo da nação guarani, que levaram o espanhol para viver com eles.

"Este território estava povoado por índios e nem todos eram pacíficos. A expedição de Magalhães entra no Rio da Prata com o fantasma do que tinha acontecido com João Dias de Solis. Essa antropofagia ritual provocou um espanto terrível. Eles não se descuidavam ao descer das naus", descreveu à Lusa a historiadora uruguaia, Ana Ribeiro, diretora do Instituto de História da Universidade Católica do Uruguai, onde foi criada a cátedra Magalhães.

"Foram mortos, sim, mas não comidos, porque os índios desta zona não eram antropófagos"

A maioria dos historiadores reproduz essa versão descrita pela restante tripulação de Solis, que abortou a expedição e retornou a Espanha, mas alguns autores questionam essa versão na qual os homens de Magalhães acreditavam.

"Depois de consultar com antropólogos e de investigar sobre esse episódio, a minha opinião é que não foram comidos. Foram mortos, sim, mas não comidos, porque os índios desta zona não eram antropófagos", duvida o escritor uruguaio e investigador de História, Juan Antonio Varese.

O escritor é autor do livro "A Expedição de Magalhães no Rio da Prata", o mais recente sobre a saga de Fernão de Magalhães e único no mundo a aprofundar-se no capítulo Rio da Prata da epopeia da circum-navegação.

"Acredita-se que algumas tribos guaranis praticavam alguma antropofagia ritual, mas, na minha opinião, os integrantes da tripulação que ficaram na nau não tiveram coragem de descer à ilha para defender os seus companheiros. Então, depois, para justificarem a sua covardia, exageraram no relato. Disseram que os índios comiam humanos", defendeu Varese.

A desconfiança dos homens de Magalhães em relação aos índios também se verificava nos índios em relação à expedição. Nos seus relatos sobre os 28 dias que passaram nesta região, entre 10 de janeiro e 07 de fevereiro de 1520, Antonio Pigafetta descreveu uma única e frustrada tentativa de aproximação com os índios.

"Um deles, de estatura gigantesca e cuja voz assemelhava-se a de um touro, aproximou-se da nossa nau para tranquilizar os seus companheiros que, por temerem que lhes quiséssemos provocar dano, distanciavam-se da costa para se retirarem com os seus pertences ao interior do país", contou o cronista.

E Pigafetta lamentou: "Para não perdermos a ocasião de vê-los de perto e de falar-lhes, pulamos à terra em número de cem homens, a persegui-los a fim de poder capturar alguns, mas davam passos tão desmesurados que, mesmo correndo e pulando, não conseguimos nunca os alcançar.

O quase nulo contacto dos homens de Magalhães com os índios no Rio da Prata contrasta com a proximidade, inclusive sexual, com os índios na baía de Santa Luzia, atual baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, paragem anterior à do Rio da Prata da expedição.

"O sexo era muito comum. Era uma novidade mútua, de uns e de outros"

Antonio Pigafetta descreveu "a libertinagem das solteiras" que, à diferença das casadas, sempre fiéis aos seus maridos, "vinham com frequência a bordo a oferecerem-se aos marinheiros a fim de obter algum presente".

"O sexo era muito comum. Era uma novidade mútua, de uns e de outros. Depois de tantos dias em alto mar, chegavam e relacionavam-se com as índias", salientou Roberto Elissalde.

Para o historiador argentino, essa diferença entre as tribos dos dois "rios", o de Janeiro e o da Prata, explica boa parte do que se vê ainda nos dias de hoje, um povo recetivo, em contraste com outro mais desconfiado.

"Uma coisa que é certa: o Brasil é alegria e, por aqui, no Rio da Prata, falta-nos isso", observou Elissalde, que acrescentou: "Um povo mantém mais a distância do que outro. Um é mais aberto e recetivo, outro mais fechado e distante. Isso aconteceu há 500 anos e acontece agora".

A abertura dos "cariocas" levou então Antonio Pigafetta a concluir que "são em extremo crédulos e bondosos" e que "seria fácil fazê-los abraçar o cristianismo".

Francisco Albo, piloto da nau Trindade, descrevia no seu diário de bordo apenas indicações cartográficas e climatológicas, mas ao passar pelo Rio de Janeiro descreveu o povo da baía de Santa Luzia, nome posto pela própria expedição.

"Em tal baía, há boa gente e muita, e vão nus, e trocam anzóis, espelhos e chocalhos por coisas de comer, e há muito brasil (pau-brasil, que daria nome ao país)", escreveu em 09 de dezembro de 1519, enquanto rumava ao rio de Solis, hoje Rio da Prata, que a expedição acreditava ser a passagem ao Mar do Sul, hoje Pacífico.

Ao contrário de 500 anos atrás, a “Sagres”, que refez esse trecho na atual expedição, recebeu inúmeros visitantes na região do Rio da Prata.