O cenário epidemiológico em Portugal apresenta diferentes variantes em circulação, sendo que as principais preocupações giram em torno das variantes associadas ao Reino Unido, África do Sul e Brasil, e, por isso mesmo, estas são consideradas Variants of Concern (variantes de preocupação ou VOC, na sigla em inglês). Em março, a variante britânica representava cerca de 83% dos casos do coronavírus em Portugal, podendo já ter ultrapassado esses valores.

“Temos de nos conformar com o domínio na nossa situação epidemiológica de uma variante mais transmissível”, observou o investigador João Paulo Gomes, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), durante a sua intervenção na última reunião do Infarmed. Sobre a variante inicialmente detectada na África do Sul explicou que gera “alguma preocupação” e que há “um aumento de casos com algum significado em Portugal", tendo sido confirmados até ao momento 53 casos.

O investigador adiantou também que a variante associada à cidade brasileira de Manaus correspondeu até ao momento a 29 casos confirmados em solo nacional, o que se traduz em 0,4% dos casos em março, algo que descreveu como uma “ótima notícia”, pelos “níveis residuais” de disseminação, o que considerou surpreendente devido ao historial de voos entre Portugal e o Brasil.

Até ao momento, o número de casos associados às variantes detetadas no Brasil é "residual", no entanto, continuam a ser identificadas possíveis novas estirpes. A mais recente descoberta deu-se na semana passada, na cidade brasileira de Belo Horizonte, quando cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) detetaram a combinação de 18 mutações nunca anteriormente descritas.

Ao Expresso, semanas antes, João Paulo Gomes, disse que “o Brasil é uma incubadora de variantes”.

Mas o que promove o desenvolvimento de variantes?

“O SARS-CoV-2 [vírus que provoca a covid-19] está a sofrer mutações em todo o lado, mas aquilo que nós sabemos é que quanto mais descontrolada está a infeção, quanto mais livremente circula o vírus e quanto mais imunidade existir na população, mais tendência o vírus tem para se tentar reinventar para conseguir continuar a infetar as nossas células”, explica ao SAPO24 Maria João Amorim, virologista e líder do grupo de investigação em Biologia Celular da Infeção Viral do Instituto Gulbenkian de Ciência.

Tendo em conta aquilo que impulsiona o aparecimento de novas variantes, o Brasil, tal como qualquer outro local onde a pandemia se encontre “descontrolada”, é terreno fértil para que tal aconteça. O país ultrapassou as 365 mil mortes (365.444) por covid-19 e os 13,7 milhões de casos de infeção (13.746.681), após ter somado 3.560 óbitos e 73.174 infeções nas últimas 24 horas.

De acordo com o último boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde brasileiro, a taxa de incidência total da covid-19, que atravessa o momento mais crítico da pandemia, ascendeu a 173,9 mortes e 6.541,5 casos por 100 mil habitantes.

Manaus, que foi afetado no ano passado com um surto de covid-19, voltou este ano a mostrar “elevados parâmetros de infeção”. “Isto sugere que há um mecanismo pelo qual o vírus consegue reinfetar, ou, se não reinfetar, pelo menos consegue continuar a circular na população", diz Maria João Amorim. "E quanto mais deixarmos o vírus a circular sem controlo, maior será o número de mutações que o vírus vai adquirindo”, explica a virologista. Uma nova variante do vírus auxiliada por mutações conhecidas como Nelly e Erik pode ter um papel determinante.

De acordo com a virologista, há, pelo menos, cinco benefícios/alterações que se podem verificar nas variantes graças a estas mutações: aumentarem a severidade da doença covid-19, escaparem à imunidade gerada, serem transmitidas mais rapidamente, conseguirem escapar à deteção por testes – caso escapem à deteção por testes, as pessoas continuam a circular se estiverem assintomáticas – e alterar a capacidade de um determinado vírus de infetar outras espécies [animais].

Entre estas mutações podem surgir alterações na proteína spike que, “caso sejam muito grandes, podem também escapar à imunidade produzida pela vacinação, que é aquilo que observamos na gripe e é por isso temos de renovar constantemente a vacina [da gripe]”, explica Maria João Amorim.

Segundo a investigadora, as “mutações que ajudem o vírus a replicar melhor teoricamente constituiriam uma vantagem para o vírus, e esta vantagem mais tarde pode ser substituída por outra, como a de o vírus conseguir fugir um pouco mais ao sistema imunitário ou à nossa imunidade inata, sendo que esse conceito é difícil de extrapolar. O que vai garantir que um vírus é propagado ou não é mesmo o número de infeções que existem entre pessoas”.

O que confere a maior capacidade de transmissão? 

Os anticorpos que o corpo produz contra o SARS-CoV-2 dirigem-se à proteína spike [aquela coroa que muitas vezes vemos representada nas imagens do coronavírus], uma região do vírus onde acontecem duas coisas: é aqui que o vírus se liga às células do corpo humano para as infetar e é também aqui que os anticorpos se ligam ao vírus para o neutralizar.

“Há um jogo entre os aminoácidos que estão nessa posição, uns são muito importantes para entrar e se ligar ao recetor e outros são muito importantes para se ligar a anticorpos”, detalha a investigadora.

“Assim, para maximizar o efeito de escapar à imunidade, ao vírus interessa acumular dois efeitos: um é conseguir escapar e outro é melhorar a entrada nas células. A mutação 484 [E484K, também chamada de Erik] consegue escapar à imunidade e a 501 [N501Y, à qual chamam Nelly] consegue melhorar a entrada nas células. Infelizmente, quer a estirpe do Brasil (P1) quer a de África do Sul têm as duas mutações”.

É esta dupla capacidade “melhorada” que torna as variantes mais perigosas.

Questionada sobre se o Brasil é um risco de saúde publica para outros países, Maria João Amorim explica que se trata de uma “questão complexa”, porque “tem a ver com o índice de vacinação que existe nos outros países e se as vacinas bloqueiam eficientemente a doença provocada pelas variantes que circulam naquele território”.

"Sabemos que uma das mutações (a 484) isolada, ou até quando em combinação com outras (como a 501), consegue reduzir a capacidade neutralizante de anticorpos produzidos em resultado da infeção natural. Porém, esse efeito não é tão observado após a vacinação, o que pode significar que o vírus possa reinfetar um mesmo indivíduo, apesar deste poder estar protegido de doença severa. Isto porque o efeito que tem na imunidade é difícil de compreender, uma vez que esta vai bem mais além da capacidade de impedir a entrada do vírus. Por isso, o impacto que essas mutações terão no quadro ou a eficiência da estratégia da vacinação é difícil de extrapolar. O ideal é conseguirmos vacinar o maior número de pessoas o mais depressa possível para reduzir o aparecimento de variantes”, assegura Maria João Amorim.

Para a virologista, no que diz respeito aos anticorpos e relembrando que a imunidade vai além destes, a infeção natural tem “um determinado valor, mas a [quantidade de anticorpos neutralizantes gerada pela] vacinação é maior”. Isto porque numa situação de infeção natural alguns indivíduos podem não produzir anticorpos suficientes para bloquear a reinfeção.

Luís Graça, imunologista, investigador do Instituto de Medicina Molecular (iMM) e membro da Comissão Técnica de Vacinação, explica que existe “uma preocupação de que estas variantes possam ser mais infeciosas e de que possam escapar, pelo menos parcialmente, à imunidade que foi desenvolvida pelas primeiras infeções”, mas, refere, “não existe evidência de que isso realmente aconteça”.

No entanto, salienta, “temos de olhar para o Brasil com alguma preocupação, no sentido em que a emergência de novas variantes pode ser um problema e a probabilidade de surgirem estas novas variantes é proporcional ao número de infeções que acontecem. Estando o Brasil numa situação em que há um número muito elevado de infeções, naturalmente que é maior a preocupação de surgirem algumas variantes de preocupação nesse país”.

O que podemos fazer para travar a situação?

“O ideal é aceitarmos ser vacinados e até termos a maioria da população vacinada é manter as normas, como usar máscaras e ter um comportamento em que evitamos estar com muita gente e estar em ambientes fechados e pouco ventilados”, aconselha a virologista.

“Vacinar toda a gente diminui a capacidade de o vírus estar a circular, porque mesmo que as pessoas estejam em contacto com o vírus conseguem resolver a infeção em muito menos tempo. Portanto, a vacinação vai sempre ter um efeito benéfico nas variantes que estão a aparecer”, reitera, recordando que a imunidade é um tema complexo.

“Estamos a testar no laboratório, por exemplo, a [vacina] da Pfizer, mesmo relativamente às variantes de maior preocupação, de Manaus e da África do Sul, que têm a mutação 484, e observamos uma grande proteção na mesma”, assegura.

Numa altura em que a variante brasileira se continua a propagar rapidamente pelo mundo, nomeadamente no continente americano e na União Europeia, a Comissão Europeia aconselhou "fortemente" os Estados-membros a manterem as limitações às viagens não essenciais do Brasil e apelou a "rastreios mais rigorosos" aos viajantes.

O porta-voz da Comissão Europeia para os Assuntos Interiores reforçou que no que toca à gestão das fronteiras externas, “a Comissão tem levado esta questão muito a sério, desde o início do ano e, tendo em conta o aconselhamento científico, [...], tendo proposto medidas mais restritivas para viagens não essenciais para a UE". E mesmo quando se tratam de viagens essenciais, "os viajantes devem ser submetidos a rastreios mais rigorosos quando regressam", como "quarentena obrigatória e testagem", assinalou Adalbert Jahnz.

França suspendeu os voos entre França e o Brasil até nova ordem devido a uma crescente preocupação com a variante do SARS-CoV-2 detetada no país sul-americano.

“Sabemos que a situação se está a agravar e decidimos, portanto, suspender até nova ordem os voos entre o Brasil e a França”, anunciou o primeiro-ministro francês, Jean Castex. A decisão surge depois de vários especialistas criticarem a falta de controlo sanitário das pessoas que chegam a França nos voos oriundos do Brasil e por se mostrarem preocupados com a progressão da pandemia no país, bem como com a possível disseminação em França da variante inicialmente detetada no Brasil.

Questionada sobre a possibilidade de um aumento do risco de disseminação quando retomarmos a circulação entre vários países, Maria João Amorim refere que “estas variantes que aumentam a capacidade de transmissão têm uma vantagem", logo o risco existe.

Luís Graça reforça a ideia que tem sido referida por muitos investigadores, que temos de olhar para esta pandemia do ponto de vista global. “Aquilo que deve ser um objetivo último não é só a proteção do nosso país, mas também a proteção do maior número de pessoas possível no mundo inteiro, para que haja uma menor circulação do vírus. Quanto menor for a circulação do vírus em todos os países, menos será a probabilidade de virem a surgir novas variantes”, conclui.

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