
Luís Cordeiro foi para Angola em 1974, no mesmo ano em que se dá a revolução “no puto”, como chamavam a Portugal. Para o ex-combatente, o 25 de Abril não significou o fim da guerra, mas o início da sua prisão. Aos 72 anos, vive com uma doença de pele, a “Flor do Congo”, e uma perturbação mental, provocada pelo trauma de guerra.
Quando foi recrutado pelo serviço militar obrigatório, não sabia para o que ia. “Ninguém sabia. Um cunhado meu ainda me disse que era espetacular, como ir de férias, mas tive azar”, confessa ao SAPO24. Em Luanda perdeu muitos camaradas, “alguns morreram ao meu lado”, diz, muito rápido, para não se notar o peso das suas palavras.
“No mato, cheguei a ter de beber da minha própria urina, porque não aguentava não ter líquido no corpo”, conta. “O meu Coronel até se queria matar, mas não falemos sobre isso”, remata, já emocionado.
Será que a nossa sociedade quer mais sombras em mais vidas?Liga dos Combatentes
António Afonso nasceu em Angola, tem 77 anos, mas foi aos 18 que se inscreveu como voluntário na Força Aérea. Filho de um militar, conta que nem a educação que recebeu do pai o preparou para o que o esperava na recruta.
Tirou o curso de mecânico de material aéreo e foi então para Angola, onde ficou seis meses, e mais tarde para Moçambique. É de lá que traz os episódios que mais o marcaram — e que eventualmente levaram ao diagnóstico de stress pós-traumático. É também portador de doença de Crohn, que piora com a ansiedade e o deixa debilitado.
Estava magro como um espeto, davam-nos carne de macaco e eu não conseguia comer.Luís Cordeiro, ex-combatente
Entre os episódios traumáticos que António Afonso decidiu partilhar, destaca-se o de Nova Freixo, atual Cuamba. Tinha ido até à Ilha de Metarica, com um camarada, para celebrar o aniversário de um amigo e ex-colega. Na viagem de ida, foram avistados, mas graças à sorte, que acabou por lhes salvar a vida, regressaram a Nova Freixo ainda no mesmo dia.
“Vamos tirar à sorte. O palito grande é para a gente ir embora, o palito pequeno é para a gente ficar. Saiu o palito grande, então regressámos”.
António conta que voltaram tranquilamente, porque quem os avistou não esperava que voltassem tão cedo. O problema foi no dia seguinte. O autocarro, ou “machimbombo”, que fazia o transporte de passageiros da ilha para outras localidades foi bombardeado: “Iam 40 e tal pessoas lá dentro. Morreram todos. Pediram apoio à Força Aérea e nós andámos a apanhar os bocados dos corpos. Isso traumatiza, e muito”.
No mato, cheguei a ter de beber da minha própria urina, porque não aguentava não ter líquido no corpo.Luís Cordeiro, ex-combatente
Em 1974, já em Cabinda, perto da fronteira com a República do Congo, Luís Cordeiro recebe a notícia sobre a revolução num aerograma escrito pela mãe, a partir de Lisboa. “Ninguém sabia o que tinha acontecido, mas pensámos que pudesse significar que voltávamos para casa mais cedo”, lembra.
Depois de abril, passaram-se meses e, “nas províncias ultramarinas”, a revolução continuava sem dar resposta às questões dos jovens combatentes. Na verdade, “foi a partir daí que começaram a atacar mais”, diz. É a 9 de novembro de 1974, pela uma da manhã, que é preso pelos militares do Congo, comandados por um francês.
“Lembro-me do nome dele até hoje, se não fosse ele, não estaria aqui”. Quando são atacados, Luís esconde-se debaixo da cama. Muitas vezes, a sua reação ao barulho dos tiros e das granadas era esconder-se, e ainda hoje os foguetes o incomodam. Esteve preso até 23 de dezembro e não pôde ir passar o Natal junto da família.
Quando volta a Luanda “estava magro como um espeto, davam-nos carne de macaco e eu não conseguia comer”. O stress deixava também marcas físicas e alterou traços de personalidade que Luís ainda não sabe como remendar.
Só quem lá esteve tem uma verdadeira noção do que aconteceu.Rute Brites, investigadora

Viver com o trauma é saber “que não se volta a ser o mesmo”
As notas que traz apontadas não escondem o olhar emocionado e os tremores do corpo de Luís Cordeiro. A ansiedade acalma à medida que vai falando, mas as imagens da guerra atraiçoam a voz nervosa, que tenta contar o que a memória não deixa esquecer.
Tenho pesadelos, sou uma pessoa extremamente nervosa e não me posso exaltar.António Afonso, ex-combatente
Sempre a desafiar a vida e a morte, Luís volta a Portugal, um recomeço atormentado pelos sons, feridas, perdas e traumas da guerra. Hoje revive nos pesadelos os episódios desse ano e aprende a conversar como um novo Luís, “mais reservado e nervoso”, que lamenta não conseguir voltar a ter a vontade de conversar que tinha antes.
Este ano, foi diagnosticado pela psiquiatra da Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA) com Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSDT). No ano em que comemora 50 anos do seu regresso, pede pela primeira vez ajuda e nota como as consultas de psicologia o têm melhorado.
Iam 40 e tal pessoas lá dentro. Morreram todos. Pediram apoio à Força Aérea e nós andámos a apanhar os bocados dos corpos. Isso traumatiza, e muito.António Afonso, ex-combatente
António Afonso regressou à “metrópole” no final de 1974, mas trouxe consigo uma bagagem de traumas que afetam o seu dia a dia. “Arranjei lá a minha doença, que se vive até ao fim da vida”, diz António, enquanto mostra o certificado de invalidez, onde lhe foi atribuído 30% de incapacidade.
Ainda em Moçambique, foi para o hospital com uma úlcera gástrica, causada pelo sistema nervoso. Já em Portugal, o episódio voltou a acontecer. Desenvolveu colite crónica ulcerosa e foi operado duas vezes e com repercussões: “Tenho pesadelos, sou uma pessoa extremamente nervosa e não me posso exaltar”.
A PSDT “é complexa, manifestando-se através de diversos sintomas, como lembranças recorrentes e involuntárias, esforço para evitar memórias, alterações de humor e comportamento irritável”, explicam António Correia, Catarina Gonçalves e Vasco Curado, psicólogos especialistas da Liga dos Combatentes.
A saúde mental dos combatentes é um campo de batalha invisível, onde as feridas mais profundas são aquelas que não se veem, e só haverá verdadeira solução quando a sociedade parar de esquecer e começar a curar o que o tempo não apagou, num grupo de seres humanos que vive em busca da sua PazLiga dos Combatentes
O transtorno manifesta-se de formas diferentes, mas tanto Luís Cordeiro como António Afonso identificam sintomas de reatividade e ansiedade, descrevem alguns pesadelos e perdas de memória. “Nos sonhos, mato, esfolo, atiro com tudo”, refere António. Luís vê-se novamente no campo de batalha, sem conseguir fugir: “Penso, eu já estive na guerra, porque é que tenho de estar cá outra vez?”.
A especialista explica que quando um doente não é acompanhado, há maior tendência para a sua situação agravar. A intervenção tardia pode não eliminar todos os sintomas, pode não curar, mas “pode permitir que a pessoa aprenda a lidar com os traumas, que por vezes se transformam em fantasmas, de modo mais funcional, proporcionando uma qualidade de vida mais equilibrada, tanto para o combatente, como para a família”.
Para Luís Cordeiro, falar sobre o seu trauma “é como tirar um peso de cima” e diz sentir-se muito melhor desde que descobriu que podia ter ajuda. “Os ex-combatentes que sofrem de PSDT enfrentam uma situação crónica, que se manterá ao longo da sua vida”, lembra Rute Brites, psicóloga e investigadora do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade Autónoma de Lisboa, ao SAPO24.
António Afonso toma 17 comprimidos por dia e é acompanhado por um psicólogo e um psiquiatra. Ainda assim, sente que o papel que teve na guerra não foi reconhecido como deveria ter sido quando chegou a Portugal. O apoio não foi suficiente e chegou muitos anos depois. “Os ex-combatentes nos Estados Unidos são trazidos num pedestal, mas em Portugal são esquecidos. O stress pós-traumático foi reconhecido em Portugal quase 40 anos depois.”
Num país oprimido, não se podia falar nem pedir ajuda
Quem regressou da guerra no Ultramar voltou para um país pintado a preto e branco. “O acesso à informação (e às imagens) era escasso e a forma de comunicar diferente”, lembra Rute Brites. Tanto na altura, como hoje, “o pedido de ajuda é muito difícil” e a informação sobre os espaços de apoio continua escassa.
Segundo António Correia, psicólogo, “poucos vêm por iniciativa própria, outros vêm pelas famílias, camaradas e médico de família ou pelo núcleo do qual são associados”, mas, muitas vezes, “dizem que já vêm tarde, que estes serviços deviam existir quando regressaram”.
Eu já estive na guerra, porque é que tenho de estar cá outra vez?Luís Cordeiro, ex-combatente
“Já passaram mais de 50 anos desde que regressaram da guerra, e muitos deles, e as suas famílias, acabaram por se habituar a lidar com os comportamentos relacionados com PSDT”, adicionam os especialistas da Liga dos Combatentes. No entanto, Luís Cordeiro é um testemunho de como a terapia o ajudou a melhorar.
Até este ano, o ex-combatente não sabia que tinha direito a subsídio e consultas de psicologia. Foi na Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) que percebeu que podia ter apoio psicológico e acesso à comparticipação dos medicamentos que precisa para a doença de pele.
Demorou 50 anos a encontrar um espaço para desabafar e encontrar uma solução que lhe permita ter um diagnóstico e viver com a doença. Este ano, vai encontrar-se com colegas do batalhão na Madeira, para encontrar duas testemunhas que comprovem que esteve preso. Só assim poderá requisitar a pensão para ex-prisioneiros de guerra, “que seria uma grande ajuda”, revela.

O trauma também é geracional
A convivência próxima com ex-combatentes tem consequências diretas no sofrimento psicológico dos restantes familiares. Como consequência da guerra, algumas famílias conseguiram adaptar-se e reagir adequadamente ao trauma, mas outras afastaram-se.
Rute Brites é uma das autoras do estudo “Transmissão intergeracional do trauma: um estudo com famílias de ex-militares portugueses”, que concluiu que a PTSD pode representar grandes constrangimentos para a vida familiar: “Ao longo do tempo, [os ex-combatentes] poderão não ter sabido como expressar o seu sofrimento de forma adequada, acabando por manifestar este intenso mal-estar através de conflitos, violência física e verbal”.
A investigadora entrevistou 32 famílias (combatente, mulher e filhos), e olhou para a dinâmica familiar de antigos combatentes, identificando um processo complexo de trauma intergeracional e secundário pelo impacto da PTSD nas relações no lar.
Muitos estavam dependentes do álcool e da droga, e assim continuaram depois de voltar. Eu nunca me deixei agarrar a isso, mas é preciso força e não havia ajuda.Luís Cordeiro, ex-combatente
“Em famílias essencialmente tradicionais, em que o papel do homem estava definido como fonte de suporte, segurança e provisão, não havia como abordar temas como a dor perante a morte, o medo de morrer e de não voltar a casa”, acrescenta. O "silêncio", ainda hoje ensurdecedor, terá impactado as gerações que se seguiram, “quer na gestão do dia-a-dia, como em termos afetivos-relacionais”.
Afinal, “uma família onde existem pessoas com perturbação psicológica é uma família em sofrimento”, constatam os especialistas da Liga dos Combatentes. “No caso da PTSD, existem, muitas vezes, dificuldades ao nível da regulação das emoções, da comunicação e do consumo de substâncias”, que podem gerar “episódios de violência verbal, psicológica e até física”.
Nem todos os casos são iguais: "só quem lá esteve tem uma verdadeira noção do que aconteceu"
Para Luís Cordeiro, a sua ansiedade não teve repercussões nas relações com os filhos e netos. Nunca ficou violento, mas sabe que pode ter reações irracionais que coloquem outros em perigo. Admite que tem mais dificuldade em comunicar e menos energia para socializar. Durante a noite, a sua esposa dorme noutra divisão, por causa dos pesadelos.
Todas essas dinâmicas familiares afetaram a forma como se passou a relacionar com o outro e consigo próprio, mas reconhece que nunca permitiu que afetasse os seus filhos e netos, que conhecem e têm curiosidade sobre as suas histórias.
Há quem tenha tudo de mão beijada, mas o amor e o respeito pelo próximo não são garantidos.António Afonso, ex-combatente
Luís Cordeiro lembra alguns camaradas do seu batalhão, em Luanda. “Muitos estavam dependentes do álcool e da droga, e assim continuaram depois de voltar. Eu nunca me deixei agarrar a isso, mas é preciso força e não havia ajuda”.
Importa referir que não há estudos que estabeleçam uma relação entre o trauma e a violência. Apesar de existirem exceções, ambos os ex-combatentes deixam um testemunho vulnerável, que reconhece a dor, mas encontra sempre uma solução “no amor pelo próximo”, termina António.
Na verdade, “só quem lá esteve tem uma verdadeira noção do que aconteceu”. É importante sublinhar, contudo, que existem ex-combatentes sem PTSD, mesmo tendo estado no teatro de operações das ex-colónias.
Nos sonhos, mato, esfolo, atiro com tudo.António Afonso, ex-combatente
Com o passar do tempo, espera-se que o número de pessoas afetadas diminua, mas a história não se esquece. Para quem ainda sofre com a memória e a perda, o dia da Liberdade deve ser um propósito para reivindicar mais apoios para os ex-combatentes e “lembrar às gerações mais novas pelo que passámos”.
Para os mais novos, um pedido especial
“A saúde mental dos combatentes é um campo de batalha invisível, onde as feridas mais profundas são aquelas que não se veem, e só haverá verdadeira solução quando a sociedade parar de esquecer e começar a curar o que o tempo não apagou, num grupo de seres humanos que vive em busca da sua Paz”, termina a Liga dos Combatentes, num apelo à humanidade.
Parte dessa solução está nas gerações mais novas, reforça António Afonso, que deixa uma mensagem aos mais novos: “Tenham consideração pelos mais velhos. Agora, há quem tenha tudo de mão beijada, mas o amor e o respeito pelo próximo não são garantidos”. Nenhum se arrepende das decisões que tomou, não poderiam ter sido outras. Mas deixam um testemunho de resiliência e coragem, que serve de exemplo para um futuro em que crianças e jovens pelo mundo não conheçam as sombras da guerra.
“Será que a nossa sociedade quer mais sombras em mais vidas?”, questiona a Liga dos Combatentes.
*Artigo editado por Alexandra Antunes
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