A informação foi dada ao 7MARGENS por responsáveis do Patriarcado, que dizem que o bispo de Lisboa confidenciou a algumas pessoas, padres e leigos, que, no seu encontro com o Papa no dia 5 de agosto, deixou aquela possibilidade nas mãos de Francisco.
Segundo as mesmas fontes, o cardeal Clemente sente-se ultrapassado pelos acontecimentos das últimas semanas, em que vieram a público vários casos relacionados com abusos sexuais do clero. Primeiro, foi o de um padre do Colégio S. Tomás, em Lisboa, suspeito de partilhar “obscenidades” com alunos, depois, o de um capelão hospitalar; e ainda um outro acusado de violação por uma mulher; finalmente, talvez o mais grave para o próprio, as acusações de que D. Manuel, então bispo auxiliar de Lisboa, terá pedido em 2003, a cinco chefes de escuteiros que se demitissem dos seus cargos, depois de eles terem acusado um padre da zona Oeste de ter abusado de menores, de acordo com uma notícia divulgada pela RTP.
Em resposta enviada à Televisão pública dias depois, o Patriarcado garantiu que D. Manuel só soube em 2013-14 dos abusos atribuídos a esse padre, durante a investigação prévia realizada.
Os responsáveis ouvidos dizem que, na conversa entre o Papa e o patriarca, terá sido falado que, concretizando-se a saída, ela deveria acontecer o mais rápido possível, de modo a permitir que o sucessor de Manuel Clemente pudesse inteirar-se da situação da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e acompanhar o resto da sua preparação e realização. Esse foi, aliás, um dos cenários que há dias o 7MARGENS apresentou como muito provável, na sequência do encontro [ver 7MARGENS].
Contudo, há também na diocese de Lisboa quem interprete as recentes movimentações do patriarca como passos no sentido de vincar que por sua vontade deixaria já o cargo, mas que foi por pressão do Papa que se manteve à frente da diocese até à conclusão da JMJ. “O patriarca tem muito a perspectiva da cruz e ele sairá se o Papa entender que é o melhor”, comenta um dos responsáveis ouvidos. Francisco não deixaria que a situação se arrastasse, tendo em conta a proximidade da JMJ, acrescenta outro.
Entretanto, como é normal em situações deste género, o núncio terá já enviado também informações sobre a situação presente em Lisboa. Recorde-se que o actual núncio, Ivo Scapolo, foi nomeado para Portugal no final de agosto de 2019, depois de ele próprio ter sido acusado de ter encoberto padres abusadores no Chile, sem nunca ter esclarecido o assunto publicamente.
“O risco de desfocar o assunto”
Neste momento, os responsáveis ouvidos pelo 7MARGENS dizem que o cardeal Clemente está animicamente desmoralizado por sentir que terá perdido o controlo do que se passa: “Os casos de abusos e de clericalismo estão a passar-lhe ao lado”, diz um dos padres. Aliás, o próprio secretariado permanente do Conselho Presbiteral (organismo que representa todos os mais de 300 padres que trabalham na diocese de Lisboa) notou, no comunicado divulgado há dias, que as notícias que têm saído, “em vez de possibilitar uma maior tomada de consciência acerca do problema dos abusos sexuais na Igreja e de conduzir a um debate sério sobre o clericalismo” transformaram “tudo em mais um ‘caso’”.
“Aquela nota nasceu de forma espontânea; pensámos que era importante manifestar publicamente que o patriarca estava a ser um pouco maltratado, no sentido de lhe serem pedidas responsabilidades, de certo modo anacrónicas, sobre a forma como agiu”, diz ao 7MARGENS o padre José Miguel Pereira, membro daquele secretariado permanente e, nessa qualidade, um dos cinco que assina o texto.
“Pareceu-nos que uma excessiva personalização na figura do patriarca corria o risco de desfocar o assunto”, acrescenta José Miguel Pereira, também reitor do Seminário dos Olivais. Além disso, defende, algumas posições vindas a público manifestavam o desejo de que o cardeal Clemente tivesse feito diligências “que não eram exigíveis que ele tivesse de fazer”.
A essa nota do Conselho Presbiteral seguiram-se outros comunicados, também manifestando a sua solidariedade com o patriarca: comissão permanente do Conselho Pastoral Diocesano (que reúne representantes do clero e dos leigos), comissão coordenadora do Diaconado Permanente e Associação dos Juristas Católicos.
Um leigo do Patriarcado, que tem estado envolvido no processo sinodal, considera que, “mesmo não sendo essa a intenção dos seus autores, os comunicados correm o risco de serem interpretados como uma reacção corporativa em vista a proteger os interesses de uma instituição que resiste à conversão”. Quem lê esta sucessão de documentos, acrescenta, “pode ficar com a impressão errónea de que a Igreja de Lisboa, no seu conjunto e na sua pluralidade, é mais expedita e está mais empenhada em procurar isentar a actuação supostamente hesitante do seu bispo, do que em apurar a verdade e salvaguardar o interesse das vítimas”.
Tendo isto em conta, diz o mesmo responsável, “a interrogação que se impõe fazer é se, a prazo e aos olhos dos nossos concidadãos, esta estratégia de defesa e abonação, promovida pelos órgãos diocesanos, não se revela contraproducente para o interesse da própria Igreja diocesana, vulnerabilizando-a, ficando sujeita à suspeição e ao descrédito, uma vez mutilada a sua credibilidade na gestão destes processos”.
Reacção corporativa?
O padre José Miguel Pereira admite que a publicação dos comunicados pode ser vista como uma reacção corporativa. “Mas não creio que fosse sobretudo isso. Várias organizações que queriam manifestar o seu apoio foram atrás” do primeiro texto. Mas em todos eles o reitor dos Olivais considera que houve o “cuidado de evitar a vitimização” e que os documentos “não fossem uma desresponsabilização” da hierarquia no sentido de esclarecer o que se passou. “Tratou-se mais de manifestar proximidade e comunhão com o patriarca, até por reconhecermos que ele está a conduzir de forma positiva” o combate aos abusos sexuais, acrescenta.
Também membro do Conselho Pastoral Diocesano, organismo que congrega representantes do clero e do laicado, José Miguel Pereira vê o caminho claro: “Temos de lidar com a verdade, ajudando a pensar em termos da antropologia cristã, ou seja, no cuidado para com as vítimas” em primeiro lugar. Mas também, acrescenta, para com os que transgrediram – mesmo se propor isso “pode dar origem a mal-entendidos, podendo parecer que se está a desculpar” o que fizeram. Não se trata disso, insiste, mas antes de perceber que são pessoas que devem igualmente ser acompanhadas.
Um outro padre do Patriarcado também alinha pela ideia do “acto solidário” que traduzem os comunicados, olhando para a vida toda do patriarca, “de empenhamento em resolver esta situação, e vendo o que se está agora a passar”. A eventual falta “não pode apagar todo o bem que se fez e os comunicados lembram a verdade de que Lisboa foi a primeira diocese [em Portugal] a ter uma comissão de protecção de menores e são uma forma de as pessoas dizerem que não vão debandar”, diz.
Com uma perspectiva semelhante, um terceiro padre com importantes responsabilidades no Patriarcado pergunta ainda porque é que a Conferência Episcopal não disse nada até agora. “Será à espera que a comunicação social se concentre em Lisboa?” Além disso, este responsável aceita que os comunicados revelam a vontade de não deixar Clemente “sozinho, por coisas que também dizem respeito a D. José Policarpo”, o antecessor. Ao fazerem isso, e apesar de falarem também na defesa da verdade e das vítimas, “correm o risco de aparecer como uma defesa da pessoa, tendo em conta uma estrutura eclesiástica que se articula em redor do bispo”.
Problema, em todo este processo, pode ter sido a má gestão da comunicação, concorda o padre José Miguel Pereira: “Na Igreja temos de melhorar a comunicação institucional, temos de aprender a comunicar melhor.”
Um padre que acompanha pessoas em dificuldade fala também no “desastre na gestão da informação”, mas coloca o acento na saída “em defesa do bispo diocesano sem que tudo seja conhecido” e que se parece com uma “simples lisonja”. Este padre diz que se sente desconfortável “com uma certa insistência na salvaguarda do prestígio da instituição, que neste momento surte o efeito contrário, mais do que na justiça e na empatia de pedir desculpa pelo que quer que tenha acontecido, colocar-se no lugar da vítima e dizer apenas aquilo que pode trazer paz às vítimas”.
Tudo o que for tentativa de salvar a face da instituição “soa a cobardia e arrogância”, acrescenta a mesma fonte. “Só ganhamos com a transparência, com a empatia, com o cuidado pelas vítimas e com a humildade de reconhecermos que não somos uma sociedade perfeita.” Neste caso, depois da conversa do patriarca com o Papa, “o melhor seria o silêncio”, defende.
Cenários para a eventual sucessão
Quanto ao futuro, regressemos aos cenários-tipo possíveis: considerando o Papa que é melhor que o patriarca saia, isso pode (deve) acontecer em breve. “Teria de ser um processo rápido, mais rápido que Angra, Bragança e Setúbal”, que estão há meses à espera de novos bispos, diz um outro clérigo. Se assim não fosse, o sucessor já não viria a tempo para as jornadas. O outro cenário é Manuel Clemente ficar até à JMJ: os casos revelados até agora não terão a gravidade do que aconteceu por exemplo em Lyon e noutros sítios, defende um dos responsáveis, e o Papa tem coisas mais importantes para resolver agora, como a hipotética viagem a Kiev e a ida ao Cazaquistão, acrescenta.
O padre José Miguel Pereira vê como possível qualquer um dos desfechos, em função da avaliação do Papa – e do próprio patriarca. Se a situação provocou um desgaste de Manuel Clemente, os dois cenários estão em cima da mesa, diz. “É viável que ele possa ficar até à Jornada Mundial da Juventude” (JMJ) – “veremos se ele tem ânimo para tal” – mas é também possível que a mediatização já havida, e a que possa ainda vir a acontecer em Janeiro, com o relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais sobre Crianças na Igreja Portuguesa, leve à saída antecipada.
Manuel Clemente completa 75 anos em julho do próximo ano, poucos dias antes da JMJ. Nessa data, em circunstâncias normais, ele apresentaria ao Papa o seu pedido de resignação. Mas tem sido prática de Francisco – a não ser que haja, por exemplo, razões de saúde – prolongar por mais um ano ou dois os mandatos de bispos, quando se trata de um cardeal. Naturalmente, tendo sido o patriarca a lançar a ideia de acolher a JMJ em Lisboa, ele quereria estar ao lado do Papa e acolhê-lo.
Quanto a sucessores, Manuel Clemente disse em julho, em entrevista à RR, que era altura de haver “um bispo a condizer com a juventude” e que “toda esta parafernália moderna de comunicação, já não é o que está” na sua cabeça.
Tal afirmação foi lida por muitas pessoas como uma indicação clara da sua preferência pelo nome de Américo Aguiar, um dos bispos auxiliares de Lisboa, que lidera a Fundação JMJ e o respectivo Comité Organizador Local, e preside ainda à administração da Rádio Renascença e à Comissão de Protecção de Menores do Patriarcado, entre vários outros cargos.
Américo Aguiar tem a seu favor a idade jovem e a capacidade de trabalho, nomeadamente na forma como consegue captar fundos para as realizações em que se envolve, dizem os padres ouvidos, mas tem contra si e a possibilidade de suceder a D. Manuel os reversos dos mesmos factores: os seus actuais 48 anos (49 em dezembro) fariam com que estivesse à frente da diocese durante quase três décadas, o que poderia ser pouco adequado, num tempo em que as mudanças são vertiginosas, avisam. Por outro lado, Américo Aguiar esteve até hoje sempre em lugares de administração e gestão e nunca teve prática pastoral em paróquias ou noutros serviços equivalentes; sendo sobretudo um homem de acção, tem um percurso completamente oposto ao dos últimos patriarcas, todos com um perfil vincadamente intelectual e de pensamento.
Apesar de este nome aparecer como “candidato”, o 7MARGENS sabe que na mesa do Papa estão outros três nomes de bispos portugueses como possíveis sucessores de Manuel Clemente. Mas é ainda prematuro avaliar qual pode ser o nome eleito por Francisco, antes de se saber qual será a sua decisão sobre o futuro imediato.
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