Estamos mesmo a viver uma crise migratória sem precedentes e descontrolada? Esta é a pergunta que encabeça a apresentação do livro "Como Funciona Realmente a Migração - Um guia factual sobre a questão que mais divide a política" de Hein de Haas. O autor que esteve, na semana passada, em Lisboa, é tudo menos um amador em matéria de migrações. Professor de Sociologia e Geografia na Universidade de Amsterdão, é também um dos fundadores do International Migration Institute (IMI) e propõe "uma visão radicalmente nova da migração, que não se baseie em interesses políticos ou perspetivas ideológicas, mas, pelo contrário, olhe para a migração tal como ela é". Foi com essa premissa que o fomos ouvir num encontro promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Uma primeira nota do especialista que há mais de três décadas estuda as migrações é que temos de normalizar a sua existência e deixar de tratar como se fosse um fenómeno “patológico”. Ou seja, as migrações não são o problema que nos tem sido apresentado, porque sempre aconteceram. O que mudou foi a forma como a política e os políticos olham para as migrações e para os migrantes. “Tendemos a ver os migrantes como vítimas desesperadas, mas na maior parte dos casos são só pessoas à procura de um futuro melhor”, afirma. E lança o desafio: “Experimentem perguntar a um estudante internacional ou a um especialista numa determinada área se se é migrante”.
O livro que escreveu e que agora é editado em Portugal, pela Temas & Debates, assenta na desconstrução de um conjunto de mitos sobre as migrações e a utilização política de perceções não assentes em dados reais. Como por exemplo, a ideia veiculada de que nunca houve tantas pessoas a migrar como hoje e que o modo de vida ocidental está ameaçado por isso.
“Calma, migrar é só humano”, reforça Hein de Haas. E, já agora, a percentagem de pessoas que está em movimento de migração é exatamente a mesma que há 50 anos, ou seja, 3,5% da população mundial. “O que mudou foi a direção, porque antes eram sobretudo os europeus a migrar para outros locais do mundo”. Um movimento também conhecido por colonização e que após as várias descolonizações do século XX deu origem ao processo inverso, ou seja, pessoas oriundas de outros continentes a dirigirem-se à Europa e também aos Estados Unidos.
Os Estados Unidos são, no que respeita aos mitos das migrações, também um caso curioso. O país foi construído por sucessivas vagas de migrações e se hoje os mexicanos estão no epicentro do discurso político e são alvo de análises enviesadas pelo preconceito, há 100 anos o mesmo aconteceu... com os alemães. “Havia uma corrente que temia os migrantes alemães e que temia inclusive que substituíssem a língua inglesa”, relata o sociólogo. A teoria da substituição – ou a conspiração da substituição, como a ela se referiu Hein de Haas – foi em vários momentos aplicada, nos mesmos Estados Unidos, a alemães, italianos, católicos e judeus.
“A qualidade do debate público é muito baixa”, afirma o autor que responsabiliza também os académicos por não serem melhores a comunicar o conhecimento que têm. Mas Hein de Haas não alinha na ideia que bastam os factos para mudar opiniões. “Os factos só não chegam, é preciso mais do que isso. Serve de pouco dizer a alguém que a percentagem de migrantes é de 3,5%, a mesma de há 50 anos, se na sua comunidade em concreto são 40%”.
A realidade das migrações fica assim, na sua opinião, perdida entre duas narrativas: a das “vítimas”, defendida pela esquerda, e a da “conspiração”, defendida pela direita radical
A perceção distorcida e a realidade concreta de algumas comunidades, afirma, têm sido usadas de forma perigosa. “A extrema direita apresenta as migrações como invasões, porque é muito atrativo afirmar que são a causa de todos os problemas”. Esta é a primeira razão para a utilização política de um movimento que sempre aconteceu na história da humanidade, sublinha. A segunda é oportunista porque “permite que se apresentem como salvadores face ao inimigo”.
A realidade das migrações fica assim, na sua opinião, perdida entre duas narrativas: a das “vítimas”, defendida pela esquerda, e a da “conspiração”, defendida pela direita radical. “E a verdade é que nenhuma das duas responde à principal realidade que é a procura de trabalho”, afirma.
É por essa razão que a construção da “fortaleza Europa”, com política rígida de fronteiras, ou os muros para impedir a migração do México para os Estados Unidos são, nas palavras de Hein de Haas, “um erro”. “As pessoas vão arranjar maneira de atravessar fronteiras se souberem que há trabalho”.
Nos Estados Unidos, há 10 a 15 empresas a serem processadas por ano por empregarem trabalhadores ilegais. É quase igual à hipótese de ser atingido por um raio
E, já agora, este não é uma constatação que se refere apenas a quem procura trabalho, mas também a quem precisa de mão de obra para trabalhar, nomeadamente as empresas. Um dado apresentado pelo sociólogo ilustra bem essa realidade. “Nos Estados Unidos, há 10 a 15 empresas a serem processadas por ano por empregarem trabalhadores ilegais. É quase igual à hipótese de ser atingido por um raio, ou seja, é hipócrita, basta uma observação comum para saber que estão em todo o lado”.
Quem trabalha e quem precisa de trabalhadores podem ser parte da mesma equação, mas a forma como olham para a migração é diferente. Hein de Haas cita a uma frase usada nos anos 60 quando países europeus como França, Alemanha e Suíça, contratavam mão de obra de outros países para a sua modernização – entre os quais muitos portugueses: “Queremos trabalhadores e em vez disso temos pessoas”.
Outro dos mitos sobre a migração é que são os mais pobres que se tornam emigrantes. “É nos países que saem da pobreza que as pessoas ganham mobilidade e procuram uma vida melhor noutros locais do mundo”. Porquê? “Porque migrar é caro, exige alguns recursos e aspiração a melhorar”. Requisitos que quem está no limiar da sobrevivência não tem.
As migrações devido às alterações climáticas são por isso apontadas por Hein de Haas como outra narrativa “perigosa”. “As alterações climáticas são uma das maiores ameaças que enfrentamos mas não é intelectualmente desonesto falar de migrações massivas a partir de alguns locais que estão entre os mais afetados. Veja-se a seca: as maiores vítimas são de comunidades que nem aparecem nas estatísticas, porque não conseguem sair de onde estão”.
As políticas sobre as migrações e a forma como os vários países integram pessoas de outras partes do mundo, com culturas diferentes, religiões diferentes, mas uma igual aspiração a viver melhor e a dar um melhor futuro aos filhos e netos é, por isso, um tema fundamental.
Não há nada mais permanente do que um trabalhador temporário
“Há uma ideia de quem contrata mão de obra de outros países que é a de querer que façam o trabalho que há para fazer e depois voltem para onde vieram. Só que não há nada mais permanente do que um trabalhador temporário”, afirma. E é por isso que a integração bem sucedida nas sociedades passa pelo acesso da segunda geração à educação. “A tolerância não é uma boa palavra. A questão não é se os migrantes se integram, mas como se integram”.
“A vitória da extrema direita não quer dizer que a opinião pública seja contra os migrantes. A maior parte das pessoas percebe as razões e tem uma visão benevolente e por vezes os que dizem que não gostam de migrantes são os mesmos que dizem a seguir ‘mas o meu vizinho turco é uma ótima pessoa’. No final do dia, é um tema de trabalho, de desigualdades e de globalização, mas hipocrisia está a ficar muito grande”.
Num mundo global, estranho é que 96,5% das pessoas não se movam de onde estão
É por todas estas razões que Hein de Haas atribui a responsabilidade aos países moderados de “manter a sociedade unida”. “O meu livro não é extremista, até porque acho os extremos – de esquerda e de direita – assustadores. Os factos tiram-nos para o centro”. O que não significa que seja ou defenda a neutralidade e que por isso aponte o dedo aos políticos que “choram lágrimas de crocodilo” ao mesmo tempo que tomam decisões, como o fecho de fronteiras, que só estimula o tráfico e a segregação.
A terminar, deixou uma frase provocadora. “a melhor maneira de parar a migração é destruir a economia, porque enquanto houver trabalho as pessoas vão continuar a atravessar fronteiras”. A forma como o fazem, legal ou ilegal, integrados ou segregados, é resposta que as democracias devem procurar dar. Migrar é só humano, desde sempre, e nos dias de hoje, citando Hein de Haas, a pergunta até poderia ser outra: “num mundo global, estranho é que 96,5% das pessoas não se movam de onde estão”.
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