Lucinda Duarte está a uma semana de completar 80 anos e, há dois meses, a casa que toda a vida teve como sua, e que herdou da mãe, ardeu por completo. “Foi tudo, só fiquei com esta bata, que na altura também trazia, e uns chinelos como estes que trago”, disse à agência Lusa.
Esta habitante de Aldeia, em São Martinho das Moitas, concelho de São Pedro do Sul, distrito de Viseu, foi uma das duas munícipes que ficaram sem a casa de primeira habitação nos incêndios que ocorreram entre 15 e 20 de setembro.
De regresso ao que resta da casa onde nasceu, acompanhada pela agência Lusa, Lucinda Duarte reviveu a madrugada que lhe “levou tudo”, porque, na hora da aflição, não pegou em nada e, entretanto, o filho “teve de comprar tudo”.
“Acordei assustada e saí aflita a gritar! Não peguei em nada, nem nos óculos. Nada. Aqui ficou uma vida de trabalho. O meu tear! Trazia lá uma colcha! Tinha alguma coisa guardada, ardeu tudo. E as fotografias do meu casamento, já são 64 anos”, soltou.
Lucinda Duarte contou com a ajuda de “gente amiga da população” que lhe levou roupa e outros bens essenciais e, depois, ainda foi uns dias para casa do filho, em Lisboa, mas “tinha de regressar à terra”.
“E à minha casa. Não estou bem e tenho de voltar depressa para a minha casinha”, reagiu, enquanto contou que vive numa que estava desabitada, a poucos metros da sua, e que foi cedida por um senhor. E onde “vivia a sua sogra, mas ela morreu”.
Novamente, “um grupo de voluntários juntou-se para a deixar habitável” e o filho adquiriu “uma outra coisa essencial para lá poder morar”. Também “é ele que está a tratar da reconstrução com a Câmara de São Pedro do Sul”, sublinhou.
“Tirando esses amigos, nunca ninguém veio ter comigo a perguntar se precisava de alguma coisa, de roupa, de teto ou de qualquer apoio. Nem psicológico. Ninguém me perguntou nada. O que tenho, vem da família, amigos e habitantes”, apontou.
Um apoio que também não chegou a empresários do concelho vizinho de Castro Daire, igualmente no distrito de Viseu, onde, ainda hoje, “há muitas falhas de rede móvel e o telefone fixo só está a funcionar desde segunda-feira [dia 12], apesar das operadoras continuarem a enviar as faturas como se nada fosse”.
O desabafo é de Carlos Ferreira, cujas estufas situadas em Moita, freguesia de Moledo, arderam e onde já investiu, “de recursos próprios, 40.000 euros, só para colocar os plásticos e cobrir as plantas sobreviventes para ver se não morrem”.
“Meti o projeto para ver se consigo algum apoio do Estado. Do que me foi dito, e ninguém sabe dizer muito bem como é que funciona, quanto maior é o prejuízo, menor a percentagem de ajuda. Isso tem algum jeito?”, questionou.
Entre os “muitos prejuízos contabilizados”, realçou, tem “conseguido manter as 12 funcionárias que têm tido muito trabalho”, não na recolha dos frutos, mas a preparar a terra para, na primavera, acolher novas plantas.
Carlos Ferreira alertou ainda para “o perigo” das áreas ardidas, porque, “as árvores estão secas e o inverno está aí e o risco de tombarem para a estrada é muito e qualquer vento mais forte pode provocar uma desgraça”.
Na freguesia vizinha, em Mões, Armando Lima já retirou “todo o entulho que ficou no interior do aviário”, onde morreram 20.000 pintos, um trabalho realizado com “a ajuda de 10 amigos voluntários, porque de outra forma seria muito difícil” fazer isso.
“Reconstrução? Só quando tiver o apoio do Estado. Mas o apoio é só de 50% e nós temos de ter os outros 50%. Ou seja, nem meti os prejuízos todos, porque eu não tenho isso tudo! Vamos ver. É um dia de cada vez”, desabafou Armando Lima.
Também a viver um dia de cada vez, está o casal Carla Pinto e Jorge Santos, que perderam 120 cabras serranas em Codeçais, (Mões). De apoios públicos receberam “apenas cinco sacos de ração, de 25 quilos cada, sendo que cada cabra come cerca de um quilo por dia, e prometeram 6.000 euros”, mas ainda não os receberam.
“Já comprámos 52 cabras, porque uma amiga, que não queria que desistíssemos, abriu uma daquelas contas de ajuda [crowdfunder (financiamento coletivo)], e, em duas semanas, conseguimos 14.000 euros. Comprámos as cabras e colocámos a cobertura”, adiantaram à agência Lusa.
Na propriedade de 55 hectares, “ardeu muita coisa e o prejuízo foi grande” e no espaço onde os animais se recolhiam, arderam “os abrigos, barracões, alfaias agrícolas, painéis solares e mais de três mil fardos de palha”.
“Continuamos a trabalhar e a reconstruir o negócio graças aos milhares de portugueses que se solidarizaram connosco e nos ajudaram. E sem nos conhecerem! E os voluntários que de uma forma ou de outra nos têm ajudado”, reconheceram.
Entre eles, destacaram, um grupo do Alentejo, que, sem conhecerem o casal, chegaram a Codeçais e ali permaneceram dois dias “a desparasitar animais e a ajudar no que foi possível, como a erguer o novo abrigo”, que já tem com duas paredes.
Na bagagem, contaram, o grupo levou também “dois camiões de ração e uma cabra de raça alentejana, que batizaram de Esperança, para que seja o amuleto, uma espécie de mascote para dar sorte” para o futuro que desejam reerguer.
Vítimas dos fogos em Gondomar entre os destroços e a burocracia dos apoios
Dois meses passados dos incêndios em Gondomar, Ruben Rodrigues desconhece se vai receber os 500 mil euros de prejuízo tal como José Santos os 100 mil reclamados, estimando o presidente da câmara que chegue só em março.
As marcas da tragédia que assolou várias freguesias do alto concelho de Gondomar, no distrito do Porto, entre 15 e 20 de setembro, continuam visíveis no terreno, coexistindo com a ansiedade dos proprietários que anseiam pela falta de notícias sobre a possibilidade de indemnização.
Na Foz do Sousa, o incêndio que chegou no dia 17 reduziu a escombros uma oficina automóvel e queimou total ou parcialmente 30 viaturas. Nessa manhã, reagindo às projeções das chamas provenientes do terreno vizinho, Ruben Rodrigues, dois funcionários e amigos salvaram 13 carros.
“Dois meses depois, está tudo igual, não há ajudas”, resumiu o proprietário na conversa com a Lusa junto às chapas retorcidas da oficina criada há dois anos e com seguro de paredes, relatando que, em devido tempo, entregou o relatório dos prejuízos que, estima, “rondam os 500 mil euros”.
Sobre os dois funcionários da oficina disse “manter o vínculo com eles” pois “não quer deixá-los na mão”, assegurando estar “apenas à espera de uma resposta para se começar a reerguer”.
“Espero que entre o final deste ano e janeiro do próximo me consigam dizer alguma coisa [sobre o relatório dos prejuízos apresentado]”, desejou Ruben Rodrigues sem conseguir esconder o ar abatido.
Na freguesia de Jovim, a Lusa encontrou José Santos a vaguear pelos escombros da sua outrora oficina de móveis. O incêndio, contou, chegou na tarde de 16 de setembro e tudo mudou na sua propriedade e zona envolvente.
“Isto estava cheio de eucaliptos, agora é que os cortaram. É um terreno privado que não estava limpo. Eles preferem pagar a multa a limpar. São pessoas muito ricas, quase donos de Gondomar”, acusou, revoltado.
Da sua oficina de 50x20 metros quadrados, apontou, não restou nada.
“Eu fui levado pela GNR. Meteram-me no carro, nem vi a arder. Quando voltei estava tudo no chão”, contou o dono do espaço, apontando para o local onde tinha “muita matéria-prima (…) placas para fazer os móveis e contraplacado” e para as paredes destruídas da oficina “derrubadas pela Proteção Civil de Gondomar”.
José Santos não para de falar enquanto caminha sobre as telhas partidas em direção às máquinas e ferramentas queimadas e já assaltadas pela ferrugem: “para pôr isto como estava, 100 mil euros não devem chegar”, respondeu, a custo, quando questionado sobre o volume dos prejuízos.
Em Branzelo, o recorte, ao longe, da capela centenária da Nossa Senhora da Aflição destaca-se numa paisagem negra de árvores queimadas, no cimo da encosta acima de Melres.
Atingida pelas chamadas de 16 para 17 de setembro, que lhe causaram “danos totais”, a capela só de longe pode ser vista, explicou à Lusa o vizinho Altino Rocha, que enfatizou o período de derrocada que ameaça desde então o edifício privado.
“O proprietário foi aconselhado a vedar a envolvente da capela, porque as paredes têm brechas bastante acentuadas. Foi também fechado o acesso ao terreno adjacente para evitar a curiosidade das pessoas, inclusive as árvores estão também em risco de queda”, contou.
Questionado sobre o valor estimado dos prejuízos materiais, respondeu sobre o “valor histórico e cultural que representa”: “sei que a proprietária tem feito os contactos e o que lhe tem sido pedido e esperamos que chegue a bom porto e capela seja reerguida”, disse.
O presidente da Câmara de Gondomar, Marco Martins, reunidos os relatórios dos prejuízos, revelou rondarem os 9,6 milhões de euros, sendo que “foram disponibilizados os apoios de seis mil euros para os agricultores, que era o apoio único que podiam pedir, para quem tinha produção agrícola ou alfaias agrícolas”.
“Falta sair o aviso para as áreas florestais, para que as pessoas possam concorrer, e saiu na semana passada o aviso para os danos ou prejuízos em empresas ou primeira habitação. Essa candidatura decorre até 31 de dezembro”, disse o autarca.
Questionado sobre quando os particulares e empresas poderão ser indemnizados, Marco Martins precisou que, fechando a candidatura em dezembro, feita a análise em janeiro para que em fevereiro possa haver decisões de aprovação, ou não, das candidaturas, em março os apoios poderão ser pagos, embora tal dependa do Governo.
Mais de 900 agricultores do Norte declararam prejuízos de 3,6 milhões
Mais de 900 agricultores nortenhos afetados pelos incêndios de há dois meses declararam 3,6 milhões de euros de prejuízos, segundo um portal da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N).
De acordo com um portal criado na sequência dos incêndios de setembro, até às 17:00 de sexta-feira, 920 agricultores declararam prejuízos totais de 3,6 milhões de euros em candidaturas aceites pela CCDR-N, sendo que, como o limite de apoios é de seis mil euros, o valor considerado pela comissão regional vai apenas até 2,6 milhões de euros.
O montante do capital produtivo afetado ascende também a 3,5 milhões de euros, sendo que o valor que diz respeito à alimentação animal é de 287 mil euros e o referente à morte de animais foi quantificado em 85 mil euros.
No dia 31 de outubro, 621 agricultores tinham reportado 2,4 milhões de euros de prejuízos.
De acordo com os pedidos já aceites pela CCDR-N, o concelho com maior montante de prejuízo declarado foi Baião (distrito do Porto) com 569 mil euros, seguido de Resende (Viseu) com 417 mil euros, Cinfães (Viseu) com 381 milhões de euros, Vila Pouca de Aguiar (Vila Real) com 320 mil euros e Cabeceiras de Basto (Braga) com 243 mil euros.
Baião lidera também o número de candidaturas na região Norte, com 156, seguido de Cinfães (133), Resende (129), Vila Pouca de Aguiar (117) e Cabeceiras de Basto (78).
De acordo com o mesmo portal da CCDR-N, no total terão sido afetados na região Norte 3.203 agricultores inscritos em parcelário, com território correspondente a 8.169 hectares parcelados.
O número de parcelas afetadas é de 1.700, o número de declarações apresentadas desde 12 de setembro é de 815 e o número de construções agrícolas afetadas foi de 295.
Porém, no total, na região arderam 69.830 hectares, dos quais 28.116 de matos, 17.049 de florestas de eucaliptos, 7.211 de floresta de pinheiro bravo, 3.940 de florestas de outros carvalhos e 3.068 de florestas de outras folhosas.
Completam a área ardida, em menor dimensão, culturas temporárias de sequeiro e regadio, vegetação esparsa, agricultura com espaços naturais e seminaturais, florestas de outras resinosas e florestas de espécies invasoras.
No mês de setembro, os grandes incêndios das regiões Norte e Centro do país provocaram nove mortos, mais de 170 feridos e a destruição de dezenas de habitações.
Segundo o sistema europeu de observação terrestre Copernicus, só entre os dias 15 e 20 de setembro arderam em Portugal continental cerca de 135.000 hectares, dos quais mais de 116.000 no Norte e Centro, que assim concentraram a maior parte da área ardida em território nacional.
Governo prometeu apoios abundantes e diz já ter pago prejuízos mais pequenos
O Governo prometeu apoios públicos "abundantes" para cobrir prejuízos causados pelos incêndios de setembro, tendo alguns já sido pagos e os restantes serão, segundo o ministro da Coesão Territorial, processados do final deste mês até ao início de 2025.
"Os agricultores que tiveram danos inferiores a 6.000 euros, a maior parte deles já recebeu esse valor até 6.000 euros, mesmo danos não documentados", disse o ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, no dia 07 de novembro, no parlamento.
Segundo o ministro, "95% destes agricultores estarão pagos até ao final deste mês de novembro", mas "há um processo um bocadinho mais exigente para valores acima de 6.000 euros, que exige documentação, que é mais difícil, mas que muito provavelmente ficará pago logo no início do ano [2025]".
A Lusa questionou o Ministério da Coesão Territorial sobre números atualizados dos apoios já processados, mas não obteve resposta.
Os grandes incêndios de há dois meses nas regiões Norte e Centro causaram nove mortos e mais de 170 feridos, e, segundo o sistema europeu de observação terrestre Copernicus, só entre os dias 15 e 20 de setembro arderam em Portugal continental cerca de 135.000 hectares, dos quais mais de 116.000 no Norte e Centro.
Logo no dia 17 de setembro, dois dias após o início dos fogos, Castro Almeida prometeu “apoios públicos abundantes” para a recuperação de casas destruídas.
Num périplo que realizou pelos municípios mais afetados nos distritos de Aveiro e Viseu, ainda em pleno combate aos fogos, Castro Almeida também demonstrava preocupação com eventuais fraudes, mas considerou que era possível fazer "um trabalho rigoroso e rápido".
Quanto a "apoios de maior vulto, apoios para a reconstrução de fábricas, de casas", começariam "muito brevemente", em "prazos muito razoáveis”, garantiu.
Os levantamentos de prejuízos começaram imediatamente, quer pelos municípios, quer pelas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Norte e do Centro.
Em 23 de setembro, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, anunciou que tinha recebido 'luz verde' da Comissão Europeia para utilizar 500 milhões de euros do fundo de coesão dos próximos anos para cobrir prejuízos dos incêndios, sendo geridos "diretamente pelo Governo sem nenhuma obrigação de pré-requisito ou pré-aprovação”.
Três dias depois, em Conselho de Ministros, o Governo aprovou um subsídio especial para prejuízos agrícolas até 6.000 euros, o financiamento a 100% da recuperação de casas com valor até 150 mil euros, uma linha de apoio à tesouraria e recuperação de fábricas e um plano de ação para a floresta a ser apresentado em três meses.
Quanto aos prejuízos agrícolas, os apoios visam a agricultura de subsistência indocumentada, bem como a substituição de animais, reparação de máquinas, equipamentos e armazéns.
Na reconstrução de casas, o Governo assegurou o financiamento a 100% até ao limite de 150 mil euros a reconstrução e reabilitação de casas de primeira habitação, e quando o valor das obras ultrapassar os 150 mil euros o executivo vai financiar esse excedente em 85%.
Relativamente às fábricas, em causa estão uma linha de apoio à tesouraria, uma linha para reconstrução da capacidade produtiva ou um "mecanismo diferenciado de 'lay-off' simplificado" para as empresas afetadas, que prevê a "redução ou suspensão de contratos de trabalho", bem como um "regime de exceção nas Medidas Ativas de Emprego para favorecer pessoas que foram vítimas deste incêndio".
Na conferência de imprensa após o Conselho de Ministros, Castro Almeida confirmou que o Ministério das Finanças iria disponibilizar 100 milhões de euros de adiantamento aos 500 milhões que o país iria receber em fundos europeus.
No dia 11 de outubro, em Penalva do Castelo (distrito de Viseu) e Albergaria-a-Velha (distrito de Aveiro), o primeiro-ministro entregou o apoio financeiro a 44 agricultores, dos quais 25 receberam o teto máximo, 6.000 euros, disse à agência Lusa fonte do Governo.
Já no final de outubro, uma portaria definiu que as pessoas afetadas pelos incêndios se podem candidatar a apoios à habitação até final do ano, junto dos respetivos municípios e CCDR.
O Governo dividiu em três os apoios em matéria de habitação: para construção, reconstrução, reabilitação, aquisição ou arrendamento das habitações destinadas a residência permanente afetada pelos incêndios; para apetrechamento da habitação, repondo os bens nela existentes imediatamente antes dos incêndios e para o alojamento urgente e temporário em situações de necessidade imediata e provisória.
No primeiro caso, o montante da comparticipação será apurado em função do valor da estimativa dos danos causados, fixada em vistoria conjunta por técnicos dos municípios e das CCDR.
Já os apoios ao apetrechamento das habitações danificadas em resultado dos fogos, estes terão um valor máximo de até 4.000 euros, para habitações de tipologia T0, a que se somarão 500 euros por cada tipologia superior, até ao limite de 6.000 euros.
Nos casos de arrendamento, prevê-se a comparticipação a 100% da diferença entre o valor da renda atual e o valor previsto no novo contrato, e o alojamento urgente e temporário, enviado aos municípios, deve funcionar “como uma solução intercalar face à solução habitacional definitiva a concretizar por via dos apoios”.
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