Perante o aviso do Instituto Português do Mar e da Atmosfera de que a vaga de frio que assola Portugal continental vai manter-se até pelo menos quinta-feira, 2 de fevereiro, tem sido posta em causa a ação da Câmara Municipal do Porto. Em causa está o facto de não ter acionado o seu Plano de Contingência para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo em resposta às atuais baixas temperaturas.
É uma questão de critérios e de orgânica municipal. O executivo portuense justificou a decisão com base no que foi aprovado em sede do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, uma estrutura que existe em várias cidades do país e que, neste caso, é composto pela Câmara, pela ARS Norte, a Santa Casa da Misericórdia e IEFP e mais de 60 associações e entidades de ação social.
Os critérios acordados definem que este plano, como a autarquia fez saber em resposta à agência Lusa, “só é ativado com temperaturas mínimas abaixo dos 3ºC, durante três dias consecutivos”, o que não tem acontecido. O executivo, no entanto, fez a ressalva de que as autoridades estão a “acompanhar a evolução das temperaturas previstas para os próximos dias, ajustando as medidas implementadas sempre que necessário”.
Por outro lado, a ativação deste plano não é feita diretamente pela Câmara Municipal, mas sim pelo Comandante Operacional Municipal da Proteção Civil. Todavia, aponte-se que este não só “depende hierárquica e funcionalmente do presidente da câmara municipal”, como define a Lei n.º 65/2007, como é o presidente a “autoridade municipal de proteção civil”.
Não tendo ativado o plano, o que a Câmara Municipal do Porto fez foi “um reforço das equipas de rua, que diariamente acompanham as pessoas em situação de sem-abrigo”, desde quinta-feira à noite.
As duas equipas camarárias — compostas por dois elementos da Proteção Civil Municipal, dois elementos do Regimento dos Sapadores Bombeiros, dois técnicos do Departamento Municipal de Coesão Social e dois Técnicos das Equipas de Rua — têm como responsabilidade distribuir agasalhos, cobertores, fornecimento de alimentação de conforto e bebidas quentes. O intuito é assegurar “uma monitorização intensiva das pessoas em situação mais vulnerável, face às temperaturas mais baixas que se têm sentido nos últimos dias”, sublinha o executivo.
Além disso, estas equipas devem também proceder à “sinalização e encaminhamento para o NPISA Porto das pessoas que manifestem intenção de aderir a respostas de acolhimento social”. No entanto, sem o plano de contingência estar ativo, os espaços de acolhimento estão disponíveis em menor número.
Quando é que frio é demasiado frio?
Haverá algum limite de baixa temperatura tão prejudicial para a saúde que obrigue a acionar este tipo de planos de contingência? Segundo Vasco Ricoca Peixoto, é difícil de apurar com precisão.
Ao SAPO24, o médico e investigador na Escola Nacional de Saúde Pública explica que existem fatores de variabilidade que impossibilitam a definição de uma medida universal. O próprio IPMA tem definidos critérios de emissão dos avisos meteorológicos — amarelo, laranja e vermelho — que mudam consoante o distrito.
É, aliás, tendo isso por base que a Câmara Municipal do Porto, na comunicação acima citada, diz que a sua matriz para acionar o plano está “muito acima dos níveis parametrizados pela Proteção Civil Nacional para a vaga de frio, que estabelece como Alerta Amarelo valores entre 1 e -1ºC; Alerta Laranja, entre -2 e -3ºC; e Alerta Vermelho inferior a -3ºC”, para o distrito do Porto. Por outras palavras, o executivo está a dizer que, a guiar-se pelos valores do IPMA, só colocaria em prática o plano de contingência no caso de se verificarem temperaturas dos 1ºC para baixo.
Tal dispersão explica porque é que no Porto, onde a temperatura é, em média, mais fria que em Lisboa ou em Faro, o seu plano de contingência não foi ativado, mas nestas duas cidades mais a sul foi. “Há diferenças grandes de um concelho para o outro, e as questões da população não estão nos critérios [do IPMA]. Agora, basicamente o que fazemos em termos de decisão, e não só em saúde pública, é definir os limites, mas estes não são infalíveis”, explica Vasco Ricoca Peixoto.
Como se devem definir estes limites? Para o investigador, uma forma é avaliar o número de mortes diárias e compreender se houve um excesso de mortalidade quando se deu uma queda da temperatura abaixo da média. Mas isso dependerá da idade média da população, do número de pessoas em condições vulneráveis, da qualidade da habitação, entre outras variáveis.
“Cientificamente, faria sentido perceber a partir de que temperatura é que começa a haver um aumento na afluência às urgências e no excesso de mortalidade. E isso pode variar muito, de freguesia para freguesia, de concelho para concelho. Isso seria uma saúde pública de precisão”, defende.
A temperatura, por si só, não justifica que se definam estes planos, porque “podemos ter uma população que perante uma temperatura gelada não sente efeito nenhum, porque tem condições de saúde e habitação e de atividade que lhes permite não sofrer esse efeito”, continua. No entanto, “tem de haver uma orientação científica ou então acaba por ser um processo mais ou menos subjetivo”.
Ao mesmo tempo, não se pode dizer “com certeza que não pode morrer uma pessoa sem abrigo com mais idade perante uma situação de frio. Se estiver com uma doença crónica e numa situação de frio extremo na rua, por exemplo, ninguém pode garantir que não há de facto uma morte nessa circunstância”, adverte.
A fim de compreender quais foram os critérios que nortearam a definição deste plano — como o limiar de temperatura de 3ºC durante três dias — o SAPO24 contactou a Câmara Municipal do Porto, não tendo recebido resposta até à data.
No entanto, e apesar de ser necessário definir estes limites de temperatura, o investigador na Escola Nacional de Saúde Pública considera que estes devem ser encarados como “ linhas orientadoras para facilitar a tomada de decisão e a responsabilização”, mas não necessariamente como uma regra estrita.
“Nós não agimos em saúde pública com base apenas nestas tabelinhas. Se se sabe que há uma população mais vulnerável, que não tem roupa adequada... Mesmo que não haja excesso de mortalidade e aumento das urgências, até pode ter a ver com dignidade humana”, nota Vasco Ricota Peixoto.
“A nível do concelho, eu posso ter uma situação em que tenho estabelecido um determinado nível de alerta, mas tenho também uma população muitíssimo vulnerável que se calhar no nível amarelo já vai ter problemas. Aí, preciso de me focar não na situação geral ou em se estão 3ºC ou 4ºC, mas em perceber se as populações mais vulneráveis existem em grande ou em pequena quantidade. Sabemos onde é que elas estão? Conseguimos ativar respostas para elas nessas circunstâncias? Aí eu diria que é uma questão de bom senso perceber efetivamente o que está em causa, por exemplo, com as associações que trabalham com as pessoas sem abrigo ou com os idosos em situação de risco”, continua. “Isso pode ser feito depois numa gestão de proximidade e sem ter tanta rigidez no critério", defende. “E se há uma percepção de que faz sentido, não deve ser um grau celsius que faz essa diferença”, conclui.
Mudar o plano seria bom, mas não pode ser “com um estalar de dedos”
No terreno, Natália Coutinho diz que a atual vaga de frio “é mais desafiante do que o dia a dia normal, mas acaba por ser a mesma coisa todos os anos, com estas temperaturas baixas”. “É sempre mais difícil de trabalhar e ter uma resposta que sentimos que seja 100% útil e suficiente”, defende a coordenadora do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA) do Porto, associação que auxilia a população sem-abrigo da cidade desde 2008.
Face ao frio, o CASA tem feito ”um incremento na distribuição de agasalhos, roupa quente, meias, gorros, luvas, cachecóis e também, principalmente, cobertores", além de “uma distribuição mais massificada de bebidas quentes. Café, chá, que é para garantir que depois, com umas garrafinhas e assim, conseguem ter bebida quente para mais tarde, para se continuarem a manter quentes”, explica ao SAPO24.
Seria mais fácil trabalhar com o plano de contingência da cidade do Porto ativado. A coordenadora do CASA não tem dúvidas, mas percebe que a Câmara Municipal esteja limitada neste caso.
“Nós e todas as associações que estão no terreno sabemos que, fazendo parte do NPISA, temos uma palavra a dizer. Mas quando este acordo de critérios foi proposto, vinha na sequência do que já vem sendo feito desde há algum tempo. Então não houve ali nenhum tipo de ajuste”, explica.
O que veio complexificar a situação atual, continua, é que apesar da temperatura nunca ter baixado aos 3ºC, tem-se mantido nos 4ºC e nos 5ºC mais dias que o habitual. “Acabam por se manter temperaturas baixas durante muito tempo, mas não nos critérios que estão estipulados e que foram conversados por todos e apoiados. Acho que é essa a principal diferença”, explica Natália Coutinho que, todavia, diz não conhecer a sua base científica.
Não obstante, no seu entender, a Câmara Municipal não pode acionar o plano de contingência de forma discricionária. “A partir do momento em que há critérios que foram estudados e validados, eu entendo que não possa ser feito de outra maneira”, além de que “nestas coisas tem de ser a proteção civil a acionar”, acrescenta. No entanto, estando no terreno, a coordenadora do CASA considera que vai ser preciso “rever isto entre todos e propor à Câmara uma alteração”, dada a situação que se veio a verificar este ano.
Uma dessas propostas será colocada já esta segunda-feira pelo vereador do BE, Sérgio Aires, sugerindo que a Proteção Civil passe a acionar o plano de contingência para as pessoas sem-abrigo quando a temperatura registe, pelo menos, 5ºC durante 48 horas. Tanto bloquistas como o PAN têm defendido que a Câmara ative o plano não obstante não estarem a ser cumpridos os critérios, mas Natália Coutinho diz que tal não resolveria o problema por si só.
“É preciso munir-nos de pessoas e de instrumentos, de uma estrutura que possibilite a alteração ao dia a dia normal das associações. Para isso, acredito que a Câmara até conseguisse [acionar o plano] com alguma facilidade em termos internos, mas depois seria preciso que toda a sociedade civil, em termos das associações, respondesse à chamada e fizesse a sua parte. Portanto, não é assim do dia para a noite. É difícil dizerem-nos ‘pronto ok, vamos lá a partir de hoje abrir o plano de contingência’. Não é viável isto assim”, avisa.
Natália Coutinho também afirma discordar das caracterizações feitas ao executivo camarário como inoperante ou insensível. “A Câmara, enquanto parceira, sempre que nós lhe pedimos ajuda, como por exemplo agora com a questão dos cobertores, tivemos esse apoio”, declara.
Além disso, a coordenadora do CASA explica que as equipas multidisciplinares que a Câmara colocou no terreno foram recolhendo informações para perceber também qual o nível de necessidade das pessoas. “Prevendo que a breve trecho teria de ativar o plano, foi já abrindo essas ações”. Quais? “Saberem que há uma pessoa X no sítio Y, que há uma pessoa Z no sítio W. Ter uma ação preparatória de uma maior proximidade e com isto, a partir do momento em que seja ativado o plano, conseguir saber que é preciso ir buscar o Sr. José que está na rua X porque ele já nos disse que, assim que fosse ativado o plano, ele quereria integrar tal alojamento", diz Natália Coutinho.
Já questionada se seria possível, pelo menos, abrir mais espaços de acolhimento sem o plano ser acionado, a coordenadora do CASA também vê alguns desafios em por tal medida em prática. “Para isso era preciso que houvesse as pessoas para estar lá, as camas de campanha, penso que venham do Exército os cobertores, os lençóis", enumera. "Para tudo isso é preciso uma estrutura, é preciso pessoas para estarem ali a servir o café, o chá, os bolinhos e tal, conversar com eles, a manter a ordem. É uma estrutura, não pode ser feito assim com um estalar de dedos, é impossível”.
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