"Monárquico convicto ao serviço da república", José Bouza Serrano começou a sua carreira em Madrid e terminou-a em Haia. Pelo caminho, Bruxelas, Santa Sé e Copenhaga. Pura coincidência, uma carreira passada em monarquias, embora "para o fim já tenha sido um bocadinho mais forçado [ri]".

Diz de Espanha que é como os primeiros amores, nunca se esquece. Não só porque foi lá o seu primeiro posto no estrangeiro, como porque tem costela galega, é daí que vem o Bouza. Memórias da movida madrilena não lhe faltam e até traduziu um fado da Amália para um filme de Pedro Almodóvar.

Só lamenta o país atualmente mergulhado no caos e o exílio do rei emérito, que hoje estará finalmente com a neta Leonor, a filha mais velha de Filipe e Letícia, princesa das Astúrias, primeira na linha de sucessão ao trono, que cumpre 18 anos neste 31 de Outubro, dia das bruxas, só para contrariar.

"Juan Carlos, o rei sem-abrigo" é, aliás, o mais recente livro de José Bouza Serrano (se o título não for este, foi assim que o imaginou), recentemente entregue na editora e a aguardar publicação.

Confessa-se um acumulador e a casa cheia não o desmente. Foi lá que recebeu o SAPO24, dias depois do casamento da Infanta Maria Francisca de Bragança, que ajudou a organizar, tarefa complicada mesmo para o antigo chefe do Protocolo do Estado.

Feliz, estas são as primeiras fotografias do embaixador sem óculos, depois da operação às cataratas. Mas o verdadeiro retrato vai sendo traçado à medida que desfila as histórias de mais de 40 anos de carreira, 73 de vida: como aquela em que Mário Soares esteve quase a receber o título de duque ou a da visita do Papa Bento XVI a Portugal e das ameaças que foi preciso travar.

Como lhe dizia Duarte Pinto Coelho, "tu podes ficar sentado ao pé de qualquer maçador porque falas com as pedras".

Nunca as relações diplomáticas estiveram tão embrulhadas. Refiro-me aos últimos 50 anos, por aí. Era aqui que imaginava Portugal e o mundo no século XXI?

Sinceramente, não esperei chegar a esta idade e ver o meu país como está, o mundo como está e a diplomacia como está. Porque não foi para nada disto que eu trabalhei. Nada. Em 40 anos de Ministério dos Negócios Estrangeiros não era para isto; de repente, as coisas esboroam-se de uma maneira disparatada. E não é por eu estar mais velho ou a envelhecer, é porque isto degradou-se muito.

"Espanha está um caos. Uma esquerda selvagem, completamente republicana, que não tem nada a ver com nada, achincalha toda a gente. Foram buscar o Puigdemont e gente ensortable [com que não se pode sair]."

Isto o quê, exatamente?

Veja a situação aqui ao lado. Fui cinco anos e meio secretário e depois conselheiro em Madrid. Espanha é um país de que gosto imenso - acabei agora o meu livro sobre o rei D. Juan Carlos -, mas está um caos.

Uma esquerda selvagem, completamente republicana, que não tem nada a ver com nada, achincalha toda a gente. Foram buscar o Puigdemont e gente ensortable [com que não se pode sair], como aquela ministra da Educação [e Formação Profissional, Isabel Celaá] ou a ministra da Igualdade [Irene Montero], que era caixa num supermercado.

E isto não é snobeira, é para dizer que o estado em que o país está e a fragmentação e os ódios e os insultos e o disparate não fazem sentido. Esta história das línguas, têm uma língua com um valor económico extraordinário no mundo, o castelhano, e agora vão pôr-se a falar basco, a falar galego? Eu sou meio galego, mas não percebo isto.

Sobretudo, acabaram por denegrir a ideia do rei.

O rei Juan Carlos fez alguma coisa para evitar isso?

Este fim de reinado foi fatal, mas a História acaba por absolvê-lo. Porque ele foi tão importante, herdou o poder completo e absoluto de Franco e abriu mão dele, transformou a coroa em Espanha. Foi a coroa que trouxe a democracia, antes tinham um regime totalitário.

E os Borbón são assim, têm a cabeça da cintura para baixo. Todos eles, incluindo Afonso XIII [avô de Juan Carlos]. Mas também é normal os reis terem amantes. Não se lembra do que dizia o príncipe Carlos à princesa Diana? "Tu queres que eu seja o primeiro príncipe de Gales que não tem amantes?" Numa história de não sei quantos séculos, era grave [ri]. E hoje, com a comunicação social, não dá para manter a coisa privada, há sempre uma câmara.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Voltando ao livro, lembro-me de o ouvir dizer que não escreveria sobre o rei Juan Carlos I. O que mudou?

E não queria escrever, explico isso numa nota prévia. Quando se gosta das pessoas é difícil não poder justificá-las. Não poder salvá-lo, essa é que é a parte má. Mas sou honesto, tento ser verdadeiro. Acabei de o escrever e já está no editor desde agosto.

Mas, além disso, estas eleições tramaram-me. Já tinha um capítulo escrito, porque Alberto Núñez Feijóo tinha dito que se o PP ganhasse as eleições, acabava com o estúpido exílio do rei emérito. Mas não deu. E estragou-me um capítulo todo.

Pensei, realmente, que o PP ia ganhar, que a onda expansiva em Madrid se generalizava pelo país todo. Mas estão muito fragmentados e nestes quatro anos o governo criou ainda mais divisões.

Hoje a princesa Leonor de Espanha faz 18 anos. O avô Juan Carlos vai à cerimónia.

Devo dizer que começo o livro um bocadinho mal, neste sentido: neste momento o único sítio que Juan Carlos tem seguro é o pudridero [onde os restos mortais da família real permaneceram cerca de 25 anos], no Escorial. Ele não tem onde viver. Não tem uma casa, foi expulso do Palácio da Zarzuela [residência dos reis de Espanha], por causa do primeiro-ministro, que insistiu com o rei [Filipe VI] para tirar de lá o pai.

E então Juan Carlos deu uma bofetada sem luva ou com luva ou como quiserem: Ai sim? Então vou para Abu Dhabi, que lá tratam-me bem. É extraordinário, porque foi para um país que não tem nada de democrático, mas onde ele sabe que é apreciado e tratado "à corpo de rey".

Ele tem dinheiro, mas para desanuviar a coroa teve de sair do seu país já velho, sacrificar-se depois de tudo o que fez durante a vida. Porque toda a vida se sacrificou pelo conde de Barcelona, pela coroa, foi um miúdo sozinho, sofria imenso por estar desterrado da família, achava que não gostavam dele. E agora, já velho, numa altura em que devia estar a descansar, a ideia de morrer fora... É muito triste, muito deprimente, alguém que nasce no exílio e morre no exílio. Espero que isto se resolva.

Disse que é meio galego. Quer explicar?

A minha família é de lisboetas, embora tivessem origens diferentes: as do meu pai no Alentejo, as da minha mãe na Galiza. Por herança do meu avô Salvador, que era monárquico. E que dizia sempre: "O nosso rei, que está no Estoril". Morreu quando eu tinha dez anos. Era difícil, porque dizia que os homens não se beijam e era o único avô que eu tinha. Mas era tuberculoso, não queria passar a doença, só percebi isso mais tarde. Em miúdo tive pena.

Vivia em Portugal, mas tinha casa na Galiza. E quando o meu pai foi fazer um estágio à Banque Nationale de Belgique, em Bruxelas, mandou-nos para lá, a mim, ao meu irmão, com a minha mãe, a prima Etelvina, que era minha percetora, e a Conceição, uma criada.

Sempre tive uma ligação muito especial a Espanha e a tudo o que era espanhol. Tem graça, porque tenho uma fotografia em que está Afonso XIII com todos os netos [mostra]: ao colo, bebé, está a infanta Margarida, que é cega, e a olhar para ela está Juan Carlos. Conheci todos.

Depois, o meu primeiro posto no estrangeiro, do qual nunca me libertei, foi em Madrid. O primeiro posto é como os primeiros amores, há sempre um momento em que vem aquela nostalgia.

Pode contar algum episódio que o tenha marcado nessa época?

O trabalho era fascinante. E, numa embaixada que na altura era grande, eu era o mais novo. Um dia até fiquei encarregado de negócios, mas para aquilo chegar até mim era dificílimo. Eu tinha aquelas coisas: a mala diplomática, a telegrafia, ir ao aeroporto, as coisas mais chatas que calham aos mais novos. Mas estava no sítio onde tinha pedido para estar e isso ajuda muito. E sentia-me em casa. Além de que apanhei a época maravilhosa da movida.

Agora, achei giríssimo o Pedro Almodóvar ter feito o filme "Estranha Forma de Vida". Porque naquela altura eu conhecia o irmão dele, Agustín, que me veio dizer: "O meu irmão quer ver-te porque quer que lhe traduzas um fado da Amália". Não era este, era um fado do David Mourão-Ferreira, e o Pedro queria saber exatamente o sentido das palavras. Era para um filme que ia chamar-se "A Mulher Tóxica". Mas acabou por ser o "Átame!".

"Sempre vivi uma vida, como hei de dizer, não é uma dupla personalidade, mas se por um lado sempre fui muito formal, por outro adoro transgredir - mas não é fazer poucochinho das pessoas, mas a gente para dizer mal tem que se divertir."

A sério? Que graça.

[Vai buscar "uma coisa" e chega com o guião do filme "Ata-me!"] É uma coisa de que gosto muito e que alterou a minha vida. É o guião do filme, mas tem muito mais, cartões e tudo. "Aqui vai um pedaço da tua alma gémea", escreve um amigo.

"A Mulher Tóxica" era uma portuguesa que tinha sido raptada por um grupo de ciganos e tinha fugido com o circo. E, como era portuguesa, tinha de ter um fundo português, era essa música que ele queria que eu traduzisse. O fado era o "Libertação":

Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Tive esta vantagem enorme de apanhar a movida. Portanto, isto é uma relíquia. Ainda me escrevo com o Agustín de vez em quando, o Pedro nunca mais vi. Vi-o uma vez em Itália, muito preocupado porque um homem matou-se no Sagrado, no Vaticano, e ele queria saber as implicações daquilo tudo. Mas fui às gravações do "Ata-me!".

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Porque é que esse amigo diz que Pedro Almodóvar era a sua alma gémea?

Sempre vivi uma vida, como hei de dizer, não é uma dupla personalidade, mas se por um lado sempre fui muito formal, por outro adoro transgredir - mas não é fazer poucochinho das pessoas, mas a gente para dizer mal tem que se divertir. E tocar nos pontos certos. Ele depois politizou-se muito mais, hoje está muito mais à esquerda, mas aquela irreverência e as coisas absurdas que capta e vai buscar são de rir à gargalhada. E eu sempre apreciei essa irreverência e o humor dele.

Ele é um homem que vem do campo, o manchego que vem para a cidade, onde trabalha numa coisa muito modesta que é a Telefónica, e começa a fazer filmes com aquelas câmaras pequeninas. O Pedro era exatamente isso, um brilhantismo extraordinário e uma irreverência que, naquela Espanha cañi e super formal, chegou e revolveu tudo.

Como ele conheci artistas interessantíssimos, como Lucio Muñoz. Também porque tive a sorte de ter como amigo uma pessoa que me ajudou muitíssimo, o Duarte Pinto Coelho, um homem extraordinário, na maneira como recebia, nos conhecimentos. Cultivava muito a aristocracia - a Maria João Avillez, que ainda é parente dele, entrevistou-o, e ele disse: "Sim, sou snob, mas isso não é mau. Snob é remar para cima".

[Ainda a folhear  guião] Isto é o bilhete da estreia. Mas era um bocadinho ridículo, eu ia ver as estreias dos filmes dele e ria-me sozinho na sala, mais ninguém se ria [dá uma gargalhada]. Tinha imensa graça. E aqui um cartão: "Para José Bouza, ahora no te aburres en Bruselas?", que foi quando fui para a Bélgica.

"A Europa do meu tempo não tem nada a ver com esta. Mas também está maior. Fizemos mal uma coisa: alargámos sem aprofundar, tal era a nervoseira para meter alguns países na NATO."

Imagino a cinzenta Bruxelas comparada com a frenética Madrid.

Mas Bruxelas era o nosso futuro. Vivemos isto intensamente, sou do tempo de Jacques Delors [antigo presidente da Comissão Europeia]. Ele ia à missa e era mal visto pelos socialistas por isso. A Europa do meu tempo não tem nada a ver com esta. Por um lado a estrutura foi alterada e há um certo número de órgãos novos. Mas também está maior. Fizemos mal uma coisa: alargámos sem aprofundar, tal era a nervoseira para meter alguns países na NATO.

Um pouco o que está acontecer agora, para agarrarmos os Balcãs. Preocupa-o?

Pois, o problema é que a Rússia não pára. Está tudo muito confuso. Como no Médio Oriente, foram anos a achincalhar os árabes, alguma coisa tinha de acontecer. Está aqui o resultado, uma barbárie.

Vamos ver, mesmo em relação à União Europeia, tudo não se perde, porque já há muita coisa ganha. Mas a evolução não vai ser a mesma e não vai ser segura, porque as coisas estão muito mutantes. O medo é inibidor e, sobretudo, leva a pensar mal. Uma pessoa com medo não raciocina bem, o que dá desastre.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Já voltamos a este tema. Também deve ter conhecido gente enfadonha ao longo da sua carreira...

Sim, também conheci maçadores horrorosos. Havia uma que me calhava sempre ao lado e me dizia assim: "Mas como é que você tem tantas condecorações? O meu marido é embaixador e não tem nada disso". Sempre a mesma conversa. À terceira ou à quarta vez respondi: "Sabe, eu como os corn flakes para diplomatas e, dentro das caixas, vêm estas medalhinhas. Se juntarmos quatro dão estas grandes". Nunca mais me falou.

Todos temos uma certa resistência, mas agora não tenho nenhuma. Já estou nesta idade em que digo as maiores barbaridades. Isso e, agora que estou reformado, tomo o pequeno-almoço na cama todos os dias. A minha mãe é que dizia: "Bebes um copo de água na cama e fica tudo cheio de migalhas". É a vingança.

Reformou-se na pandemia. Como é entrar na reforma?

Foi estranhíssimo. Mas o ministro [dos Negócios Estrangeiros] foi muito simpático e por ocasião da cerimónia de homenagem aos embaixadores que se retiravam deu-nos um jantar. Éramos pouquíssimos, só o ministro, os secretários de Estado, quatro embaixadores e a minha antiga número dois, depois Chefe do Protocolo, Clarinha Nunes de Santos.

"Sócrates tinha uma insensibilidade natural."

Há pouco, quando contou a história das medalhas, pensei que ia contar outra, uma gaffe do duque de Edimburgo...

Ah, não. Essa foi numa cerimónia oficial, com o embaixador Mendonça e Cunha. O duque de Edimburgo ficou pasmado a olhar para a quantidade de condecorações que ele tinha. Contornou-o e depois disse qualquer coisa como: "Ena, estava a ver se também tinha nas costas".

E em Portugal, também temos os nossos gaffeurs? Quais as figuras de Estado mais inconvenientes?

Sócrates. Por exemplo, estávamos na Tunísia a convite, no Palácio do presidente, e chamava o empregado: "Vinho, quero vinho". "Nós não servimos vinho", respondia. "Mas eu quero vinho". Tinha uma insensibilidade natural.

Outra: tínhamos uma mesa posta na Ajuda, um jantar do senhor presidente da República. As pessoas já tinham dito se iam ou não iam e punha-se o primeiro-ministro: "Então não vens ao jantar?", "Ao jantar, mas qual jantar?" "Um jantar na Ajuda". E arrebanhava as pessoas do Conselho de Ministros. E nós com as mesas postas, os lugares marcados. Enfim, passámos umas coisitas, sim.

Dito isto, sempre foi cordato comigo e sempre me tratou muito bem. Agora, era sempre uma caixinha de surpresas, tudo podia acontecer. Às vezes já tinha a pessoa que ia receber à espera e ia correr. O homem do protocolo dizia: "Ma tête roulera, ma tête roulera...".

"Marcelo não falha, mas é super agitado, põe uns programas em cima dos outros. Ele, fundamentalmente, é carente, mas foi toda a vida."

E Marcelo Rebelo de Sousa, que todos dizem ser especialista a quebrar regras do protocolo, é?

Ele não falha, mas é super agitado, põe uns programas em cima dos outros. Ele, fundamentalmente, é carente, mas foi toda a vida. E nunca resolveu isso, é a sua natureza. Hoje em dia, com o meu estado de saúde, era impossível ser chefe de protocolo do presidente Marcelo Rebelo de Sousa. É verdade que precisávamos de um escape, mas não pode passar do distanciamento total para os beijos e abraços e gelados na rua. O presidente da República não é o Catitinha. E não estou a ver isto como monárquico, estou a ver como cidadão. E é uma pessoa que admiro e de quem gosto muito. Mas isto é excessivo.

"Os portugueses não gostam de riqueza, são até bastante miserabilistas. Não assumem um certo número de coisas. A verdade é que a república foi imposta de uma maneira anormal, mas vingou. E estes 100 anos de república mataram oito séculos de monarquia."

Como foi ajudar a organizar o casamento de Maria Francisca de Bragança? Ouvi dizer que o "rei" da Madeira, Miguel Albuquerque, levou os filhos, que não estavam convidados... Vem isto a propósito dos pontapés no protocolo.

Pois, nem sempre é fácil, ainda por cima não cabia nem mais uma agulha e as mesas foram muito pensadas. Tentámos várias soluções, mas não quis aceitar nenhuma. Mas resolveu-se, claro. Para o protocolo éramos quatro pessoas, porque era um modelo com muitas variáveis, tinha imensa gente, o carro dos cavalos, o problema da segurança, a acreditação dos jornalistas, os bolos, o vestido da noiva.

Na véspera tivemos o arraial, giríssimo, com a Sra. D. Maria Francisca vestida de noiva do Minho, tão bonita, o loiro do cabelo com o preto do traje de Viana. E no dia seguinte o jantar, a mesa dos noivos, a mesa do Sr. D. Duarte e da Sra. D. Isabel, de 12 lugares, e 40 mesas de dez, todas com nomes de castelos de Portugal.

Lembro-me da Sra. D. Isabel dizer: "Estou convosco uma hora e depois tenho de ir com a Chica à cabeleireira, porque não gostou da maneira como a penteou. Mas ela é uma pessoa muito completa, inteligente e desprendida ao mesmo tempo. Foi uma noiva dócil e amorosa e bonita e, sobretudo, repassava felicidade.

E, numa altura em que as pessoas estão todas com um ar triste, maçador, a grunhir e só temos notícias das pessoas que querem ir ao médico e estão nas bichas desde as seis da manhã... Foram três dias de festa e Portugal precisava disto. Estamos sempre a puxar para baixo.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Os portugueses têm com a monarquia uma relação amor/ódio. Concorda?

Os portugueses não gostam de riqueza, são até bastante miserabilistas. Não assumem um certo número de coisas. A verdade é que a república foi imposta de uma maneira anormal, mas vingou. E estes 100 anos de república mataram oito séculos de monarquia.

Mas depois durante uma semana foi a magia. As pessoas também têm de ter um certo fascínio, senão isto não pega. Claro, não é uma coisa massiva como o Serviço Nacional de Saúde, mas serve também para pôr um certo iato nessas discussões, porque não se ouve outra coisa entre orçamentos e lutas políticas. É bom um bocadinho de glamour, é bom ver senhoras bonitas, com joias bonitas, com chapéus bonitos. Senão fica tudo normalizado por baixo. Eu gosto. Gosto e defendo.

Uma das preocupações é quem estaria a pagar o casamento.

O Sr. D. Duarte Nuno, pai do Sr. D. Duarte, era afilhado da rainha D. Amélia, neto de D. Miguel I. Quando se extinguiu a sucessão, no rei D. Manuel, teve de se subir pela árvore genealógica, arranjar um progenitor comum e descer pelo outro ramo. Por outro lado, o Sr. D. Duarte pai casou com uma prima Orleães e Bragança. O Sr. D. Duarte junta nele os dois ramos, o liberal e o absolutista. E ainda haverá coisas para resolver, porque há um património que ainda não herdaram e vão ter de herdar.

"A população vai sofrer muito. O problema é sempre o mesmo: nem todos os palestinianos são Hamas, mas vão todos apanhar pela mesma medida. É como a Catalunha: nem todos os catalães são separatistas."

Do Brasil? Um catedrático, Rodrigo Tavares, diz que os brasileiros é que pagaram o casamento e fala exatamente nos dinheiros das rendas recebidas do Brasil.

Sim, claro, mas têm todo o direito, são descendentes. Recebem rendas, mas se os grandes edifícios forem vendidos, terão uma participação maior. Heranças são as heranças, e D. Duarte, pelo lado da mãe, do ramo de Petrópolis, tem direito a receber o seu património.

Da mesma maneira que há pessoas que ainda recebem dinheiro da Índia, porque descendem de vice-reis e têm rendimentos ainda hoje, no século XXI. Os patrimónios são eternos, a não ser que venha uma revolução e venham os comunistas dar cabo de tudo, ou que acabem por nacionalizar as propriedades. Ainda há quem tenha tenças, coisas que a gente nem imagina. É natural que o Sr. D. Duarte, descendente da Sra. D. Francisca Orleães e Bragança, dos imperadores do Brasil, receba daí.

Claro que da parte de D. Miguel ficou pouca coisa, porque foi um rei proscrito, acabou por ir para o exílio. Mas a rainha D. Amélia deixou uma tiara bonita e outras joias, além de uma série de prédios no Chiado. E isso, hoje em dia, transformado, arranjado e bem administrado representa um aggiornamento do património. E têm a casa de Sintra, que é uma beleza.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Escreveu "A Viúva de Windsor - Histórias da História do Longo Reinado de Isabel II". Há pouco falou no duque de Edimburgo, que não teve sempre uma vida fácil.

O príncipe Filipe teve uma vida difícil. Houve a revolução na Grécia e teve de sair, veio numa caixa de laranjas. De repente, ficou sem família, tinha imensas irmãs, e uma delas morreu com toda a família num acidente de avião.

Ele tinha sangue real, mas era pobre. E era estrangeiro. E claro, desistiu da sua nacionalidade; aliás, até para ser promovido na carreira militar tinha de ser britânico. Abdicou de tudo. Depois deram-lhe alguns títulos no dia em que casou.

A mãe, no meio daquilo tudo, ainda tinha uma tiara, porque a realeza guarda sempre as joias, é a sua segurança. Ele tirou-lhe uma das pedras e fez um alfinete para dar à rainha Isabel II de prenda de pedido [de casamento].

A realeza tem essa vantagem: tem uma tiara, tira uma pedra preciosa e faz um anel, tira duas pedrinhas, faz uns brincos. Muitas vezes também tinham baixelas de prata e, quando o dinheiro não chegava ao fim do mês, empenhava-se a baixela e a coisa lá dava para mais uns meses, até vir um tempo melhor e poder recuperar a baixela ao penhor.

Os espanhóis têm uma coisa que é as joias de passar, que são as que se herdam, e as joias pessoais. A rainha Vitória Eugénia tinha joias maravilhosas e a casa na Suíça, onde viveu e morreu, foi comprada com o dinheiro de uma cruz de diamantes e safiras. E vendeu uma parure de esmeraldas, conta a condessa de Barcelona nas suas memórias, ao joalheiro Harry Winston, que, quando foi avaliar as pedras uma a uma, descobriu que duas eram falsas, tinham sido trocadas sabe-se lá quando.

"Trump é um cancro, uma pessoa que desprezo, é um selvagem, um grunho. E um aldrabão, mentiroso, agora está-se a descobrir tudo o que fez."

Entretanto, no dia do casamento real, houve o ataque do Hamas a Israel.

Acredita que eu não sabia? Não soube, estava desligado, durante todo o dia não tomei consciência do resto do mundo. Há noite, estava cá o antigo em embaixador dos Estados Unidos, George Glass, que veio só para o casamento e ficou na minha mesa. "Vamos ter um problema enorme", disse. E eu perguntei: "Mas o que aconteceu?" Fiquei chocadíssimo. A minha tese, quando fiz o concurso para secretário da embaixada, foi exatamente sobre o Médio Oriente e o conflito israelo-árabe. É um ponto que nunca sai da agenda, porque como tem sido insolúvel. Mas foi brutal.

A população vai sofrer muito. O problema é sempre o mesmo: nem todos os palestinianos são Hamas, mas vão todos apanhar pela mesma medida. É como a Catalunha: nem todos os catalães são separatistas.

Mas veja, como é que o presidente da América pode ganhar sem o lobby judaico? Não pode, não há presidente nenhum que ganhe eleições sem o lobby judaico.

"Foi uma degradação sucessiva dos valores. Não sei como caímos desta maneira, demorou anos, mas não vi chegar esta mediocridade."

Isto vem dar mais força a Trump?

Infelizmente sim. Trump é um cancro, uma pessoa que desprezo, é um selvagem, um grunho. E um aldrabão, mentiroso, agora está-se a descobrir tudo o que fez. Mas já viu, mesmo com todo este passado pode ser eleito. Que raio de democracia. Então num país de milhões de habitantes a única escolha é entre aqueles dois [Biden e Trump], como?

O Brasil tem o mesmo problema: entre Lula e Bolsonaro, venha o diabo e escolha. Mas é para isto que eu cheguei aos 73 anos? É isto que me obrigam a ver? Como é que caímos tão baixo?

Como foi? Retribuo as perguntas.

Foi uma degradação sucessiva dos valores. E não há vida espiritual - nem digo religiosa, porque a pessoa podia substituir a religião por outra coisa -, mas é tudo material, só conta isso. Não sei como caímos desta maneira, demorou anos, mas não vi chegar esta mediocridade.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

O que mudaria em Portugal se o país fosse uma monarquia?

Ah, era ótimo. Mas é uma ficção, nem eu acredito nisso. Tenho pena, mas isto é só uma causa, porque a República e todos os seus vícios está incrustada nos portugueses, agora não havia maneira de recriar uma monarquia.

"Se fossemos uma monarquia, desde logo não havia estes dramas de Marcelo e Costa, porque o rei reina, não governa. Sobretudo, os reis têm de se manter no seu pedestal e não podem andar a trocar galhardetes."

Já outros o fizeram, como a Espanha.

Sim, mas foi feito a partir de uma posição de força. Salazar também enganou imensos monárquicos, que pensaram que ele ia restaurar o Sr. D. Duarte pai. Nunca teve essa ideia. A Franco, às tantas, também disseram que era bom pensar num sucessor. É curioso, porque ele era galego. E dizia-se: quando encontras um galego na escada nunca saberás se vai a subir ou a descer. A propósito da ambiguidade galega. E ele era muito isso, jogava em vários tabuleiros. Era um homem inteligente, sem dúvida, ambicioso, com muitas frustrações, o pai tinha saído de casa e arranjado uma família nova, sentia-se abandonado.

Depois arranjou aquela mulher, Dona Carmen Polo, de um estrato social superior ao dele, e as pessoas achavam estranho, não queriam que ela casasse com um militar. Mas ele deu-lhe tudo o que ela queria. Acho que foi o Kissinger que a certa altura disse: "Está na altura de Franco passar o poder para o rei D. Juan Carlos, mas não acredito que a mulher queira sair daquele palácio".

Mas olhe, se fossemos uma monarquia, desde logo não havia estes dramas de Marcelo e Costa, porque o rei reina, não governa. Sobretudo, os reis têm de se manter no seu pedestal e não podem andar a trocar galhardetes.

A ética republicana?

É um horror. Isto da ética republicana é treta, em Portugal não existe. E depois são uns possidónios, só faltava serem do Partido Comunista, com os 'amanhãs que cantam'. Vão desafinar para outro lado.

Mas, deixe-me dizer-lhe, só com Mário Soares é que foi possível casar D. Duarte de Bragança e D. Isabel de Herédia. Sampaio, por exemplo, era completamente republicano - e um bocadinho maçador. E foi uma estupidez ter dissolvido o parlamento quando havia maioria. Não foi bem feito.

Mas o casamento real em 1995 não teria acontecido nos Jerónimos e  nem com aquela pompa e circunstância se Jorge Sampaio fosse o presidente da República. Agora, Mário Soares importava-se, era amigo dele [D. Duarte], e sabia que não havia ameaça nenhuma em honrar o duque de Bragança.

"Quando a princesa Diana veio a Portugal, a certa altura, a falar com Mário Soares, começa a puxar-lhe os suspensórios, e ele a derreter."

É verdade que o rei Juan Carlos esteve para dar um título a Mário Soares?

Sim, sim, é verdade. Eles davam-se lindamente. Penso que o Dr. Mário Soares ainda pensou: "Ai, eu para mim não, mas para os meus filhos..." Por um lado ele era uma pessoa muito aberta, por outro aquilo era contranatura. E a ideia não coagulou, deve ter pensado que se iria encher de ridículo, que os inimigos o iriam atacar. Era too much. Nunca falei disto com João Soares [filho], mas deve ter tido algumas reticências por ser laico, republicano e duque.

Ele tinha muita graça. Estávamos numa reunião e dizia: "Porque a produção de azeite", olhava para o lado e perguntava: "Quanto é que a gente produz?" Não sabia nada, não lia. Era um animal político, mas detalhes não era com ele.

Mário Soares tem outras histórias com reis. E com princesas também. Há uma com a princesa Diana que gostava que contasse.

Ah, quando a princesa Diana veio a Portugal ficaram todos impressionadíssimos, estavam todos muito deslumbrados. Ela era um sex symbol. E a certa altura, a falar com Mário Soares, começa a puxar-lhe os suspensórios, e ele a derreter. Ela era naughty [malandra] para os velhinhos. Até Cavaco Silva lhe dedica duas ou três páginas das suas memórias.

Foi responsável pela vinda do Papa Bento XVI a Portugal. Como foi tratar de todos os pormenores da visita?

Tínhamos imensas ameaças. Por exemplo, que iam atirar preservativos quando fosse a passagem do cortejo. Porque na altura já havia o problema dos escândalos na Igreja. As ameaças eram fazerem desagravos ao Papa, coisas para o achincalhar. Mas assumiu um certo número de coisas, penso que vinha com um certo humor e saiu de cá outra pessoa.

Foi extraordinário, uma visita muito espiritual. Eu não sou muito de Fátima, mas dormir duas noites sob o mesmo teto que o Papa, andar no helicóptero do Papa, no carro do Papa... santifica [ri].

"A confidencialidade do que observamos devemos guardar para nós. Alguns dos meus colegas contaram coisas que depois os prejudicaram na carreira, porque há sempre os Paulo Portas que escrevem sobre as mantas da TAP [caso Deus Pinheiro], é muito desagradável."

Quem foi para si o pior ministro dos Negócios Estrangeiros desde o 25 de Abril?

Sabe, é uma pasta em que as pessoas se defendem. Mesmo sem fazer muito podem não ser desastrosos Mas houve aqueles de quem gostei mais, como por exemplo Jaime Gama, meu ministro duas vezes. E trabalhei com João de Deus Pinheiro e com o André Gonçalves Pereira, de quem gostei muito.

Há um lado mais silencioso da carreira?

A confidencialidade. Porque às vezes assistimos a coisas, somos testemunhas. Na Dinamarca e em alguns países a pessoa assina um compromisso em como não pode escrever memórias. Quer dizer, literalmente vemos ministros de cuecas. Vi vários. A confidencialidade do que observamos devemos guardar para nós. Alguns dos meus colegas contaram coisas que depois os prejudicaram na carreira, porque há sempre os Paulo Portas que escrevem sobre as mantas da TAP [caso Deus Pinheiro], é muito desagradável.

De resto, o que vejo de mais importante é ter a possibilidade de intervir. Que às vezes temos.

"A vida às vezes é difícil. Veja o embaixador na Ucrânia, os riscos que corre. Há colegas que passam muita coisa. Eu tive sorte, não tive nada dramático."
créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Acredita que os portugueses lá fora se sentem representados, sentem a diplomacia a funcionar a seu favor?

Então não se diz que o Luxemburgo é a terceira maior cidade de Portugal? Às vezes é preciso fazer uma ginástica enorme, porque os consulados e embaixadas não têm gente suficiente para acudir. Nos Países Baixos tínhamos um consulado em Roterdão e dávamos cobertura também à população de Cabo Verde. Fecharam o consulado por razões económicas e foi tudo para Haia, onde não tínhamos muitos trabalhadores.

E a vida às vezes é difícil. Veja o embaixador na Ucrânia, os riscos que corre. Há colegas que passam muita coisa. Eu tive sorte, não tive nada dramático. Ainda me lembro de quando estávamos no Vaticano e pedíamos ao Santo Padre para no Angelus dizer "Timor, Timor, Timor". "Mas porque é que vocês fazem tanta gala numa meia ilha no meio do Pacífico? Que obsessão", dizia. Mas era uma questão de princípio.

"Temos de ter a noção de que aquilo que vivemos nos palácios não é para sempre, e que num dia é o Rolls-Royce, no outro uma abóbora. Há colegas que nunca recuperam, é um trauma."

Falava-se na diplomacia do croquete. Isso acabou ou ainda existe?

É uma injustiça. As coisas resolvem-se melhor à volta de uma mesa ou à volta de um copo de vinho. Aliás, quem paga muito disso somos nós. E também não nos podemos habituar, sabemos que anos mais tarde vamos ter de aquecer o jantar no microondas e ver o telejornal numa televisão que está dentro de um armário de tabuleiro à frente.

Temos de ter a noção de que aquilo que vivemos nos palácios não é para sempre, e que num dia é o Rolls-Royce, no outro uma abóbora. Há colegas que nunca recuperam, é um trauma. Mas temos de ter a noção que escolhemos a segunda profissão mais velha do mundo. Claro, a nossa carreira é um aluvião, as experiências vão acumulando.

Para terminar, tem-se vindo a falar cada vez com mais insistência em reparações históricas, indemnizar países por danos causados pela guerra, pela escravatura. Concorda?

Mas agora temos um complexo de culpa? A vida era assim. Passaram-se séculos, não podemos repor. A história é um rio que nunca volta atrás, é o devir histórico. Podemos corrigir algumas coisas, mas se fosse para nos desculparem, então não parávamos de pedir perdão todos os dias. E agora, vamo-nos autoflagelar? Só os masoquistas não sabem assumir-se. Fizemos coisas gloriosas e fizemos coisas más. Ponto.

Choca-me muito isso, como esta cultura woke, que acho um disparate. Reescrever a Enid Blyton? É ridículo. Casas de banho sem sexo? Deem as voltas que derem, acabamos todos no urologista ou na ginecologista. É patético que as discussões tenham caído para este nível, mesmo em grandes países como os Estados Unidos. Como é que chegámos a isto? Esta cultura woke é completamente parva, mas tem muita saída.