Não fez tropa por causa do olhos, mas tem uma visão muito clara do quer, para a pasta que ocupa, da Defesa Nacional, e não só. O ministro Azeredo Lopes detesta generalizações, é católico, bairrista, torce pelo Boavista e não perde uma oportunidade para elogiar António Costa e espetar uma alfinetada na oposição.
Já sofreu diversos reveses desde que chegou ao governo, mas mantém-se firme no lugar e nas convicções. Explica o caso do Comandos, do Euro2016, do Colégio Militar e outros. Fala da estratégia da Defesa para Portugal e para a União Europeia, do terrorismo e das ameaças no flanco Leste. «Hoje, a defesa está muito para lá do nosso umbigo».
Tem para gerir em 2017 um orçamento de 2,150 mil milhões incluindo receitas. E muito onde alocar estas verbas: contratação de militares, há muitas vagas para preencher, novo sistema de financiamento para os deficientes das Forças Armadas, dotação da Força Aérea de meios para o combate a incêndios são apenas uma parcela.
Nesta entrevista ao SAPO24, o ministro da Defesa Nacional faz um retrato do sector.
Fez tropa?
Não. Mas não fiz porque não me quiseram, por causa dos olhos.
É a favor do Serviço Militar Obrigatório?
Não é uma questão de ser a favor ou contra. Temos tendência para enquadrar o Serviço Militar Obrigatório à luz daquilo que conhecemos antes de ter acabado a sua obrigatoriedade. Hoje – e esta foi uma das questões que suscitei logo na primeira audição no Parlamento -, a discussão é muito diferente: a colocar-se o problema de se relançar alguma forma de obrigatoriedade de prestar serviço nas Forças Armadas, nunca seria com a configuração anterior, não faria sentido.
Por que motivo?
Independentemente de tudo, não concordo com a ideia de transferir para as Forças Armadas a obrigação de educar os jovens, aquela ideia de que no tempo do Serviço Militar Obrigatório é que era bom porque as pessoas aprendiam a ter disciplina e certos valores - um pouco como havia quem dissesse que tinha que ser a televisão a desempenhar o papel de educador em relação à escola. Penso que essa não pode ser nunca uma vocação das Forças Armadas.
No entanto, hoje a questão da segurança e da defesa voltam a estar em primeiro plano e, para isso, é preciso gente.
Essa discussão está muito forte em vários países, sobretudo do Norte da Europa. Na Alemanha, desde a aprovação do Livro Branco da Defesa, em Julho deste ano, discute-se se pode haver uma reforma intermédia que permita ou faça os cidadãos participar no esforço da Defesa Nacional, sobretudo considerando o que é a defesa hoje e quais são as ameaças. Em França foi relançada uma forma de participação ou disponibilização cidadã que não me incomoda.
E em Portugal?
Em Portugal a questão tem de ser vista de forma diferente. Ainda estamos a implementar um modelo de regime baseado na contratação e no voluntariado e não faz muito sentido, antes de se verificar as virtudes deste esquema, aperfeiçoar formas de recrutamento ou passar para outra abordagem. Isso não acontecerá nos tempos mais próximos, não vejo necessidade.
Mas falta gente nas Forças Armadas?
Temos tido dificuldade para preencher as vagas, mas essa dificuldade não vem de uma dificuldade estrutural, vem do acumular de não contratações durante três ou quatro anos. O governo anterior não contratou ninguém e, de repente, temos, em termos teóricos, milhares que temos de contratar num ano, o que é impossível. Acredito que este ano chegaremos, em alguns casos, como no Exército, aos 70%, o que já é muito bom. Questão mais funda é perceber porque se tornou a carreira militar menos atractiva, se não estamos a perder a capacidade de fazer os jovens encarar a vida militar como uma carreira estimulante.
Há aquela ideia ignorante – e a ignorância é atrevida - de que as Forças Armadas não são precisas para nada, no limite até se acabava com elas
E estão?
Esta questão tem também a ver com a formação que somos capazes de dar, com a estabilidade contratual, com a criação de um quadro permanente que não esteja sistematicamente sujeito a alterações, modificações e restrições, com a progressão de carreira. Isto, não escondo, é um factor de preocupação. É tão importante preencher vagas, como ter cada vez gente mais qualificada, no sentido de não estarmos até ao limite para, um pouco artificialmente, preenchermos quotas de recrutamento. A culpa nunca é de quem procura, é de quem oferece. Ou seja, ou a Defesa Nacional é capaz de propor ao mercado uma carreira interessante, ou vamos continuar com problemas.
A falta de militares é extensiva aos diversos ramos da Forças Armadas?
Sim, há uma tendência para maiores dificuldades no Exército, também porque a base de incidência de recrutamento é maior. No total, estamos a falar de uma falha de mil a 2000 homens. Parece pouco, mas pesa na capacidade operacional, sobretudo se pretendemos que a vocação das Forças Armadas também seja em missões internas – transporte de doentes, salvamentos, combate a incêndios. Só nos incêndios este ano o Exército fez um esforço três vezes superior ao normal, que atingiu 39 a 40 pelotões. Mostrou-se com alguma crueza como, de facto, a manta está curta. Com os constrangimentos orçamentais que temos vamos tentando conseguir chegar a todas.
Tem vindo a ser feita a tal renovação?
É preciso ver que as Forças Armadas foram obrigadas a um esforço brutal de adaptação, eram típicas do tempo da guerra colonial. Isto deixa marcas, e a remodelação foi feita de forma exemplar e num tempo muito curto. Há aquela ideia ignorante – e a ignorância é atrevida - de que as Forças Armadas não são precisas para nada, no limite até se acabava com elas. Hoje, devagarinho, começamos a mudar essa opinião, muito associada a um conceito de força armada ligada a conflitos muito tradicionais. Ter mais gente também implica que consigamos perceber de uma vez por todas que as Forças Armadas têm de saber comunicar. Hoje não se comunica por edital ou por anúncio nos jornais diários, sabemos que para as faixas etárias mais jovens a comunicação se faz muito pelas redes sociais, pelo digital, pela imagem. Ou não atingimos quem queremos atingir.
Afirmou que é preciso saber o que se quer da Defesa. O que quer da Defesa?
Hoje a nossa defesa joga-se na República Centro-Africana, para onde estão a partir os primeiros militares, joga-se no Mali, para onde partiram várias dezenas, que conto visitar este Natal, joga-se no Afeganistão, joga-se no flanco Leste. Houve uma desterritorialização – ninguém é capaz de associar o território português a uma fronteira física, como eu por memória de infância, em que se parava e vinha a guarda revistar as malas para ver se havia contrabando de bacalhau e bombons. A ideia de que Portugal não corre riscos porque não há nada para invadir é um erro quase público. Cada vez mais estamos perante ameaças que, se calhar, não têm paralelo desde a guerra colonial. A nossa defesa joga-se não de forma isolada, mas através de uma rede de organizações e de alianças em que participamos. Ou seja, estaremos menos defendidos se não participarmos na NATO ou no esforço crescente da União Europeia para reforçar as suas capacidades em matéria de defesa. Estaremos menos defendidos, até pelas ligações fortíssimas que temos ao continente africano, se, ao contrário do que aconteceu nos últimos anos, não dissermos presente quando nos é solicitada a presença em missões de peace keeping, que está a evoluir a uma velocidade impressionante nas Nações Unidas, passando daquela lógica muito antiga e um pouco romântica dos capacetes azuis para uma lógica multifuncional, multidimensional e cada vez mais moderna.
Quais são as grandes ameaças, hoje?
Além do flanco Leste, na sequência do processo ocupação da Crimeia pela Rússia e da desestabilização da Ucrânia, também pela Rússia, há a circunstância do conjunto de ameaças de um terrorismo transnacional, que tem alterado o perfil daquilo que conhecíamos, mais perigoso e ameaçador. O 11 de Setembro, primeiro, veio provar a existência de uma organização ágil e inteligente num país que se considerava imune a qualquer acto do género. Hoje, o Daesh consegue acumular capacidade para actuar como organização terrorista a nível global – os ataques de Paris, Bruxelas, Nice - com uma grande eficiência para instigar medo. Da mesma sorte, e isto é relevante para o Estado português, ganharam terreno os ciber-ataques; o digital é um campo imenso e pode servir como instrumento de arremesso. O investimento na área da Ciberdefesa está a ser feito, mas aqui não há as fronteiras tradicionais: terra, mar e ar e levantam-se até questões difíceis em termos jurídicos. A Estónia ficou incapacitada em 2008. Em Portugal, e aqui haverá mérito dos sistemas de governação, a segurança e a defesa têm-se mantido relativamente imunes a estas ameaças, mas isto só vai continuar a conseguir-se se aceitarmos que a defesa se projecta muito longe, no Kosovo, na República Centro-Africana, arredados do nosso espaço natural.
É bom que possamos dizer que os nossos paraquedistas foram os melhores soldados no Afeganistão
Qual o papel de Portugal, das Forças Armadas portuguesas, nessa estratégia global?
Portugal tem um crédito muito elevado, tem prestígio e tem pessoas competentíssimas. Esse aspecto é uma mais-valia. É bom que possamos dizer que os nossos paraquedistas foram os melhores soldados no Afeganistão. Na República Centro-Africana, onde em breve se iniciará uma missão efectiva com a presença de 160 homens, era ver as reacções das Nações Unidas. Projectamos Portugal com capacidade, com um custo absolutamente contido, de uma forma muito eficiente. Falamos em empresas, em exportação, mas a representação e a imagem da política externa também tem consequências ao nível da credibilidade do país.
Quanto representa essa presença, em homens e orçamento?
Estamos a falar de uma verba de 58 milhões de euros, que subirá no segundo ano, embora não muito. Em concreto estão mais de 500 pessoas fora, em rotação, mais de mil. Era bom que olhássemos de fora para o nosso país para vermos o que dizem de Portugal e das suas Forças Armadas, das Forças Especiais, da Força Aérea, da Marinha e do trabalho fantástico que estão a desenvolver no Mediterrâneo ou nos países do Báltico, na Lituânia. É um factor de orgulho, de prestígio para o país, e é superior à dimensão do país. Temos Forças Armadas que comparam perfeitamente, do ponto de vista da competência, da eficiência, com as de outros países. E há um factor que me destacam sempre, que é onde vamos, damo-nos bem com toda a gente. Nunca um soldado português na história militar foi acusado de violação de qualquer direito humanitário…
A não ser cá dentro.
Não vá por aí.
Já lá vamos. Falou no combate aos incêndios, há quem defenda que o financiamento devia ser feito pela prevenção e não por fogo apagado, caso contrário está-se a estimular uma indústria que vive deste negócio. Concorda?
Que haja uma dimensão económica do combate a incêndio, naturalmente que sim, basta a circunstância da contratualização com privados que, não tendo de ser bons samaritanos, presume-se que querem ter um lucro razoável. Isso nem sequer me constrange particularmente. Quanto ao modelo, a estratégia de combate aos incêndios, é essencialmente pensada e executada pela Administração Interna, portanto não quero pronunciar-me sobre isso. Pronunciei-me quando fui perguntado e o primeiro-ministro, numa intervenção que fez quando fomos visitar as delegações de países estrangeiros que vieram ajudar no combate aos incêndios, expôs em 20 ou 25 minutos porque é que se esperava que as Forças Armadas, em particular a Força Aérea, tivessem um papel mais significativo aí.
Sei que tenho in-house pilotos do melhor que há, sei que algum equipamento está previsto com o duplo uso neste sentido, civil e militar, e seria desperdício deixar de lado
Vai ser a Força Aérea a combater incêndios?
Isto envolve questões, uma delas é o equipamento. Sem prejuízo de não ter que me preocupar com qual o equipamento para combate a incêndios, sei que tenho in-house pilotos do melhor que há, sei que algum equipamento está previsto com o duplo uso neste sentido, civil e militar, e seria desperdício deixar de lado. Depois, há a circunstância de a Força Aérea desempenhar já inúmeras missões que têm um carácter civil, no sentido não estritamente militar ou bélico, como o transporte de doentes, o salvamento de pessoas ou missões de fiscalização e vigilância da nossa costa, das nossas águas. A questão que se coloca é a do modelo. O modelo está a ser pensado, mas não é extraordinariamente urgente, porque o governo anterior prolongou até 2017 o contrato com privados e isso dá-nos o tempo para, de uma vez por todas, enfrentarmos a questão: quem está mais vocacionado, quem tem mais capacidade de planeamento, mais capacidade operacional.
António Costa defendeu, enquanto ministro de Estado e da Administração Interna, que devia ser a Força Aérea a combater os incêndios. A criação da EMA, na altura, foi uma escolha condicionada.
É impensável, é uma doença portuguesa, falarmos sempre do que aconteceu no passado para explicar porque não acontece no presente ou não vai acontecer no futuro. Não tenho a certeza que as Forças Armadas estivessem vocacionadas ou tivessem especial vontade nessa altura. Há circunstâncias em que é difícil uma visão completa do que aconteceu.
Mas a Força Aérea já se mostrou disponível.
Quando?
No governo anterior.
Isso, felizmente, já parece a pré-história. A situação a que se refere mudou. A questão principal colocou-se em 1999. Agora vamos estudar o modelo.
Não existem já estudos feitos?
Não, isso é outro mito. O estudo mais recente ficou a meio. Não só ficou a meio, como as partes que o elaboraram colocaram uma nota em que declararam não concordar com a interpretação dos termos fundamentais utilizados, como operações, empenhamento. E apontavam para a possibilidade ou a vantagem do maior envolvimento da Força Aérea, mas faltava a segunda parte, uma coisa que as pessoas esquecem, que é dizer como seria esse envolvimento. Se ler o relatório, que eu li de fio a pavio, não está lá. Ora, demorou dois anos a fazer um relatório que, no fundo, não passa da sopa. Agora mal passou um ano e já se avançou muito, já se consensualizou que a Força Aérea pode e deve ter um papel no combate aos incêndios e nas missões de interesse público e já se está a falar, não de estudos, mas de algo no plano executivo.
Qual será o próximo passo?
Vão ser lançados concursos públicos para a aquisição dos helicópteros que vêm substituir os que deixam de poder voar no início de 2018, o que quer dizer que temos de andar com celeridade.
Vão comprar mais Kamov?
Nunca comprei Kamov. Eu sou muito aborrecido, porque repito sempre a mesma coisa, pareço a grafonola do Eça. Também existe a questão do avião de transporte, mais tarde ou mais cedo vai ter de ser enfrentada a substituição dos C130. A questão não é dramática, o Ministério da Defesa lançou já um concurso para a modernização dos novos C130, infelizmente menos um por causa da tragédia do 11 de Julho, um momento terrível. Temos um modelo, que é o KC390, de que tanto se fala, porque tem uma componente nacional forte, quer através da investigação e concepção, quer através da produção, uma vez que a parte exterior da fuselagem, mais de 50%, é produzida em Portugal. O primeiro-ministro anunciou a decisão para breve e vamos ver se assim será. Se assim for, esse tipo de aeronave tem possibilidade de adaptação de um kit contra incêndio - deixando eu claro que é óbvio que não é com estes kits que vamos ter capacidade para enfrentar os incêndios, mas também com os nossos pilotos.
Diz que é muito aborrecido, mas tem tido uma vida animada. Quais foram os casos mais difíceis com que se deparou desde que chegou à Defesa?
Não tive casos difíceis, a não ser que entenda por difíceis aqueles que têm mais exposição mediática. Comecei logo em grande, com o Colégio Militar, a seguir a demissão do Chefe do Estado-Maior, depois a tragédia na Força Aérea, com a morte de soldados, e a 4 de Setembro mais mortes no curso de Comandos. Não terá sido dos anos mais tranquilos na Defesa Nacional. Tinham-me dito que era uma pasta tranquilíssima.
diziam-me que [a Defesa] era uma pasta tranquila. Espero ter esgotado tudo este ano, senão estou bem arranjado.
Como chegou a ministro da Defesa?
Em Lisboa, aparentemente, havia poucos que soubessem e as informações demoram a chegar, mas a minha carreira é toda na área das Relações Internacionais e nos estudos de Defesa, tanto assim que tinha uma prática - já não sei há quantos anos dava aulas – em estudo de guerra, estudos de defesa nacional, estudos superiores militares. A minha formação é muito ligada à Defesa, ao uso da força, sempre foi uma área que achei interessante. Mas diziam-me que era uma pasta tranquila. Espero ter esgotado tudo este ano, senão estou bem arranjado.
Sobre os Comandos, que responsabilidades já foram averiguadas e o que falta saber?
A 4 de Setembro temos os factos que me dispenso de descrever e que resultaram na morte de dois jovens, dois instruendos, num curso de Comandos. O que garanti imediatamente e continuo a garantir foi que - sem prejuízo de não ter de me meter rigorosamente em nada que dissesse respeito à responsabilidade criminal ou até à responsabilidade do ilícito disciplinar, que incumbe em primeira linha ao Exército -, no que depender de mim, não vai ficar nenhum inquérito na gaveta e vamos conseguir reconstituir o que se passou e, se for caso disso, extrair as devidas consequências. Os militares são um sector fundamental da nossa soberania, mas isso não significa nem guetos, nem a própria infantilização dos militares como sendo uma coisa dos militares.
Não serão reiniciados cursos de Comandos enquanto não houver conclusões ou, se as conclusões apontarem para modificações, enquanto estas não forem implementadas
E o que revelam os inquéritos?
Primeiro, foi desencadeado um inquérito disciplinar para apuramento dos factos. Depois, perante a segunda morte e o internamento de vários instruendos, foi tomada a decisão de suspender o curso até ver exames médicos. Depois do rastreio continuou-se, com a suspensão de futuros cursos dos Comandos enquanto não houvesse o resultado de um segundo inquérito, extraordinário especial, determinado pelo senhor Chefe do Estado-Maior do Exército com o meu acordo pleno e que incide sobre o plano de formação do curso de Comandos. Este inquérito estará pronto e vai ser divulgado até ao fim da próxima semana e permitir-nos-á ver, se for o caso, o que é necessário corrigir em futuras formações. Temos de ver se isto é algo que possa ser analisado como uma fatalidade, que resulta da preparação, sempre duríssima, de forças especiais, ou se, independentemente disso, é necessário alterar alguma coisa para evitar situações futuras. É uma obrigação pública que não se encare de ânimo leve mortes, incapacitados e feridos ou pessoas em risco de vida. Não serão reiniciados cursos de Comandos enquanto não houver conclusões ou, se as conclusões apontarem para modificações, enquanto estas não forem implementadas.
Isto para o futuro. Em relação ao que aconteceu?
Relativamente aos factos ocorridos, tanto quanto sei, ou a qualquer circunstância passada, há uma intervenção da polícia judiciária militar que trabalha sob a alçada do Ministério Público. Consoante a envergadura dos factos – já há uma primeira pronuncia do Ministério Público, que determina detenções -, as pessoas são ouvidas pelo juiz de instrução. Isto continuando eu sem pressupor inocência ou culpabilidade, porque a obrigação estrita de um decisor político nestas circunstâncias é não pecar por omissão, se me permite a expressão, não assobiar para o lado. É certo que hoje está cumprida a minha primeira obrigação. A partir do momento em que está no poder judicial, é de bom tom num Estado de direito que se cale quem não pertence ao poder judicial. Ou que continue a falar se tiver elementos concretos que permitam pôr em causa aquilo que é a acção do poder judicial. Não será o ministro da Defesa a fazê-lo. Ao mesmo tempo, está prestes a ser concluído o inquérito disciplinar determinado pelo Exército, não há nada que vá ficar em pousio, tudo será esmiuçado. Só se está à espera que sejam transmitidas ao Exército os resultados das autópsias.
A propósito de acidentes, Portugal enviou para o Ultramar uma quantidade de gente a quem pediu sacrifícios. Pode, agora, descartar responsabilidades em relação aos deficientes de guerra? Até as próteses são compradas através da central de compras pública, como se se tratasse de papel para fotocópias.
Há dois problemas aqui, o da gestão das compras e o da natureza do produto. Uma prótese, como diz, não é um produto standard, tem de ser adaptado e, sem ser especialista no assunto, sei que há períodos em que têm de ser trocadas. O Tribunal de Contas não aceitava a solução anterior, o que estava a causar problemas graves, e a resposta encontrada foi centralizar, numa relação com o Hospital das Forças Armadas, a aquisição dessas próteses ou até de outros produtos, como algálias. O sistema não é perfeito e vamos ter de o aperfeiçoar rapidamente. O que estava aqui em causa era uma ruptura, não havia fundos disponíveis para assegurar essas próteses, e foi feito um esforço enorme. Essa era uma questão crucial para nós, não permitir que os deficientes das Forças Armadas ficassem desprovidos de uma coisa que nem é só de saúde, é de decência. Até ver, temos conseguido estancar essas questões.
Falou num novo modelo, aperfeiçoado…
Estamos a trabalhar num outro modelo, que garanta com mais estabilidade que não falhe nunca mais o financiamento deste tipo de necessidades, que é quase uma questão de ética pública, não permitir que um deficiente da Forças Armadas tenha de reclamar uma prótese, um tratamento ou algo que lhe garante uma vida decente. E é, depois, a circunstância de o deficiente das Forças Armadas ser tendencialmente uma pessoa idosa, com o que isso envolve de problemas adicionais. Isto está a ser trabalhado, é uma matéria que está na esfera do secretário de Estado, mas trata-se de garantir em primeiro lugar, sabendo que as empresas hoje não têm stocks deste tipo de produtos e que alguns deles têm de ser específicos para cada caso, e com a antecipação devida, quais vão ser as necessidades dos utentes no ano seguinte. Elogio o comendador Arruda, presidente da ADFA – Associação de Deficientes das Forças Armadas, que foi exemplar a chamar a atenção para a gravidade da situação com sensatez, depois de nos apercebermos que era um sistema que tinha sido construído para enfrentar as dificuldades de contratação que o Tribunal de Contas detectou. Mas era um sistema dramaticamente suborçamentado.
E o Hospital das Forças Armadas?
O Hospital das Forças Armadas está a ser renovado, tem obras até 2018. Os problemas resultam, entre aspas, da sua juventude e de uma situação que era depauperada dos três hospitais dos ramos. Em terceiro lugar, de ter de estar a concorrer com sistemas muito mais sofisticados, até privados. Um hospital também tem clientela, se eu puder optar… E o Hospital das FA depara-se com este problema, numa altura em que está em construção o modelo de desenvolvimento que só algures para 2018 estará consolidado. Mas fui lá ver dois dos jovens dos Comandos que estavam ainda internados, situações difíceis, questões hepáticas, e que foram muito bem resolvidas, com equipamento inaugurada há pouco tempo. Não é fácil a distinção entre saúde assistencial e saúde operacional, cada uma reclama efectivos. Neste momento o grande constrangimento é o financiamento de um produto que é muito caro.
Nas relações internacionais não há santas casas da misericórdia, quem paga diz qual é a música que a banda toca
Voltando às questões internacionais, um ex-primeiro-ministro belga publicou um artigo sobre como defender a Europa na era Trump…
Há muito que sabíamos, há muito tempo que os Estados Unidos o dizem - nem posso atribuir isso ao presidente eleito, porque o presidente Obama já o tinha dito, Clinton já o tinha dito, Bush já o tinha dito, e ninguém me acusará de simpatia pela presidência Bush, pelo contrário -, que mais tarde ou mais cedo os europeus teriam de enfrentar a circunstância de estarem há décadas a viver sob o guarda-chuva estado-unidense. Isto porque se olharmos para o que é o envolvimento da NATO em termos orçamentais, os Estados Unidos assumem a parte de leão. Evidentemente que pela circunstância de financiar este esforço também gozava de poder, nas relações internacionais não há santas casas da misericórdia, quem paga diz qual é a música que a banda toca. Mas basta ver que na presidência Obama a primeira visita de um secretário de Estado, a senhora Hillary Clinton, ao estrangeiro não foi à Europa, mas ao continente asiático. E percebemos que fomos sempre recusando enfrentar a ideia de que pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial dificilmente conseguimos invocar as responsabilidades transatlânticas se a solidariedade assentava em “tu pagas e nós ficamos defendidos”. Não parece muito equitativo. Desde há dois anos, e por pressão norte-americana, aponta-se para que tanto quanto possível e até 2020 os estados europeus e membros da NATO devem ter 2% do PIB consagrado à área da Defesa.
Estamos longe?
Há quem esteja pior e nos dê muitas lições. Porventura, não devíamos ter olhado para 2% do PIB, mas para a percentagem consagrada a equipamentos e investimento, se calhar tinha sido mais avisado. Portugal, segundo o cânones da NATO, tem uma percentagem alocada a investimento e a reequipamento baixíssima, isto porque o peso mais significativo, por razões perfeitamente compreensíveis, é dos recursos humanos das Forças Armadas. Segundo os critérios da NATO, andamos algures entre os 1,35% e os 1,39% do PIB, o que não é mau, compara perfeitamente com outros estados. Ah, já há quatro países acima dos 2%... Pois há.
Quem são?
São a Polónia, por causa do flanco Leste, a Roménia vai a caminho, é o Reino Unido e os Estados Unidos.
O Reino Unido é uma preocupação?
Bem, o Reino Unido não sai da NATO, sai da União Europeia. Isto tudo vai obrigar a uma análise fina que só o tempo nos permitirá ver um pouco mais claro, que é qual o efeito do Brexit. Temos o efeito Brexit em vários domínios, mas há um efeito que não é menos importante, e que é se isso é bom ou é mau, considerando que os 22 membros da NATO são membros da União Europeia.
E é bom ou mau?
Tendo a achar que não é mau e isso, porventura, é confirmado pela vontade clara desde o Brexit de a União Europeia robustecer a autonomia estratégica que, por um ou outro motivo, nunca teve. Ao mesmo tempo, e Portugal tem sido relativamente cauteloso neste plano, dizendo o seguinte com clareza: somos favoráveis a um reforço da Defesa Europeia, a um pensamento europeu de defesa que, aliás, reforçará a NATO, na nossa opinião, se os países europeus estiverem mais robustos. Mas também não queremos, primeiro, que de repente se estejam a criar novos standards e novas alcavalas para os Estados, a fuga para a frente em que, de repente, estamos outra vez com balanços anuais, com standards que não foram cumpridos, com ameaça de sanções e troca o passo. E que por isso, esta é a posição que acho muito ponderada do Estado português, parece-nos importante que não se veja no desenvolvimento acelerado de uma Europa da Defesa, aquilo que alguns casais que estão com problemas tentam resolver fazendo um filho. É um pouco a ideia de vamos encontrar um paliativo e, de repente, esquecemos que para trás temos a economia, a união monetária, o rescaldo das diferentes intervenções financeiras em vários países, a dívida, a coesão e muitos problemas para reforçar a União Europeia como entidade politicamente coerente, sustentável e solidária.
Basta ver o que aí vem…
Sim, se juntarmos a isso o referendo em Itália, as eleições francesas, depois as holandesas e a seguir as alemãs, 2017 vai ser um ano muito estimulante desse ponto de vista. Nunca nos esqueçamos do seguinte: na campanha norte-americana, os dois principais candidatos, Hillary e Trump, concordaram em que o tempo em que os Estados Unidos essencialmente financiavam a NATO tinha acabado. Um tem mais verve a afirmar as suas ideias, mas a substância estava lá penso que é importante, até como capacitação das nossas soberanias e capacitação política da União Europeia, que os europeus não sejam sistematicamente conhecidos como bons alunos economicamente, ou nem isso, e em termos políticos – passámos a vida a ouvir isto - a fingir que não era connosco. Se calhar talvez percebamos de uma vez por todas que a dimensão política de blocos ou de estados tão unidos como vínculos a organizações internacionais também resulta de assumirem as suas responsabilidades em matérias de soberania tão cruciais como são as da Defesa.
A União Europeia foi construída assente num projecto de paz. Mas, de certa forma, estivemos a “desarmar” a Alemanha que, neste momento, é dos poucos países com capacidade para investir. Não é perigoso?
Não há perigo, nem existe uma relação linear. A Alemanha é um país vocacionado para a paz. O projecto político de paz partiu de premissa oposta: em vez de se tornarem os estados vencidos em párias, construir uma Europa em paz. Resultado é fantástico, tivemos período de paz como nunca antes tínhamos conhecido na historia da Europa. A capacidade económica da Alemanha existe, mas também o direito e a obrigação de defender a Europa. Não vejo qualquer sinal que afaste a Alemanha desta matriz. E, já agora, o esforço da Alemanha na Defesa em termos de PIB até é inferior ao de Portugal.
O que vai acontecer à Base Aérea das Lages?
O que temos estado a discutir é uma proposta de revisão do acordo, no âmbito dos Negócios Estrangeiros e com a colaboração da Defesa. O assunto envolve as relações entre os Estado Unidos e Portugal, que têm um acordo bilateral de cooperação e defesa. Temos a percepção de que os EUA têm menos pessoal do que há uns anos e as discussões partem do pressuposto que esta não tem de ser uma base militar. Mas levantam-se várias questões, em termos de estruturas, a nível ambiental e outros. Pode funcionar como placa de outros projectos ligados à Defesa Nacional, à ciência e economia, um projecto de segurança atlântica. Esperamos contar com EUA e Portugal e espera interessar outros países. O que é preciso é não chorar sobre o leite derramado e aceitar como normal que investimento dos Estados Unidos na base seja menor do que no passado e trazer outros actores tendo em conta relação transatlântica.
Muito cuidado: não se pode transformar a Defesa Nacional num instrumento empresarial. Dito isto, tenho como fio de prumo que se pudermos associar competência ao desenvolvimento da indústria, apoiarei.
Sobre o centro táctico para treino de helicópteros. Vai ser em Portugal?
Esse é um projecto que envolve a Agência Europeia de Defesa e está a ser estudado. Muito cuidado: não se pode transformar a Defesa Nacional num instrumento empresarial. Dito isto, tenho como fio de prumo que se pudermos associar competência ao desenvolvimento da indústria, apoiarei.
O turismo militar tem esta lógica empresarial?
O turismo militar tem a ver com dois aspectos fundamentais: a gestão adequada de um património - que já não é nada do que foi no passado, porque houve alienações nos últimos anos - e um lado mais imaterial. Há a possibilidade de alienação, de cedência contratualizada ao poder local e a outras entidades, públicas ou privadas, que desenvolvam acções, por exemplo, de natureza cultural, histórica ou de alojamento turístico. Existem vários modelos de negócio ou abordagens. É um processo complexo, ainda estamos a trabalhar nele e não vejo muito clara a ideia do turismo militar. Até ao fim do primeiro trimestre próximo ano haverá um documento estratégico, mas ainda estamos a debater o modelo orientador, que envolve muitos actores.
Como tem a União Europeia assumido o tema da Defesa?
A Europa tem falado muito mais. É bom termos presente que o último grande documento sobre a defesa é de 2003. Era outro mundo, em que a Europa era tudo maravilhas, prosperidade, paz e amor. É interessante que este documento é muito mais pessimista, numa altura em que a Europa está confrontada com dúvidas - a estratégia global da União Europeia foi aprovada cinco dias depois do referendo britânico. Ficaria um papel muito bem feito mas de fogo fátuo se não houvesse avanços a partir daí, e é nisso que se está a trabalhar. É um momento importante, saber o que vamos conseguir aprovar até ao fim do ano como plano de implementação, sobretudo na área da defesa e da segurança.
O que está em causa no plano da implementação?
No plano da implementação discute-se se vamos ter ou não o mínimo de institucionalização - e cuidado para não estar a duplicar quartéis generais e infra-estruturas. Outra questão crucial é o que podemos fazer com os países a sul, ou seja, de que forma podemos contribuir para os capacitar – por eles, não por nós, não há protectorados - na segurança e no desenvolvimento. Vamos percebendo cada vez mais que isso é impossível sem a Defesa. Como vai explicar à Tunísia que é só segurança, desenvolvimento, quando tem a sua fronteira leste com a Líbia? Como vai dizer isso ao Magreb, que está instável e que representa a primeira barreira que nos protege? Temos a mania de olhar para sul com comiseração, mas é esse sul que nos protege do lado de cá. Portanto, há um dever. Há egoísmo, o interesse normal de um estado em procurar ter a sua defesa garantida, mas acredito firmemente eu é no sul que vai jogar-se tudo na defesa. Conseguiremos mais paz e mais segurança se conseguirmos criar mais paz e mais capacidades nos países onde a ameaça vai bater em primeiro lugar.
No século XXI a defesa de um país não se constrói no país, constrói-se muito para lá dele
É lá que está o maior número de vítimas, mas é longe, não é, como se diz, impactante para os europeus, não é uma causa simpática?
Um ministro de um país do sul que visitei dizia-me: mais de 90% das vítimas do Daesh são muçulmanas e ocorrem nos países do sul, não do norte. Os vossos países valem com certeza um pouco mais do que os nossos, mas se houver um atentando numa capital europeia o impacto global é infinitamente superior ao de uma tragédia com centenas de mortos no sul. Para mim uma vida é uma vida, mas se houver um terramoto na China ou um descarrilamento na Hungria ninguém liga – e, para voltar a evocar Eça -, se for um desmanche da perna de Luisinha Carneiro [«Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha»] ficamos todos angustiados. Também é bom que tenhamos a humildade de perceber que só teremos essa solidariedade se primeiro estivermos dispostos a fazer algo para garantir isso. No século XXI a defesa de um país não se constrói no país, constrói-se muito para lá dele. Por isso tenho muito orgulho em dizer que as nossas forças que vão para a República Centro-Africana estão a defender Portugal.
Os ataques terroristas também levaram as pessoas a ter uma nova perspectiva sobre a defesa, não?
Pensam muito mais na dimensão securitária. As pessoas têm medo e, sobretudo, viveram décadas de estabilidade onde o terrorismo era quase sempre associado a questões de reivindicações nacionais, como a ETA ou o IRA, e onde éramos capazes de reconhecer o que o terrorista queria. Mesmo se fossemos para a Palestina era fácil perceber o que era alegado. O terrorismo contemporâneo tem uma natureza transnacional e não quer isso, quer essencialmente destruir-nos. O que é um tanto traumatizante, pensar que há organizações que vivem e pensam como é que vão dar cabo de nós. Foi preciso esperar por 2001, quando a Al-Qaeda só tinha atacado os costumes, e pela primeira vez e com uma inteligência superior, atacou o coração daquilo que era o nosso imaginário e desencadeou uma reacção tremenda, ultra-securitária, que veio a resultar numa legislação que diminuiu as nossas liberdades.
Não tenho a certeza que estejamos a perceber exactamente de que forma aceitamos ser manipulados por alguém que controla muito bem o funcionamento das redes sociais, da internet.
Recentemente já se começavam a ouvir vozes a favor de medidas mais drásticas. Qual a sua opinião?
A verdade é que para nós continua a ser uma ameaça muito difusa. O problema é que temos tendência a reagir primeiro de forma emotiva. É preocupante que sectores importantes da nossa sociedade estariam dispostos a decisões políticas e, se necessário, a renunciar a um património de direitos e liberdades. Essas movimentações deixam-me aterrado. É curioso que se aponta à direita quase sempre a ideia da defesa perante o Estado. Hoje, os que ameaçam a Europa não são propriamente dessa área. Eu devo ser um liberalão, porque a ideia de me restringirem a reserva da minha vida privada, da minha vida íntima, é uma coisa que acho terrível. Ainda não conseguimos enfrentar bem a ideia e a capacidade mediática de incutir o medo que têm estas organizações, que estavam a desenvolver uma doença tremenda nas nossas sociedades, pela habituação ao absurdo, que levou a própria organização terrorista a inventar formas cada vez mais aberrantes de dar a morte. Isto mostra que este tipo de organizações nos conhece muito bem, a nossa curiosidade um pouco doentia. Não tenho a certeza que estejamos a perceber exactamente de que forma aceitamos ser manipulados por alguém que controla muito bem o funcionamento das redes sociais, da internet.
Mudando para um assunto completamente diferente, mas que também pode ser encarado como outro tipo de terrorismo: há duas semanas foi votada no Parlamento Europeu uma petição para se investigar a actuação da Comissão Europeia enquanto porta giratória, a propósito da ida de Durão Barroso para a Goldman Sachs, e está a ser revisto o código de conduta dos comissários. Cá foi feito um código de conduta para os membros do governo, a propósito da questão da oferta de bilhetes para o Euro2016. São necessários códigos de conduta para distinguir más e boas práticas?
Isso é uma pergunta demagógica e populista, mas faz todo o sentido. A sua pergunta é se não basta ser ético e honesto e é preciso códigos para nos ensinarem isso. Eu admito que sim, claro que bastava. Penso que há usos sociais que hoje não são concebíveis, embora quem os continuasse a praticar não seja desonesto, compreende? Há uma forma de regulação que também depende do espaço público que nos influencia. Eu não sou barato. O problema, hoje, e essa é talvez uma das doenças da vida pública, é de que as pessoas não são perfeitas e não pode apontar para aí, qualquer dia somos todos feitos em moldes demasiado apertados, que levam a que pouca gente tenha paciência – desculpe, mas digo isto com sinceridade - para aturar a vida pública.
Quando der a volta a tudo vamos perceber que a diferença radical continua a estar no ser honesto ou desonesto, ético ou não ético, e não se aceitou ou não um bilhete de avião
Há um limite? Qual?
Atenção que está a falar com alguém que acredita profundamente no escrutínio, por mais violento que seja, e não tenho receio, se for caso disso, de enfrentar esse escrutínio e de me defender. O meu receio é que na gestão da vida pública confundamos a aparência com a realidade e, portanto, que alguém que consiga respeitar todas as regras relativas a esses usos sociais seja tido como virtuosíssimo, quando eu podia apontar outros comportamentos não filtrados por essas regras nos quais não me revejo. Se sou contra o código de conduta? Mal não faz. Quando der a volta a tudo vamos perceber que a diferença radical continua a estar no ser honesto ou desonesto, ético ou não ético, e não se aceitou ou não um bilhete de avião. O código de conduta vai induzir comportamentos e tem uma vantagem importante: quem pertence ao governo, eu, não pode dizer que não sabia. Concorde ou não, tem a vantagem da clarificação, assenta na sensatez e ajuda a balizar comportamentos que, na melhor das boas fés, praticamos, mas que podem ser tidos como se fossemos uns facínoras ou pudéssemos ser comprados por interesses obscuros.
E em menos de um ano as pessoas olham para Portugal de forma diferente, acabou a tragédia do período revolucionário em curso em Portugal,
Este governo está a ter os resultados que esperava, a nível político, económico e social?
Penso que sim, e isso até me diverte. A nível político é indiscutível; a diferença de ambiente quando foi aprovado o primeiro orçamento, um ambiente um bocadinho de arena, com insultos a choverem com frequência, e quando foi aprovado o de 2017, quase um acto burguês e banal, é muito interessante. Estamos a falar de poucos meses, porque o orçamento de 2016 tinha sido aprovado há pouco meses. Há vários aspectos que não me surpreenderam, conhecendo o primeiro-ministro: primeiro uma capacidade política absolutamente fantástica, vi-o em acção na cimeira da NATO, que era uma cimeira de chefes de governo, ministros de Negócios Estrangeiros e ministros da Defesa, na altura em que estávamos nas negociações diplomáticas para evitar as sanções. O primeiro-ministro falou com todos. Todos. Tem essa capacidade, consegue uma coisa extraordinária, e em menos de um ano as pessoas olham para Portugal de forma diferente, acabou a tragédia do período revolucionário em curso em Portugal, aquela ideia que, aliás, está a ter um efeito de memorando bastante significativo para a oposição.
Que ideia é essa?
É um pouco a história de Pedro e o lobo. Pois, do Pedro. Tanto gritou que vinha o lobo, que vinha a tragédia, que vinha aí o país dos sovietes e, de repente, veio um país mais normal, um país mais pacificado consigo mesmo, que é uma coisa para mim muito importante. Estamos com menos acrimónia uns em relação aos outros. Eu dizia com tristeza que estávamos a caminhar para uma guerra civil verbal, em que cada um detestava o outro e imputava ao outro das piores malfeitorias. Hoje isto está pacificado e deve-se muito a este primeiro-ministro, à capacidade de ter paciência, de explicar, de negociar.
Por sistema, a afronta sistemática a um Tribunal, transformando isso num joguete político, no fundo, nós contra os velhos do Restelo, isso acabou. E sem ter reparos, tau-taus ou puxões de orelhas
Acredita, então, nos resultados?
Ao contrário do que tantos diziam e bombardeavam, é possível fazer diferente, sendo tanto ou mais exigente na gestão dos recursos públicos. Esta é outra lição extraordinária que a esquerda dá. Executou um orçamento, não houve rectificativos, o défice vai ficar bem abaixo dos 3%, quando diziam que íamos para valores estratosféricos e que estávamos a preparar outro resgate. Portanto, esse ferrete, acho que está a levantar-se a galope. Também nunca mais houve decisões de inconstitucionalidade - não é só para picar, acredito mesmo nisto. Que podiam acontecer, não tem mal, é por isso que existe um Tribunal Constitucional e é por isso que acredito muito nos juristas, mas, por sistema, a afronta sistemática a um Tribunal, transformando isso num joguete político, no fundo, nós contra os velhos do Restelo, isso acabou. E sem ter reparos, tau-taus ou puxões de orelhas.
Tem tido alguns…
Excepto uns, que vêm sempre do mesmo lado, um membro do governo alemão que gosta de falar de Portugal. Mas a liberdade e expressão é isso mesmo, temos de o encarar com tolerância democrática e com simpatia – também não temos outra forma. Isto significa que se demonstrou que a esquerda à esquerda do PS defende modelos de sociedade que, com toda a certeza, não são exactamente iguais, havendo opções políticas que não seriam as de um governo do PS - o governo é do PS, embora com acordo de incidência parlamentar. Em menos de um ano quebraram-se vários tabus em torno de ligações pecaminosas, de que quem falasse ao Partido Comunista ia para o inferno, quem falasse com o Bloco de Esquerda estava condenado, porque estava imediatamente contaminado. E depois verifica-se, também com enorme mérito de quem faz a ponte entre o governo e parlamento, que é possível falar e chegar a consensos. Saber ceder é uma das grandes virtudes da negociação, não ter medo de não ganhar sempre.
Esta lógica muito portuguesa das meias-tintas, não falar ou não fazer para não incomodar, não é comigo
Quais foram para si os grandes erros?
No meu caso teria feito exactamente o que fiz, mesmo com o Colégio Militar. Negoceio tudo, não negoceio princípios. Acredito na instituição, na ideia de honra, de lealdade, mas o Colégio Militar não é para militares adultos, primeiro, é para jovens, para crianças, e não se pode ignorar a obrigação real ou potencial de discriminação que incide sobre entidades públicas e privadas, com particular acuidade onde houver recursos públicos afectos ao ensino. Além de que não interferi em nada na vida interna do colégio. O senhor sub-director do Colégio Militar não agiu por mal, mas fez declarações infelizes e que tinham de ser clarificadas. A comunicação é importante, as palavras podem ser como pedras. Esta lógica muito portuguesa das meias-tintas, não falar ou não fazer para não incomodar, não é comigo.
Comentários