O número de sem-abrigo está a crescer em todos os países europeus. Todos à exceção da Finlândia. As conclusões estão num relatório da FEANTSA, o órgão europeu que junta as organizações que trabalham com os sem-abrigo. A versão deste ano do documento “revela indícios alarmantes” do crescente número de sem-abrigo na maioria dos países da União Europeia.
“Em quase todos os países europeus, aumentos no número de pessoas sem-abrigo são observados tanto no curto como no longo prazo. Isto, apesar de a recolha de dados ser várias vezes considerada parcial pelos profissionais do setor”, escrevem Joan Uribe, presidente da FEANTSA - Fédération Européenne d’Associations Nationales Travaillant avec les Sans-Abri -, e Christophe Robert, diretor da fundação francesa Abbé Pierre, que colaborou no relatório a que os autores chamam “apelo à ação”.
Apesar de os números recolhidos pelas duas organizações não poderem ser comparados, "este relatório é um aviso", salientam os autores. A questão está no facto de diferentes países e organizações adotarem definições distintas sobre o que é ser sem-abrigo. “É difícil fazer comparações na Europa devido à ausência de definições e metodologias comuns”, alerta o relatório.
No nosso país não há uma recolha regular oficial de dados sobre sem-abrigo. Ainda assim, um relatório de 2013 do Instituto de Segurança Social dizia existirem, no final desse ano, 4.420 pessoas sem-abrigo em Portugal. Em 2016 havia 4.006 pessoas inscritas como sem-abrigo na Segurança Social.
O número de sem-abrigo em França aumentou 50 por cento entre 2001 e 2012, segundo dados do instituto nacional de estatísticas francês. O órgão italiano de estatísticas dá conta de um aumento de 6 por cento no número de pessoas sem casa entre 2011 e 2014, embora o relatório da FEANTSA conteste estes valores por serem “enviesados”.
Na Dinamarca, entre 2009 e 2015 o número de sem-abrigo aumentou 23 por cento, segundo os dados do Centro Nacional para Investigação Social dinamarquês, citados no relatório. Com um aumento de 24 por cento entre 2013 e 2015 estão os Países Baixos, para citar apenas alguns exemplos.
Como conseguiu a Finlândia?
No relatório da FEANTSA e da fundação Abbé Pierre, são contabilizados 6.700 indivíduos e 325 famílias sem-abrigo na Finlândia.
Porém, a metodologia usada pelo Centro de Financiamento à Habitação e Desenvolvimento da Finlândia (ARA, na sigla original), que recolheu os dados usados no relatório da da FEANTSA e da fundação Abbé Pierre, usa um conceito alargado de sem-abrigo: pessoas que vivam em condições duras, em alojamento de emergência, em abrigos para sem-abrigo, em hospitais por serem sem-abrigo, em vias de ser libertadas da prisão, sem terem para onde ir, ou a viver com a família e amigos.
Estes números foram contabilizados em 2015. A mesma fonte registara, em 2013, 7.500 indivíduos sem-abrigo e 417 famílias nessa situação. São menos 800 pessoas e menos 92 famílias sem-abrigo no país nórdico em dois anos.
A forma como os finlandeses o conseguiram foi adotando uma abordagem diferente: em vez de procurar soluções para as pessoas sem casa, passou a evitar que cheguem sequer a existir pessoas sem ter para onde ir.
“Desde 2008 que a estratégia nacional para os sem-abrigo na Finlândia tem sido baseada no modelo Housing First [Casas Primeiro], como resultado da cooperação dedicada entre o estado, os municípios e as ONGs”, diz Juha Kaakinen, responsável da fundação finlandesa Y-Säätiö, em entrevista ao jornal britânico ‘The Guardian’.
Ao dar habitação permanente às pessoas assim que estas ficam sem-abrigo, as autoridades finlandesas, em vez de gerirem o problema, acabam de imediato com ele. “A ideia é oferecer habitação permanente e apoio às necessidades dos sem-abrigo, em vez de acomodação temporária em hostels ou abrigos de emergência”, explica Kaakinen. “As pessoas não têm de ganhar o direito a uma habitação provando a capacidade de gerir as suas vidas. Pelo contrário, é-lhes fornecido um lar estável e apoio desenhado individualmente”.
Para isso, têm sido feitos investimentos para dar habitações a preços acessíveis e os abrigos transformados em unidades de habitação. “Financiamento extra que o estado tem alocado para apartamentos e serviços tem sido um incentivo para que os municípios implementem o Housing First”. Os inquilinos recebem ajuda para pagar a renda e “de acordo com os seus rendimentos, podem contribuir para o custo. O resto é suportado pelos municípios”, explica Kaakinen acerca do financiamento do modelo.
“Condições de vida estáveis permitem o uso de serviços gerais, em vez de recorrer aos dispendiosos mecanismos de emergência. Isto vai poupar dinheiro no longo prazo”, defende o responsável da Y-Säätiö.
A Finlândia segue estratégias de longo prazo para reduzir os sem-abrigo há 20 anos e hoje os resultados começam a provar o seu valor. Apesar de haver outros estados-membros empenhados em seguir este caminho, a FEANTSA diz que faltam incentivos claros da União Europeia para que este modelo testado com sucesso na Finlândia seja aplicado com mais entusiasmo.
Como está Portugal?
Aqui no extremo ocidental do continente europeu, as medidas para lidar com os sem-abrigo passaram por um hiato nos últimos anos. Agora, porém, já há estratégias aprovadas.
A 8 de fevereiro deste ano, o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva, prometia a revisão do plano nacional para os sem-abrigo ainda durante esse mês: “o Governo está a trabalhar numa reedição da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas Sem-abrigo (ENIPSA), consubstanciada num plano de ação interministerial, que será apresentado até ao final de março”, disse em entrevista à agência Lusa.
A versão mais recente desta estratégia foi desenhada para o período de 2009 a 2015, tendo sido apresentada a 14 de março de 2009. Tinha como objetivo “a criação de condições para que ninguém tivesse de permanecer na rua por falta de alternativas, e, sobretudo, assegurar a existência de condições que garantissem a promoção da autonomia através de todos os recursos disponíveis de acordo com o diagnóstico e as necessidades individuais, com vista ao exercício pleno da cidadania”, diz a Segurança Social na apresentação do documento que avalia a aplicação deste plano.
Há oito anos, também com Vieira da Silva à frente do ministério, uma das medidas previstas era a criação de uma base de dados dos sem-abrigo em Portugal para permitir o conhecimento permanente do fenómeno, proporcionando a troca de informação a nível local, a planificação a nível regional e as decisões de política a nível central.
Esta identificação estava já prevista no âmbito do Plano Nacional de Inclusão (PNAI) 2008/2010, um documento que agrega as medidas dos vários ministérios para o combate à pobreza.
À data, a agência Lusa dizia que o governo de José Sócrates queria que 80 por cento das pessoas identificadas como sem-abrigo estivessem inseridas em planos individuais de reinserção social até ao final de 2010.
A Estratégia Nacional visava ainda assegurar condições para a promoção da autonomia através da mobilização de todos os recursos disponíveis de acordo com o diagnóstico e as necessidades individuais.
Em declarações à Lusa, o secretário de Estado da Segurança Social, Pedro Marques, explicou que o objetivo do plano, com um orçamento para o Instituto de Segurança Social de cerca de 65 milhões de euros, era apostar na autonomia das cerca de duas mil pessoas que se encontram nesta situação.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa era um dos parceiros nesta estratégia, assim como a Comunidade Vida e Paz e a Rede Europeia Anti-Pobreza.
Para a então responsável pela área da saúde e da ação social da Santa Casa da Misericórdia, Odete Farrajota, esta era uma medida de extrema importância que conta com o envolvimento e a participação das organizações que trabalham no terreno.
Já para Sandra Araújo, à altura coordenadora técnica da Rede Europeia Anti-Pobreza, esta área da exclusão social carece de muita informação, revelando algumas deficiências ao nível da resposta pelo que houve necessidade de aprofundar e conhecer a matéria ao nível nacional e local. Ainda assim, a estratégia, acrescentou, era um grande contributo para a intervenção social que deveria ser mais abrangente, integrando toda a problemática da pobreza em Portugal.
O Relatório de Avaliação da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas Sem Abrigo, divulgado no início deste ano, conclui que “uma cabal concretização desta estratégia ainda está por ser conseguida, uma vez que, desde 2013, os trabalhos no âmbito desta Estratégia foram interrompidos”, pode ler-se nas considerações finais do relatório.
O ENIPSA, porém, consideram os autores, “apresentou um papel importante de laboratório social, já que foi a primeira estratégia nacional integrada na questão sem-abrigo e ainda a primeira estratégia nos chamados países do ‘Sul Europa’”.
Os autores do relatório, entregue na Assembleia da República, ressalvam ainda as várias propostas elaboradas para a concretização dos objetivos da ENIPSA que carecem de validação para serem desenvolvidos.
Por esse motivo, pode ler-se no documento consultado pelo SAPO24, “não se devem realizar alterações de fundo ao plano estratégico definido, mas sim potenciar o trabalho realizado por forma a facilitar a sua implementação”.
É, então, proposta uma comissão interministerial que “assegure a definição, articulação e execução das políticas públicas”, e a reativação do Grupo de Implementação, Monitorização e Avaliação da Estratégia (GIMAE), composto por várias entidades e coordenado pelo ISS. Neste órgão devem estar presentes entidades públicas e privadas, bem como a sociedade civil, nomeadamente pessoas sem-abrigo.
Segundo dados divulgados no documento, em 2016, encontravam-se registados pela Segurança Social 4.003 beneficiários de situações sem-abrigo, a maioria (1.620) no Porto, 889 em Lisboa, 355 em Faro, 256 em Setúbal, 182 em Coimbra, 145 em Braga, 107 em Leria e 104 em Aveiro.
Estes dados, todavia, não refletem os recolhidos pelo Núcleo de Planeamento e Implementação Sem-Abrigo (NPISA) e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, responsável pela ação social no concelho de Lisboa.
Para caracterizar esta população, o ISS realizou um inquérito em 2014, que não foi respondido atempadamente e de forma completa pelos concelhos onde esta problemática tem maior expressão (Lisboa e Porto). No inquérito foram identificadas 904 pessoas em situação de sem-abrigo em 11 concelhos dos 14 onde funciona o NPISA.
Segundo o Questionário de Atividades Local, 41,8 por cento das pessoas identificadas como estando em situação de “sem teto” ou “sem casa” tinham, em 2014, um Plano Individual de Inserção e 45,3 por cento um gestor de caso atribuído.
O relatório refere que “a existência de pessoas em situação de sem-abrigo, vivendo na rua ou em alojamentos temporários, configura uma realidade existente na nossa sociedade que ainda é insuficientemente conhecida e que tem vindo a sofrer alterações devido à evolução social e económica, designadamente aos efeitos da recente crise económica e financeira”.
No final deste ano, por fim, o Governo aprovou um plano de ação para a integração de pessoas sem-abrigo, que engloba cerca uma centena de medidas e representa uma dotação orçamental superior a 60 milhões de euros. Este plano foi apresentado no final do Conselho de Ministros pelo titular da pasta do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva, a 30 de novembro deste ano.
Perante os jornalistas, Vieira da Silva referiu que a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação Sem-Abrigo deu origem a planos em cada dois anos, tendo o atual como horizonte 2018.
"O plano para 2018 integra os três eixos principais da estratégia: o conhecimento da situação, o reforço da intervenção promotora da integração das pessoas em situação sem-abrigo e a linha de coordenação e avaliação dessa mesma estratégia. Foi desenvolvido um conjunto de objetivos, que desagregam em 76 ações e que serão coordenadas por uma comissão interministerial", apontou.
De acordo com o ministro da Solidariedade, o orçamento "mínimo estimado é de 60 milhões de euros, principalmente para 2018".
"Desta forma estamos em condições de continuar a reforçar o apoio de todos aqueles que todos os dias trabalham para reduzir substancialmente a incidência deste fenómeno e para garantir a promoção da inclusão e melhoria das condições de vida dos sem-abrigo em Portugal", acrescentou.
Dois dias antes, a Comissão Interministerial aprovava o Plano de Ação 2017-2018 da estratégia para as pessoas sem abrigo.
"O plano é composto por cem atividades e todas as atividades têm metas definidas. Fizemos também, pela primeira vez, uma quantificação daquilo que são as verbas que em cada ministério estão afetadas medidas relacionadas com pessoas em situação de sem abrigo", adiantou a secretária de Estado da Segurança Social.
Este procedimento visa fazer um levantamento dos meios financeiros existentes e fazer "uma sistematização deste esforço" por forma a melhorar a capacidade resposta a este problema social.
Cláudia Joaquim indicou que os últimos estudos apontavam para a existência de cerca de 4.000 pessoas em situação de sem abrigo em Portugal, mas observou que este número é "volátil" e que o fenómeno dos sem abrigo, embora mais visível nas cidades, não é um problema unicamente urbano ou das grandes cidades.
Sinalizar e acompanhar as pessoas sem abrigo, através dos "gestores de casa", em articulação com as diversas entidades é uma das tarefas fundamentais apontadas pela responsável governamental para a implementação deste plano.
Habitação permanente, alargamento da intervenção na saúde e integração profissional são algumas das cem medidas do plano de ação. Como principais medidas do plano, algumas já em desenvolvimento, destacam-se o acolhimento residencial, alargamento e integração da intervenção na área da saúde e a promoção da formação e da integração profissional das pessoas sem-abrigo.
Em termos de habitação, o plano destaca a “priorização do alojamento permanente em habitações individualizadas”, através da criação de uma bolsa de casas.
O “alargamento e integração da intervenção na área da saúde”, desde cuidados primários, hospitalares, continuados, saúde pública, saúde mental, comportamentos aditivos e dependências, também faz parte da estratégia.
Está também previsto o encaminhamento e integração de pessoas sem-abrigo em programas e medidas ativas de emprego e formação profissional.
O modelo de intervenção da estratégia, publicada em Diário da República em julho, assenta “numa premissa de rentabilização de recursos humanos e financeiros, bem como da necessidade de evitar a duplicação de respostas e qualificar a intervenção ao nível da prevenção das situações de sem-abrigo e do acompanhamento junto dos utentes.
Como aspetos inovadores, a estratégia apresenta Planos de Ação bienais com avaliação anual e a existência da Comissão Interministerial que assegura a execução da estratégia.
“Um buraco” entre planos
Marcelo Rebelo de Sousa, a 16 de fevereiro deste ano, alertava para a existência de “um buraco” na estratégia nacional de apoio aos sem-abrigo. “O último plano terminou no final de 2015, em 2016 não houve plano, mas sim um prolongamento parcial do plano e, este ano, o governo ficou de apresentar um novo plano nacional, estando algumas instituições à espera porque é uma necessidade”, dizia o presidente da República aos jornalistas no Porto.
“Tem de haver um plano geral de apoio a estas instituições, senão não sabem como sobreviver”, alertava o presidente. “É importante chamar a atenção para este problema, há instituições que vivem situações muito complicadas”. E acrescentava: ajudar estas pessoas é uma “missão de peso”.
Por causa desse buraco, desse desfasamento temporal entre os planos e os relatórios e as estratégias e aquela que é a realidade das pessoas sem-abrigo, a Comunidade Vida e Paz lançou, no dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17 de janeiro), no início deste ano, uma petição que apelava ao governo de António Costa a promoção de uma “estratégia nacional de intervenção pela dignidade humana das pessoas em situação de sem-abrigo”, até 2020.
A petição foi assinada por mais de 4.000 pessoas e entregue, em fevereiro passado, na Presidência da República. Os autores do documento apelavam “à utilização de habitações, no âmbito de uma política social de habitação, que permita o alojamento temporário e evite logo que possível a vida na rua”.
Para além disso, o apelo ia também para a adoção de “um modelo de governação integrada (Segurança Social, Justiça, Saúde, Igualdade, Economia Social e Solidária) na gestão deste problema social tão complexo” e ao desenvolvimento de um “sistema de informação que possibilite um acompanhamento próximo e integrado das situações” e legislar a possibilidade de uma morada postal para estas situações.
Já depois da aprovação do plano pelo Governo, o presidente da República disse ver no plano do Governo para os sem-abrigo "um símbolo de um novo arranque". Marcelo fez dos sem-abrigo uma das principais causas da sua presidência, participando em eventos e chamando a atenção para a problemática.
No entanto, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, o Plano de Ação 2017-2018 aprovado pelo Governo no final de novembro inclui "um número pequeno de casas por ano, são 20 casas disponibilizadas por ano, é pouco para tanta gente".
"Mas vamos ver se se alarga, por acordo com as câmaras, ao longo dos próximos anos. Vamos ver", declarou aos jornalistas, referindo que "a própria secretária de Estado disse que é preciso ainda ampliar o que lá vem".
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