Na fundamentação do acórdão, revelado no fim de semana pelo Jornal de Notícias, a violência doméstica praticada contra a mulher é minimizada pelo facto de esta ter cometido adultério.
Questionada pela Lusa sobre o acórdão da Relação do Porto, que manteve as penas suspensas para o marido e o amante da mulher vítima de violência doméstica, Elisabete Brasil, da União Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), considerou que a argumentação apresentada mostra uma forma de pensar “retrógrada e machista” ainda viva na sociedade portuguesa.
Num comunicado disponível na página de facebook da UMAR, a estrutura convoca, em conjunto com o movimento feminista POR TODAS NÓS, uma concentração de protesto para sexta-feira, na Praça da Figueira, em Lisboa, pelas 18:00.
“A fundamentação e a decisão tida pelo coletivo de juízes/as atenta contra os direitos, liberdades e garantias da(s) vítima(s) e, particularmente, contra a dignidade da pessoa humana”, refere a UMAR, considerando “inadmissível que depois de tantas evoluções legislativas e de recomendações nacionais e internacionais (…) ainda se continue a legitimar a violência doméstica e a violência contra as mulheres”.
A UMAR considera que a decisão que decorre da fundamentação apresentada ”poderá trazer consequências graves para a sociedade, mulheres e vítimas em geral, levando não só à revitimação das vítimas como à descrença no sistema de justiça”, com repercussões no número de denúncias às autoridades.
“Também se transmite uma mensagem, em especial para as gerações mais jovens, de total impunidade, contrariando todos os esforços de educação para a Igualdade e Cidadania”, acrescenta a organização.
No acórdão é invocada a Bíblia, o Código Penal de 1886 e até civilizações que punem o adultério com pena de morte, para justificar a violência cometida contra a mulher em causa por parte do marido e do amante.
Segundo o JN, na decisão podem ler-se frases como: "O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte".
Na nota disponível no facebook, a UMAR refere que a evocação à Bíblia ou a outros documentos religiosos “não se coadunam com o Estado de Direito em que vivemos”, descredibilizando as normas jurídicas impostas.
“Respeitamos a liberdade religiosa de cada um/a mas tal não é justificativa para se sobrepor ao ordenamento jurídico português”, acrescenta.
A fundamentação provocou críticas de várias entidades, entre elas da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e do Conselho Superior da Magistratura, que veio dizer que os tribunais são independentes e os juízes apenas devem obediência à Constituição, alertando que as sentenças dos tribunais devem abster-se de expressões ou posições ideológicas ou filosóficas contrastantes com o sentimento jurídico da sociedade expresso na Constituição.
Lembrando que "não intervém, nem pode intervir", em questões jurisdicionais, o CSM considera, contudo, que as sentenças dos tribunais devem realizar “a justiça do caso concreto sem obediência ou expressão de posições ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento jurídico da sociedade em cada momento, expresso, em primeira linha, na Constituição e Leis da República, aqui se incluindo, tipicamente, os princípios da igualdade de género e da laicidade do Estado".
O órgão responsável pela gestão e disciplina dos juízes realça ainda que nem todas as "proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes" constantes de sentenças assumem relevância disciplinar, cabendo ao Conselho Plenário pronunciar-se sobre tal matéria.
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