Por: Fernando Peixeiro da agência Lusa
Aquela é especial, uma biscutela-vicentina (‘Biscutella sempervirens spp. Vicentina’), como o é a espécie de tomilho (‘Thymus camphoratus’) que antes apontara, porque não se encontram em mais nenhum lugar do mundo a não ser na costa sul de Portugal. E Nuno Barros teme pelo futuro delas e de outras.
Biólogo marinho, ornitólogo, especialista em aves marinhas, Nuno Barros pertence também à associação ambientalista ANP/WWF e vive em Aljezur, de onde observa o PNSACV e cada vez mais preocupado.
E à Lusa, no chamado Ribat da Atalaia, onde existiu no século XII um complexo religioso islâmico cujos restos ainda são visíveis, explica que as suas preocupações são no essencial a agricultura intensiva e a pressão turística.
Quando se está prestes a comemorar o Dia Mundial da Biodiversidade (no sábado), o PNSACV é provavelmente, diz, a área protegida mais importante para a flora a nível nacional, onde existem cerca de 700 espécies, algumas endémicas (só existem ali).
E é uma área importante para as aves, seja como zona de confluência na migração pós-nupcial, seja como zona de nidificação, e é ainda rica em termos de flora e fauna marinhas, com habitats únicos e protegidos por lei.
Mas tem também uma zona de agricultura intensiva no Perímetro de Rega do Mira, que vai essencialmente de Vila Nova de Mil Fontes à Zambujeira, mas que se estende já mais para sul, até ao Rogil, no concelho de Aljezur.
É, diz à Lusa o especialista, um modelo de ocupação do território “que origina destruição de património natural protegido, degradação e abandono de solos e paisagem, contaminação por agroquímicos, e uso excessivo de água numa região onde esta é um bem escasso”.
É um modelo que não interessa à região e não lhe deixa nada, baseado na importação massiva de trabalhadores (“para uma zona que não tem condições para os receber”) e na exportação de 80% da produção. “Deixam pouco no país”.
E como se tal não bastasse Nuno Barros assistiu nos últimos anos a uma promoção “desenfreada” da imagem da região e do seu “paraíso perdido”, exponenciada nas redes sociais, que levou a um aumento de turistas que está a contribuir para a destruição de habitats, seja ao pisar ou colher, por exemplo, uma biscutela-vicentina, seja na existência de desportos motorizados em habitats dunares, seja na “explosão” de autocaravanismo selvagem que transformou as falésias em casas de banho.
“Vir fazer trilhos para a Costa Vicentina passou a ser um dos pratos principais do menu turístico, e os trilhos são estreitos e nem sempre são respeitados, porque não há controlo”, diz, acrescentando que mais a sul, na praia do Amado, estavam no ano passado 100 caravanas estacionadas, e que em toda a costa “as falésias ficaram inundadas de papel higiénico”.
“Vamos ver o que vai acontecer este ano”, diz, referindo-se à lei de novembro que só permite aparcar e pernoitar autocaravanas em zonas designadas para esse efeito.
O biólogo lamenta tudo o que se passa no Parque enquanto aponta a ainda preservada ribeira de Aljezur (onde minutos antes vira uma lontra, no centro da vila), a zona de sapal em direção à praia da Amoreira, ou enquanto aponta, já na Praia de Monte Clérigo, um melro-azul, ou depois os ninhos de cegonha-branca nas falésias, ou a gaivota-de-audouin, uma espécie ameaçada a nível global.
Nuno Barros diz que cerca de 300 espécies de aves passam pela região todos os anos. Entusiasmado fala ainda das aves rupícolas, que nidificam nas falésias costeiras, dos habitats prioritários a nível europeu, como os charcos temporários, como a maior parte dos habitats dunares, como as galerias de amieiros ao longo das ribeiras.
Mas dura pouco o entusiasmo. Ainda que a viver numa zona abaixo do perímetro de rega o biólogo teme por tudo isto e pelo PNSACV. A ocupação agrícola, diz, acaba por destruir o património natural protegido.
E diz algo que a Lusa ouviu de muitos outros habitantes do Parque. Assim: “Um dos grandes problemas da expansão da agricultura intensiva é a falta de monitorização, falta de fiscalização, falta de licenciamento, e falta de conhecimento da realidade prática no terreno”.
Falando das estufas quase até às falésias, temendo que a agricultura triplique porque o Governo assim o permite, Nuno Barros acrescenta que “há uma lógica quase de impunidade do uso do território, da degradação do habitat protegido, e há um certo sentimento de impunidade e de desigualdade entre o tratamento que é dado às empresas e o que é dado a população em geral”. Porque “estas empresas contribuem para a balança de exportações, mas é só isto que dão, são números”.
Enquanto a agricultura intensiva e as estufas aumentam todos os dias, se alguém quer fazer uma pequena obra em casa entra num difícil, moroso e “muitas vezes inglório” processo. E adianta Nuno Barros que ninguém sabe o que existe de facto no PNSACV e que o Governo tenta resolver problemas sociais criando aldeias de contentores dentro do Parque.
“Construir aldeias de contentores para manter o modelo insustentável de negócio que existe foi uma resolução que não foi do agrado das pessoas, sobretudo podendo triplicar o número de trabalhadores, de estufas e de área convertida”, avisa.
Nuno Barros gosta de viver no Parque, ele e os habitantes sabem que aquele é “um território privilegiado”. E é por isso que se revoltam com “o abuso de alguns visitantes” e o abuso que é permito a algumas empresas.
Por tudo isso gostaria, diz, que quando o Presidente da República fizer na região uma “Presidência Aberta” que olhe não só para as consequências, mas também para as causas da degradação do território litoral.
“As causas são um modelo insustentável de exploração agrícola do Perímetro de Rega do Mira, que destrói impunemente a natureza em área protegida, e prejudica a vida de quem lá trabalha e de quem cá vive”.
É preciso, diz, que, quando se fala do futuro da zona, “ter em mente que mais do que crescimento linear o que é preciso é valorizar a identidade local e os valores naturais”.
“E a identidade é tudo, a essência e alma da região, que engloba as tradições, a cultura e os valores naturais, e é isso que se está em risco de se perder”.
Os raros, frágeis e prioritários charcos temporários estão a desaparecer do Sudoeste
Professora na escola secundária de Odemira, Paula Canha faz parte da Sociedade Portuguesa de Botânica e tem feito estudos na zona do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) em colaboração com a Universidade de Évora, mas também para empresas agrícolas.
Parte do PNSACV é também uma zona de agricultura intensiva, especialmente no concelho de Odemira e visível nas centenas de hectares de estufas. A bióloga é muito crítica do que se passa na região, diz que a lei não é cumprida e que há atentados ambientais, mas também frisa que há ali empresas “com uma postura responsável”.
A poucos dias de se comemorar o Dia Mundial da Biodiversidade (no sábado), a bióloga falou à Agência Lusa dos crimes no PNSACV relacionados com a diversidade biológica, um dos quais nos charcos temporários, sobre os quais incidiu a sua tese de mestrado.
Nesse âmbito, ao fazer um levantamento dos charcos existentes, descobriu que “mais de metade já tinham sido destruídos” em relação a 1998, por drenagem de terrenos e terraplanagens, ou transformados em charca agrícola. E há muitos eutrofizados, por receberem fertilizantes que escorrem das plantações de frutos vermelhos que existem no PNSACV.
Os charcos temporários, considerados prioritários para a conservação no âmbito da Rede Natura 2000, uma rede de conservação da natureza a nível europeu, são locais que têm água durante três a cinco meses e no resto do ano um habitat terrestre.
“Normalmente os seres vivos ou são aquáticos ou terrestres, e os que estão nos charcos são especiais porque conseguem passar uma parte do tempo em ambiente aquático e o resto em ambiente terrestre. O que quer dizer que têm estratégias muito originais para sobreviver, um património genético criado pela evolução ao longo de milhões de anos que lhe permite aguentar tantos meses de secura”, explica a bióloga.
Esse património genético, frisa, pode mesmo vir a ser importante, para os humanos até, no âmbito das alterações climáticas, e tem de ser preservado.
Mas, acrescenta Paula Canha, além das plantas e animais únicos, os charcos temporários têm a particularidade também de serem locais privilegiados para a reprodução de anfíbios (sapos, rãs, salamandras e tritões), porque neles não existem peixes nem lagostins, predadores dos ovos e das larvas.
Esses anfíbios, na fase terrestre, ficam em locais abrigados perto dos charcos quando secos. A bióloga aponta que devido às alterações climáticas serão dos grupos mais ameaçados, outra razão para preservar os charcos, “absolutamente essenciais” para a reprodução.
“Quando um charco desaparece todos os anfíbios adultos à volta acabam por morrer”, alerta a especialista. E há, diz, pelo menos duas espécies de animais minúsculos que só existem nos charcos temporários da costa sudoeste, o ‘Triops vicentinus’ (um crustáceo) e uma espécie de camarão-fada. “São únicos no mundo” e o primeiro é um fóssil vivo, assim chamado porque existe desde o tempo dos dinossauros.
Na zona do PNSACV os charcos foram muito divulgados através do projeto LIFE Charcos, aprovado pela Comissão Europeia e coordenado pela Liga para a Proteção da Natureza (LPN). Mas o Parque é também único em termos de flora, nas palavras de Paula Canha.
“Não há nenhum parque ao nível do país que seja tão rico como este em termos de espécies que só existem aqui e em mais sítio nenhum do mundo. Nisso o PNSACV é o mais importante, e estamos longe de termos descoberto tudo o que temos. No ano passado descobriu-se uma planta nova. Temos 40 e tal espécies raras e, dessas, 17 só existem aqui”, descreve.
No PNSACV, lembra a bióloga, existem outros habitats prioritários não tão conhecidos como os charcos, como o zimbral das dunas (prioritário na Rede Natura 2000), um tipo de zimbro que no mundo só existe entre Setúbal e a Carrapateira, concelho de Aljezur.
Afirmando que todos estes habitats e espécies estão concentrados na faixa litoral, ligados à zona das dunas e pinhais (alguns também típicos das serras), Paula Canha alerta que não tem havido ações de conservação destas espécies.
“Existe uma legislação que não é cumprida, não há fiscalização” e quem prevarica paga uma multa, mas não tem de repor a situação inicial.
“No fundo, a comunidade europeia paga a Portugal avultadas somas para que nós conservemos estes valores, que nos comprometemos a conservar, e não sabemos para onde vai esse dinheiro, porque ações aqui no terreno, as que conheço, são feitas pelas universidades, sobretudo de Évora, por voluntários, e por algumas organizações de cidadãos”, afirma.
E acrescenta de seguida: “Tirando isto e uma ou outra ação da autarquia o dinheiro que vem da rede Natura 2000, nós que estamos aqui, não sabemos em que é usado”.
Segundo Paula Canha, não só não há uma política ativa da gestão desses valores como a agricultura intensiva na região está a afetar o património natural.
“Mesmo que se cumprissem todas as regras que estão no plano de ordenamento do parque, mesmo assim havia impactos sobre esta biodiversidade”, avisa.
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