Parece simples: coloca-se água a ferver numa chaleira ou ao lume. Verte-se o líquido a escaldar numa chávena, ou num bule, onde, à espera, repousam umas folhas (ou saquetas). Espera-se uns longos segundos. E bebemos.
“Deve ser bebido em folha, sem açúcar, para não adulterar o sabor, nem devemos adicionar água fria, devemos sim, deixar arrefecer naturalmente”, explica Sebastian Filgueiras, argentino radicado em Portugal que recebeu o SAPO24 na Companhia Portugueza de Chá, uma loja especializada na Rua dos Poços Negros, em Lisboa, aberta desde 2016.
Em resumo, pode ser esta a simples história do chá, folha e bebida, que tem hoje honras do Dia Internacional. Mas é mais complexo do que esta descrição aparenta. É uma história de viagens, de travessias marítimas e caravanas feitas por terra e de comércio entre o oriente e o ocidente, de cultos e hábitos. E com Portugal no meio.
Foi na China milenar e no Japão que esta folha começou a ser bebida, mas foram os portugueses os primeiros europeus a conhecer-lhe o sabor. “Foram os primeiros a ter contacto com chá no oriente, via Macau”, explica Sebastian. “A primeira vez que se usa o termo chá, em cantonês, na Europa é numa edição impressa, em Évora, do Tratado das Coisas da China, de Frei Gaspar da Cruz, creio que em 1570" [a obra de literatura de viagem dedicada ao “Celeste Império” foi escrita 1569-1570]".
Casado com uma portuguesa, “de letras”, este argentino formado em “artes plásticas” resolveu preservar o mobiliário deste negócio “que estava longe de sonhar ter”, quando abriu o seu primeiro, um restaurante argentino (Buenos Aires). A Companhia Portugueza do Chá nasce numa loja outrora uma sapataria, desde 1850.
Nas gavetas então reservadas a caixas de sapatos, plantam-se hoje em dia latas com “mais 200 variedades” de chá. “Vendemos exclusivamente folhas de chá. Do Japão, Ruanda, Índia, Malawi...”.
A conversa inicial neste museu vivo com ar laboratorial decorre num cubículo de pouco mais de quatro metros quadrados que servia de provador aos senhores e senhoras que experimentavam sapatos. Hoje é aquilo a que pode chamar-se o escritório, embora tenha um letreiro com as palavras “gabinete” escrito em cima.
Catarina de Bragança, o chá das 5 e o Brexit que trouxe a Portugal um chá da Índia
Regressemos à influência portuguesa. É com ingleses e holandeses que o comércio mundial do chá dispara, nomeadamente através da Companhia Holandesa das Índias Orientais, mas foi a mão real portuguesa de Catarina de Bragança, casada com Carlos II de Inglaterra, que viria a semear o culto da bebida das folhas de chá no país de Sua Majestade. Um hábito que deu mais tarde origem a uma tradição britânica – chá das 5 – da autoria da sétima Duquesa de Bedford, no início do século XIX que, ao longo dos anos, de forma viral, se alastrou das cortes e da alta sociedade à população em geral. Em especial através das saquetas, “uma invenção inglesa nos anos 70 do século passado”, atira.
Para Sebastian Filgueiras, sommelier formado em Barcelona e em Londres, Inglaterra continua a ser um bom talismã. O Brexit, de má fortuna para tantos, abriu-lhe as portas de acesso a um chá centenário artesanal produzido e extraído no norte da Índia, o "Lakyrsiew Tea. Tudo por causa de “um senhor alemão, casado com uma indiana, que têm o centro de operação em Londres" e que está "a pensar vir viver para Lisboa por causa do Brexit”.
Não interrompe o ritual do chá enquanto vai desfiando a história. Passa a água quente de um bule para outro (de um maior para outro de dimensões bem mais reduzidas que concentra as folhas), despeja o líquido e observa a cor num recipiente transparente, tira uma segunda infusão, até este repousar, por segundos, em três pequenas chávenas. “Deve-se sentir os aromas na tampa (do bule pequeno) para ver se está bom a servir. Tudo vai influenciar”, explica. “É como decantar um vinho. É uma questão aromática”, vai elaborando a partir do “laboratório” situado nas traseiras da loja.
Lisboa como nome de chá
Se a “China milenar sempre gostou de misturar com flores de primavera, chá de jasmim, rosas e crisântemos, osmanthus (flor permudada chinesa), misturas naturais”, a Inglaterra faz um “blend industrial com intuito comercial, em especial o Earl Grey”, compara.
Em Portugal, o fundador da Companhia Portugueza do Chá, resolveu também ele dar o nome da capital portuguesa a um chá. “Todas as cidades têm algo que representa o clima, a luz e as caraterísticas da cidade.
Em Lisboa, tomar um chá escuro ou carregado como em Inglaterra não seria adaptado. Como cidade luminosa, o chá deve ser mais soft”, disserta. E foi assim que nasceu a sua criação: Lisbon Breakfast. “Misturei o chá Gorreana dos Açores a um chá do Ceilão”, dando continuidade e recordando a ligação histórica entre Portugal e o lugar das folhas secas que nasceram no oriente. Aproveita e recorda. “Ainda hoje em dia há o Formosa Tea”, numa alusão ao entreposto comercial estabelecido pelos portugueses naquela ilha por volta de 1600.
Os Açores, o único local em Portugal onde se produz, entram na conversa sem pedir licença. “É uma terra vulcânica, de terroir vulcânico, atlântico e que a planta se adaptou”. Por isso, e embora recorde que no norte de Portugal, pela mão do produtor de vinhos, Dirk Niepoort se esteja a “plantar folhas de chá vindas do Japão”-, em “São Miguel, Açores, toda a gente faz o próprio chá e tem uma planta no jardim”, sublinha. “Conheço projetos novos e pequenas produções, produção artesanal, manual, que convive com a industrial”, sustenta.
Um chá que acompanha carapaus fritos
Volta atrás no raciocínio e fala de hábitos e costumes. Na China, ainda hoje, bebe-se “por questões culturais e de ato introspetivo” e no Japão, mais do lado “medicinal e físico”.
Nesta viagem pela história e pelo chá, fala-se ainda de comida. Porque o chá já não é apenas o bom companheiro de bolinhos e torradas. E há combinações verdadeiramente inusitadas. Como esta: “O dono da fábrica Gorreana disse-me que comia carapau com chá verde. Um chá morno liga com peixe frito”, garante. Estranho? “No Japão começam a refeição com um chá”, relembra.
“Podemos beber chá de manhã, ao almoço, à tarde, acompanha o trabalho e a qualquer hora” existindo diferentes tipos de chá - primavera, verão e outono – que melhor se adaptam à medida que os ponteiros do relógio avançam. Por isso, como especialista, recomenda: “um primavera de manhã, mais forte, oxidante, e à tarde, um verão, mais tranquilo, mais notas canelas e madeira”.
Para Sebastian Filgueiras, a complexidade da planta coloca-a ao lado do vinho ou do café. Tal como o vinho demora até chegar à chávena. “São dois anos em planta de estufa, mais três anos em terra. Uma colheita demora 5 a 7 anos”, garante. Comparando com o café realça a caraterística de tonicidade. “O café tem efeito imediato. O chá é demorado, prolonga-se”, sublinha. Ambos os hábitos e gestos podem conviver lado a lado. “Há uns momentos para o chá e para o café. Ao pequeno-almoço bebo chá e na rua tomo café”, confidencia Sebastian Filgueiras.
Hoje, Dia Internacional do Chá, o SAPO24 deixa, para o fim, uma nota para este dia chuvoso: sozinho ou acompanhado, com as mãos enroladas à taça quente, num silêncio introspetivo ou em conversa fluida, reconforte o estômago e a alma. Beba um chá. Em folha, sem açúcar e sem adicionar água fria. Assim dita quem sabe.
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