Já muito se disse e escreveu acerca de David Byrne. Há um epíteto que, ao longo de uma carreira com mais de quarenta anos, lhe tem sido colado de forma consistente: o de que o músico nascido na Escócia e radicado nos Estados Unidos é um homem renascentista, alguém com interesse e conhecimento nas mais diversas áreas, um polímata no sentido mais lato da palavra. Mesmo que por vezes o próprio Byrne tenha rejeitado essa ideia, a verdade é que, como a quase nenhum outro homem do rock, ela pode ser-lhe aplicada, tendo em conta o seu trabalho no cinema, no teatro, na dança ou no desenho. É como se Byrne nunca tivesse querido ficar quieto, limitar-se a desfrutar da vida e de royalties passados. Há sempre algo mais para aprender, qualquer coisa a concretizar.
Claro que a grande maioria dos seus fãs só o é por causa da sua música, seja aquela que fez com os Talking Heads ao longo de 16 anos (entre 1975 e 1991), seja a que fez a solo ou em colaboração com outros músicos. E o seu currículo neste campo é invejável: Brian Eno, St. Vincent, Richard Thompson, Thievery Corporation ou Fatboy Slim são apenas alguns dos nomes com quem já trabalhou. Isto, para não falar de tantos outros que deu a conhecer ao mundo através da editora que fundou no final dos anos 80, a Luaka Bop, como o grande xamã da tropicália, Tom Zé, ou a cantora peruana Susana Baca.
Hoje em dia, David Byrne já não trabalha tanto com a Luaka Bop quanto gostaria, não conseguindo até precisar qual dos muitos lançamentos da editora é o melhor. Talvez porque todos eles tenham sido bons, questionámos. “Nem todos, mas houve alguns que me deixaram bastante contente”, afirmou. “Há coisas que me surpreenderam pela forma como o público reagiu a elas”. E há outras que nem tanto, como Shoukichi Kina, um artista de Okinawa (Japão), e Viyaja Anand, um compositor de bandas-sonoras oriundo de Chennai, na Índia. “Ninguém gostou desses!”, contou, entre risos. “Eu achei-os maravilhosos. A música era maravilhosa”...
O riso, o dele e o nosso, esteve sempre presente na curta conversa que o SAPO24 teve com David Byrne, poucas horas antes de o músico pisar o palco montado no Hipódromo Manuel Possolo, em Cascais, para o primeiro concerto da edição deste ano do festival EDP Cool Jazz. Não que a expectativa fosse a de que David Byrne "se revelasse", dito de forma simples, “um velho rezingão”. Mas é impossível não pensar que esta simpatia não seja fruto da ideia de base presente em “American Utopia”, o seu novo álbum, e o primeiro a solo desde 2004.
“Para mim, é uma forma de não enlouquecer, de não perder o juízo, de não me sentir completamente furioso como algumas pessoas se têm sentido”
Face ao que se passa na América e no mundo em geral, “American Utopia” poderá ser encarado como um título algo irónico, onde a palavra “utopia” mais não é do que um sonho bom nocauteado pela realidade. Mas não, é mesmo um álbum positivo e que deve ser visto à luz de “Reasons to Be Cheerful”, um projeto multimédia que procura dar à população motivos para se sentirem felizes e otimistas em relação ao presente e ao futuro, apesar da realidade. Pode ser o positivismo, como a canção, uma arma?
“Para mim, é uma forma de não enlouquecer, de não perder o juízo, de não me sentir completamente furioso como algumas pessoas se têm sentido”, explicou. Para este álbum e conceito, o músico pensou “naquilo que está a funcionar, nas mudanças positivas que têm acontecido”. Veio-nos à cabeça uma velha máxima de algumas correntes anarquistas: pensa globalmente, age localmente, e Byrne anuiu. “Comecei a fazer algumas mudanças pessoais e a partilhá-las com outras pessoas. Para algumas dessas mudanças é preciso fazer pesquisas, comprovar factos, garantir que aquilo que é explanado é verdade. Às vezes não são mudanças tão boas quanto as que se espera”...
“Sinto-me incentivado pelo que tenho lido sobre Portugal."
Mas há um país que tem deixado David Byrne entusiasmado em relação ao futuro: Portugal. “Sinto-me incentivado pelo que tenho lido sobre Portugal. O país tem conseguido reduzir as suas dívidas e a economia tem crescido, sem impor medidas de austeridade, o que outros países sentem ser uma obrigação”, disse. “Portugal não fez cortes na educação, na saúde ou noutros serviços, o que para mim é um exemplo a mostrar a outros países – que olhem para o que este consegue fazer”.
“American Utopia” não escapou, no entanto, a uma curta polémica, prontamente resolvida com um pedido de desculpas do próprio Byrne. É que o disco não conta com a colaboração de qualquer artista feminina, numa era em que o feminismo e as questões de género são tópicos do dia-a-dia, e tendo em conta que o músico cantou, em 1980, que o mundo se move nas ancas de uma mulher. “Não foi minha intenção [não colaborar com mulheres]”, garantiu, “e acho que é uma vergonha. Mas devo dizer, em minha defesa, que em quase todas as outras áreas em que trabalho há muita diversidade. Seja no que diz respeito a género, a raça, a orientações sexuais. Trabalho com todo o tipo de pessoas”.
“[A diversidade] não é só algo em que se aposta porque as pessoas irão ralhar contigo”
Até porque discutir este tipo de tópicos não é, nem pode ser, uma moda passageira. A diversidade, explicou, “não é só algo em que se aposta porque as pessoas irão ralhar contigo”, como sucedeu nas redes sociais acerca de “American Utopia”. Tem, isso sim, “um efeito positivo”. “Começas a encarar o mundo de uma forma diferente quando trabalhas com todos os tipos de pessoas”, rematou.
Em palco, David Byrne conta com a colaboração de onze outros músicos, entre os quais mulheres, tal como tem sucedido de há alguns anos para cá. No livro que editou em 2012, “How Music Works”, Byrne revelou no prefácio que “muitas das [suas] ideias acerca daquilo que significa ir para um palco mudaram completamente ao longo dos anos”. Ainda hoje essa filosofia é seguida, mas “não de uma forma tão radical quanto anteriormente”. Os seus espetáculos passam, agora, por “um processo de refinação: pegamos numa ideia simples e cumprimo-la, em palco”.
"Mexemo-nos bastante, em palco, mas não somos livres"
O que, no fim de contas, pode não ser assim tão simples. Essas ideias, explicou, são cumpridas “de forma muito rigorosa”. Por exemplo: “mexemo-nos bastante, em palco, mas não somos livres; pensamos, 'aqui tenho de fazer isto, ali tenho de fazer isto, acolá tenho de fazer isto'... A algumas pessoas poderá soar que estou a retirar alguma essência à música. Eu julgo que não. Se for bem feito, permite que muita da emoção” inerente à música “sobressaia mais”, o que não aconteceria se não existisse um plano bem traçado. David Byrne compara-o a um filme em que os atores decidissem não seguir o guião: “seria uma trapalhada!”, graceja.
Um passado sempre presente
Em Cascais, pudemos observar in loco que o espetáculo ao vivo de Byrne é exatamente como no-lo descreveu, com os músicos a percorrerem o palco segurando nos seus instrumentos, ou pendurando-os no corpo, nunca deixando de os tocar, numa performance visual que teve tanto de dança como de teatro. E pudemos escutar, também, muitas das canções que fizeram as delícias dos fãs dos Talking Heads quando a banda ainda se encontrava no ativo, algo que tem acontecido em larga escala ao longo desta sua nova digressão. Isto, apesar de David Byrne ter rejeitado, por diversas vezes, uma reunião da banda. Será que o passado o atormenta?
“Sim, sim!... Tenho a noção de que o público adora ouvir alguns desses temas, por isso interpretamo-los”, afirmou. Mas, atenção: as versões ao vivo destes temas não são uma cópia fiel daquilo que se escuta em discos como “Remain In Light” (1980) ou “Speaking In Tongues” (1983). “Adaptamo-los um pouco, para que façam sentido dentro deste espetáculo. Quase que não se percebem as diferenças que existem entre as canções novas e as antigas, o que as mantém frescas”, disse.
O seu lado mais ativista sobressaiu, durante o concerto no EDP Cool Jazz, no encore, quando toda a banda interpretou uma versão de 'Hell You Talmbout', canção de Janelle Monáe criada a partir dos nomes de vários afro-americanos mortos pelas autoridades dos Estados Unidos, nos últimos anos. Mas, antes, a luta de David Byrne era também contra a SIDA, tendo participado numa compilação da Red Hot Organization (“Onda Sonora: Red Hot + Lisbon”), em 1998, que procurou sensibilizar a população dos países de língua oficial portuguesa para a doença. Vinte anos depois de ter interpretado 'Dreamworld: Marco de Canaveses' com Caetano Veloso, foi anunciado pelos mais diversos meios de comunicação de todo o mundo que uma nova vacina contra o HIV mostrou resultados “promissores”, após ser testada em humanos.
A erradicação da doença poderá estar, por isso, à espreita, ainda que o músico se mostre algo cauteloso: “estou um bocadinho otimista”, disse, juntando polegar e indicador para dar ênfase. “O facto de se estar cada vez mais próximo de uma vacina é incrível. Com estes desenvolvimentos, talvez [a doença] possa ser eliminada”. Um cenário que seria impensável há vinte ou trinta anos atrás. “Quando eu era mais novo, a SIDA era uma sentença de morte; sabias que alguém com essa doença iria morrer num prazo de cinco anos. Agora já não. Podes viver durante muitos anos, até mesmo décadas, sendo seropositivo. O que é fantástico: podes ter uma vida. É uma doença que pode ser controlada”.
Dizem-nos, pouco antes da entrevista, que David Byrne se deslocou do hotel onde pernoitou em Portugal até ao Hipódromo de bicicleta, ele que também é conhecido por a promover como um meio ideal de locomoção. Neste caso, não será tanto ativista como conselheiro; afinal, não se pode obrigar a população, especialmente aquela residente nas grandes metrópoles, a adotar a bicicleta. “Ela é que se tem de sentir bem a fazê-lo”, contou. O uso da mesma não pode surgir por imposição, mas dando às pessoas “uma oportunidade” para descobrir que esta é uma forma “em alguns casos mais prática e económica, e boa para o planeta”, de circular. Até porque ninguém gosta de ficar horas “à procura de um lugar para estacionar”, brinca.
"E tu pensas, 'meu Deus', aquela mulher [Nancy Cartwright] é o Bart Simpson!"
David Byrne parece, realmente, tocar em tudo. Até no maravilhoso mundo dos desenhos animados. Em 2003, participou num célebre episódio de “Os Simpsons”, no qual ajuda Homer num dos passatempos favoritos deste – atazanar o seu vizinho ultra-religioso, Ned Flanders. O sketch termina com o músico a ser raptado por Moe, que lhe pergunta se alguma vez viu “Misery – O Capítulo Final”, filme de 1990. A resposta, no episódio, foi negativa... E ainda hoje o é. “Nunca vi esse filme! Sei do que trata, e tenho demasiado receio de o fazer...”, riu.
Sobre a sua participação na série, da qual se assume fã, Byrne não deixou de salientar o quão positiva foi a experiência. “Foi muito entusiasmante”, porque “entendes a forma como eles trabalham. Não olham para os desenhos, é como uma radionovela. Estão todos numa sala, a ler o guião, e os atores que fazem as vozes [das personagens] fazem-nas também ali... E tu pensas, 'meu Deus', aquela mulher [Nancy Cartwright] é o Bart Simpson!”, contou. Um pouco à semelhança daquilo que terá o público de Cascais quando viu o músico em palco: “meu Deus, aquele é o David Byrne!”. E esteve à nossa frente.
Recorde o concerto no EDP Cool Jazz em imagens
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