"Eu sei o que é morrer por mordedura de cobra", contou Friede à AFP numa videochamada a partir da sua casa na pequena cidade de Two Rivers, no Wisconsin, EUA.        Esta experiência poderia afastar qualquer pessoa das cobras para sempre, mas Friede apenas prometeu ter mais cuidado da próxima vez.

Entre 2000 e 2018, deixou-se morder por cobras mais de 200 vezes. Também se injetou com veneno de cobra mais de 650 vezes.

Friede suportou esta dor porque queria alcançar imunidade total ao veneno — uma prática chamada mitridatismo, que não deve ser tentada em casa.

Ao fim de alguns anos, Friede começou a acreditar que o seu corpo poderia servir de base para um novo tipo de antiveneno. Antigo mecânico de camiões, sem formação universitária, teve durante muito tempo dificuldade em ser levado a sério pela comunidade científica.

Mas no mês passado, um estudo publicado na prestigiada revista Cell mostrou que os anticorpos no sangue de Friede oferecem proteção contra vários tipos de veneno de cobra.

Os investigadores esperam agora que a hipersensibilidade imunitária de Friede possa levar ao desenvolvimento de um antiveneno universal.

Este seria um avanço significativo, já que atualmente a maioria dos antivenenos só funciona contra uma ou poucas das cerca de 600 espécies venenosas conhecidas.

Até 138 mil pessoas morrem todos os anos devido a mordeduras de cobra, e cerca de 400 mil ficam com amputações ou outras deficiências, segundo a Organização Mundial da Saúde. Estes números são provavelmente subestimados, pois a maioria das vítimas vive em zonas rurais e pobres.

“Dói sempre”

A primeira mordedura de Friede foi de uma cobra-de-jardim inofensiva, quando tinha apenas cinco anos.

"Tive medo, chorei, fugi", recorda Friede, hoje com 57 anos.

Mais tarde, começou a levar cobras para casa escondidas em frascos de pickles. A mãe procurou ajuda psicológica para o acompanhar, mas o fascínio pelas cobras continuou.

A situação agravou-se quando Friede participou numa aula onde aprendeu a “ordenhar” cobras para extrair veneno.

A forma de produzir antiveneno pouco mudou em 125 anos: injeta-se pequenas doses de veneno em cavalos, cujos anticorpos são depois extraídos e transformados em antiveneno. No entanto, este método só funciona para espécies específicas e pode causar efeitos secundários graves, como choque anafilático, por conter anticorpos do cavalo.

“Pensei: se conseguem fazer antiveneno com cavalos, porque não usar-me a mim como primata?”, disse Friede.

Começou então a expor-se ao veneno das espécies mais letais que conseguia encontrar: cobras, taipans, mambas-negras e cascavéis. “Dói sempre”, afirma.

Rato de laboratório

Durante anos, os cientistas recusaram-se a colaborar com Friede, apesar da sua imunidade.

Até que, em 2017, o imunologista Jacob Glanville, conhecido pelo trabalho em vacinas universais, voltou a atenção para os antivenenos.

Glanville disse à AFP que procurava “um investigador desajeitado que tivesse sido mordido acidentalmente algumas vezes”, e encontrou um vídeo de Friede a ser mordido por várias cobras seguidas.

Na primeira conversa, Glanville afirmou: “Eu sei que é estranho, mas adorava pôr as mãos no teu sangue.” Ao que Friede respondeu: “Esperei por esta chamada durante muito tempo”.

O antiveneno descrito no artigo da Cell contém dois anticorpos do sangue de Friede e um fármaco chamado varespladib.

Em testes com ratos, ofereceu proteção total contra 13 das 19 espécies de cobras testadas, e proteção parcial nas restantes.

Os investigadores esperam que uma futura versão do antiveneno cubra ainda mais espécies — especialmente víboras — e estão já planeados ensaios com cães na Austrália.

Timothy Jackson, da Unidade de Investigação de Venenos da Austrália, elogiou a investigação, mas questionou a necessidade de envolver um humano, referindo que os anticorpos podem ser desenvolvidos sinteticamente.

Glanville afirma que o objetivo da empresa norte-americana Centivax é criar um antiveneno universal, administrado como uma EpiPen, e produzido em países como a Índia para manter os custos acessíveis.

Friede, que trabalha agora na Centivax, deixou de se injetar com veneno em 2018 para evitar riscos legais para a empresa.

Mas admite: “Tenho saudades.”