O tema já foi alvo de dois vetos políticos do chefe de Estado e dois vetos por inconstitucionalidades decretadas pelo Tribunal Constitucional.
O debate sobre a despenalização da morte medicamente assistida iniciou-se no parlamento em 2016 e desde então teve vários avanços e recuos.
Os primeiros projetos e o chumbo
A discussão no parlamento sobre o tema começou com uma petição a favor da despenalização, em 2016. Um outro texto contra a regulação da morte medicamente assistida viria também a ser entregue alguns meses depois.
Entre 2017 e o início de 2018, foram apresentados na Assembleia da República os primeiros projetos de lei pelo PS, Bloco de Esquerda, o Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e o Partido Ecologista “Os Verdes”.
No dia 29 de maio de 2018, num parlamento ainda com o CDS-PP mas sem o Chega e Iniciativa Liberal, os projetos não passaram.
A votação foi nominal e os quatro projetos de lei foram rejeitados com diferentes votações, sendo que nenhum conseguiu os 116 votos necessários.
Diplomas aprovados pela primeira vez
Depois das legislativas de 2019, que elegeram deputados do Chega, Iniciativa Liberal (IL) e Livre para a Assembleia da República, PS, BE, PAN, “Verdes” e IL apresentaram iniciativas legislativas.
No dia 20 de fevereiro de 2020, e com uma manifestação contra a despenalização no exterior da Assembleia da República, os deputados aprovaram na generalidade pela primeira vez diplomas sobre a eutanásia.
Na altura, uma iniciativa popular, da Federação Portuguesa Pela Vida, subscrita mais de 95 mil pessoas, para a realização de um referendo, entrou no parlamento e acabou por obrigar os deputados a interromper o trabalho na especialidade para votar primeiro esta iniciativa.
A proposta acabou rejeitada e o trabalho em comissão foi retomado. A votação final global do texto de substituição teve lugar já em janeiro de 2021, altura em que foi aprovada por maioria, com os votos a favor de grande parte da bancada do PS, do BE, PAN, PEV, Iniciativa Liberal e 14 deputados do PSD e votos contra do CDS, Chega e PCP.
O chumbo do Tribunal Constitucional e o primeiro veto
Em 18 de fevereiro de 2021, o Presidente da República requereu ao TC a fiscalização preventiva da inconstitucionalidade do diploma, sustentando que recorria a conceitos "altamente indeterminados" para definir, no artigo 2.º, os critérios para a prática legal da eutanásia: "sofrimento intolerável" e "lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico".
A lei foi declarada inconstitcucional em 15 de março de 2021, numa decisão tomada por maioria, de sete juízes contra cinco. O TC deu razão ao chefe de Estado relativamente à segunda expressão, declarando o respetivo artigo inconstitucional, por "insuficiente densidade normativa".
No seu pedido, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu que não estava em questão "saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme a Constituição".
No entanto, o Tribunal Constitucional entendeu tomar posição sobre essa questão de fundo, considerando que a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não constituía um obstáculo inultrapassável para se despenalizar em determinadas condições a antecipação da morte medicamente assistida.
Face à declaração de inconstitucionalidade, o Presidente da República vetou o diploma e devolveu-o ao parlamento, como impõe a Constituição.
Na altura, em julho, os cinco partidos com projetos sobre a eutanásia acordaram, em reunião informal, um "texto base" para ultrapassar a falta de "densidade normativa" apontada pelo Tribunal Constitucional.
As alterações ao decreto incluíam, entre outros, um novo artigo para definir conceitos, oito no total, desde a morte medicamente assistida à "lesão definitiva", doença grave ou incurável.
Em 5 de novembro de 2021, o novo decreto foi aprovado no parlamento com uma maioria semelhante à anterior, com 138 votos a favor, 84 contra e cinco abstenções.
A votação decorreu um dia depois de o Presidente da República ter comunicado ao país a dissolução da Assembleia da República e a realização de eleições antecipadas em 30 de janeiro, devido ao chumbo do Orçamento do Estado para 2022.
O primeiro veto político do Presidente da República
No dia 29 de novembro de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa devolveu o decreto ao parlamento sem promulgação.
Marcelo Rebelo de Sousa vetou politicamente a lei, realçando que o novo texto utilizava expressões diferentes na definição do tipo de doenças exigidas e defendeu que o legislador tinha de optar entre a "doença só grave", a "doença grave e incurável" e a "doença incurável e fatal".
No caso de a Assembleia da República querer "mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida", segundo Marcelo Rebelo de Sousa, optará por uma “visão mais radical ou drástica” e questionou se isso corresponde “ao sentimento dominante na sociedade portuguesa”.
O parlamento foi dissolvido em 5 de dezembro de 2021 e o dossiê da eutanásia acabou remetido para a legislatura seguinte.
A terceira aprovação de um diploma
As eleições antecipadas de janeiro de 2022 deram início a uma nova legislatura e o processo foi retomado pelos deputados num parlamento em que o Partido Ecologista “Os Verdes” e o CDS-PP perderam representação.
PS, BE, PAN e Iniciativa Liberal avançaram de novo com projetos que foram aprovados na generalidade em 9 de junho na Assembleia da República. No mesmo dia, um projeto de resolução do Chega que pedia a realização de um referendo sobre o tema foi rejeitado pelos deputados, com uma grande maioria do PSD a favor.
O texto final foi 'fechado' em meados de outubro no grupo de trabalho sobre a morte medicamente assistida e aprovado em votação final global no dia 9 de dezembro.
O Presidente da República envia o diploma para o Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade em 4 de janeiro de 2023.
Tribunal Constitucional chumba pela segunda vez
Em 30 de janeiro de 2023, o Tribunal Constitucional volta a declarar inconstitucionais algumas normas do decreto que regula a morte medicamente assistida aprovado no parlamento em 9 de dezembro, em resposta a um pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República.
Foi o terceiro decreto aprovado no parlamento sobre a eutanásia e a segunda vez que o chefe de Estado requereu à fiscalização preventiva da sua constitucionalidade.
Face ao chumbo, o diploma foi vetado e devolvido à Assembleia da República.
Para o TC, o texto aprovado criaria “uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação” da lei sobre a morte medicamente assistida.
Ao caracterizar a tipologia de sofrimento em "três características («físico, psicológico e espiritual») ligados pela conjunção "e", são plausíveis e sustentáveis duas interpretações antagónicas deste pressuposto", justificou o TC, num acórdão aprovado por sete contra seis juízes.
O TC considerou constitucionais as definições de “doença grave e incurável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema” contidas naquele decreto, conceitos que tinham suscitado dúvidas ao Presidente da República.
Quarta versão prioriza suicídio assistido e é aprovada
O decreto é devolvido ao parlamento e o novo texto estabelece que a morte medicamente assistida só poderá ocorrer através de eutanásia se o suicídio assistido for impossível por incapacidade física do doente.
“A morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente”, lê-se no texto.
Uma das inconstitucionalidades apontadas pelos juízes tinha sido o facto de o legislador ter feito “nascer a dúvida”, na definição de ‘sofrimento de grande intensidade’, se a exigência de sofrimento físico, psicológico e espiritual era cumulativa ou alternativa.
Em comparação ao decreto anterior, é retirada totalmente a referência a sofrimento físico, psicológico e espiritual, mantendo-se os termos da restante definição.
Neste novo texto, ‘sofrimento de grande intensidade’ é definido como “o sofrimento decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.
Já no artigo 9.º, referente à ‘concretização da decisão do doente’ lê-se que “o médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a morte medicamente assistida, designadamente a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente ou a administração pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito, mas sob supervisão médica”, acrescentando-se a frase: “quando o doente estiver fisicamente incapacitado de autoadministrar fármacos letais”.
Deste ponto foi retirada a frase “sendo a decisão da responsabilidade exclusiva do doente”.
O novo texto foi aprovado no parlamento em 31 de março, em votação final global, com votos a favor da maioria da bancada do PS, da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda, de seis deputados do PSD e dos deputados únicos de PAN e Livre.
Teve votos contra da maioria da bancada do PSD, Chega, PCP e de cinco deputados do PS. Houve duas abstenções, de um deputado socialista e de um social-democrata.
Novo veto político do Presidente da República
Em 19 de abril, o Presidente da República veta o quarto diploma do parlamento, pedindo à Assembleia da República que clarifique dois pontos.
"Concretamente, solicito à Assembleia da República que pondere clarificar quem define a incapacidade física do doente para autoadministrar os fármacos letais, bem como quem deve assegurar a supervisão médica durante o ato de morte medicamente assistida", lê-se na carta do PR.
PS, IL, BE e PAN manifestam a sua intenção de confirmar o diploma.
Confirmação do diploma que obriga à promulgação
Em 12 de maio de 2023, a Assembleia da República confirma o decreto com um total de 129 votos a favor, 81 votos contra e uma abstenção, obrigando à sua promulgação.
Votaram a favor a esmagadora maioria dos deputados das bancadas do PS, IL, BE, e os representantes do PAN e Livre, bem como oito parlamentares do PSD.
O diploma é promulgado em 16 de maio.
Grupo de deputados do PSD entrega pedido de fiscalização sucessiva da lei
Em 2 de novembro de 2023, um grupo de 56 deputados do PSD entrega um pedido de fiscalização sucessiva da lei que despenaliza a eutanásia.
O objeto principal do pedido diz respeito à inconstitucionalidade da própria regulação legal da eutanásia, “com base no princípio da inviolabilidade da vida humana e na inexistência de um direito fundamental à morte autodeterminada”.
Crise política atrasa regulamentação
O diploma estabelecia que a regulamentação deveria ser aprovada no prazo de 90 dias para que a despenalização da morte medicamente assistida entrasse em vigor 30 dias depois.
No entanto, em 7 de novembro de 2023, o primeiro-ministro, António Costa, apresenta a sua demissão do cargo e é desencadeada uma crise política que leva à convocação pelo Presidente da República de eleições legislativas antecipadas para 10 de março de 2024.
Neste cenário, o governo PS decidiu não regulamentar a lei da eutanásia e incluir a questão no dossiê de transição para o executivo seguinte.
Provedora da Justiça requer ao TC inconstitucionalidade da lei
Em 12 de março, a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, requereu ao TC a declaração de inconstitucionalidade da lei.
No requerimento, a Provedora defende que a regulação contida na lei “é contrária ao que consagra a Constituição no n.º 1 do seu artigo 24.º [A vida humana é inviolável] e no n.º 1 do seu artigo 26.º [A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação].
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