Fernando Henrique Cardoso (FHC), ex-presidente do Brasil, continua a ser um nome de enorme prestígio no país, sobretudo pelos créditos que lhe são atribuídos por ter sido, na opinião de muitos, o responsável pela recuperação de uma economia endividada e com alta inflação para um sistema estável e até próspero que entregou a Luís Inácio Lula da Silva em 2003.
Os petistas sempre evitaram tocar-lhe e todos os partidos o tratavam com uma certa deferência. Esta situação mudou no último ano, em grande parte porque FHC tomou uma posição dúbia na avaliação do impeachment/golpe, optando por não apoiar nenhuma das posições. À medida que o tempo foi passando - e o tempo no Brasil está a passar em velocidade acelerada - foi ficando cada vez mais difícil manter a indecisão. O ex-presidente tem estado entre dois fogos com cada uma das facções a acusá-lo de favorecer a outra parte.
Finalmente, a situação precipitou-se. Fernando Henrique Cardoso foi convidado para participar de um debate da Associação Latino Americana de Sociologia (LASA) em Nova Iorque, debate esse onde, inevitavelmente, não se falará de mais nada do que da mudança ideológica que já ocorreu na Argentina, está a acontecer no Brasil e se prevê que aconteça no Peru e na Venezuela. A radicalização é tal, e o conflito tão agudo, que o ex-Presidente foi desconvidado no dia seguinte ao convite, e novamente convidado horas depois.
Fernando Henrique resolveu não ir, mas acaba de tornar pública a razão da sua ausência, assumindo assim de vez o que acha do impeachment/golpe. Em comunicação enviada à Associação Latino Americana de Sociologia, FHC demarca-se daqueles que consideram o impeachment um golpe de Estado: "na conjuntura brasileira atual, setores políticos querem fazer crer que a Presidente Roussef, ao sofrer processo de impeachment (ainda em curso), procedido na estrita obediência da Constituição e sob a supervisão do Supremo Tribunal Eleitoral (oito dos 11 ministros foram nomeados pelos governos Lula ou Roussef), sofreu um "golpe". Estranho golpe no qual ela continua na residência Presidencial, cercada de colaboradores e sob condições de segurança devidas aos chefes de estado, à espera de decisão do Senado", escreve.
O ex-presidente recorda também nesta missiva os antecedentes do impeachment. "O pano de fundo deste processo foi o desvendamento de uma organização criminosa que desde o mandato do anterior presidente, uniu empresários, funcionários dos governos, políticos e partidos para aumentar o custo dos contratos públicos e desviar parte dos recursos assim ganhos para obterem votos e, eventualmente, riqueza pessoal".
Esclarecida a sua posição, FHC sublinha que, na sua opinião, o processo de impeachment decorreu e ainda decorre de acordo com as leis que regem o país. "Nada do acima referido, que motivou minha inclinação a aceitar o impeachment, tem a ver com qualquer questão que arranhasse os princípios democráticos". E para que não subsistam dúvidas sobre o seu curriculo político e democrático, deixa a nota: "fui e sou comprometido com valores democráticos no mundo e na politica brasileira. Exilado pelo golpe militar de 1964, obrigatoriamente afastado da Universidade de São Paulo pelos autoritários brasileiros em 1969, criei centros de resistência intelectual e política no Brasil (como o CEBRAP) e ajudei, quanto possível, a luta contra as ditaduras latino-americanas. Não só perdi a cátedra que tinha por concurso na Universidade de São Paulo, como sofri processos e fui levado a interrogatórios, com capuz na cabeça, em conhecido centro de tortura. (...) Em nenhum momento desonrei nessa trajetória minhas credenciais democráticas".
A sua posição, embora não tenha nenhum valor prático, uma vez que não tem qualquer posição oficial na actual estrutura política, é de extrema importância pela influência na opinião pública e terá certamente impacto nos vários quadrantes políticos brasileiros.
Eis aqui a íntegra do comunicado:
"Estimados colegas diretores da LASA:
Reitero meus agradecimentos pelo convite para participar da celebração dos 50 anos de LASA, instituição que acompanho desde seu nascimento e de cujas reuniões participei em algumas ocasiões.
Agradeço também a reafirmação do convite, feita diante de manifestações de pesquisadores e professores que, levados por paixões ideológicas, imaginaram que eu poderia aproveitar o evento para discutir problemas políticos locais, brasileiros. Os que me conhecem sabem que fui treinado como cientista social quando, a despeito de crenças e valores, os intelectuais procuravam manter a objetividade científica como um valor central em seus labores acadêmicos. Não obstante, a vaga ideológica existente em alguns setores universitários parece confundir, nos dias de hoje, a posição de ativistas com a de cientistas.
Fui e sou comprometido com valores democráticos no mundo e na politica brasileira. Exilado pelo golpe militar de 1964, obrigatoriamente afastado da Universidade de São Paulo pelos autoritários brasileiros em 1969, criei centros de resistência intelectual e política no Brasil (como o CEBRAP) e ajudei, quanto possível, a luta contra as ditaduras latino-americanas. Não só perdi a cátedra que tinha por concurso na Universidade de São Paulo, como sofri processos e fui levado a interrogatórios, com capuz na cabeça, em conhecido centro de tortura. Eleito senador na oposição ao regime, mais tarde, em momento de reconstrução democrática, fui relator-adjunto da atual Constituição. Sob ela, fui Chanceler, ministro da Fazenda (na época do Plano Real) e duas vezes eleito, por maioria absoluta, Presidente da República. Em nenhum momento desonrei nessa trajetória minhas credenciais democráticas.
Na conjuntura brasileira atual, setores políticos querem fazer crer que a Presidente Roussef, ao sofrer processo de impeachment (ainda em curso), procedido na estrita obediência da Constituição e sob a supervisão do Supremo Tribunal Eleitoral (oito dos 11 ministros foram nomeados pelos governos Lula ou Roussef), sofreu um "golpe". Estranho golpe no qual ela continua na residência Presidencial, cercada de colaboradores e sob condições de segurança devidas aos chefes de estado, à espera de decisão do Senado. Este só poderá afastá-la definitivamente se 3/5 dos senadores considerarem que, de fato, incorreu em desrespeito a regras fundamentais da Constituição. Até ao início do processo de impeachment, que pela Constituição depende preliminarmente da aceitação da acusação por 31 da Câmara dos Deputados) o governo Roussef dispunha do voto de cerca de 80% do Senado.
O pano de fundo deste processo foi o desvendamento de uma organização criminosa que desde o mandato do anterior presidente, uniu empresários, funcionários dos governos, políticos e partidos para aumentar o custo dos contratos públicos e desviar parte dos recursos assim ganhos para obterem votos e, eventualmente, riqueza pessoal. Processos objeto de condenação judicial ou que estão em tramitação na Justiça do país. Mais ainda, o desgoverno financeiro dos últimos dois anos levou à perda de oito pontos percentuais do PIB (algo nunca ocorrido na história), e 11 milhões de brasileiros ao desemprego, além de haver gerado uma dívida pública crescente. Os artigos constitucionais que foram feridos dizem respeito, entre outras, à desobediência da Lei de Responsabilidade Fiscal, graças ao que o governo Roussef utilizou recursos não aprovados pelo Congresso e mascarou a verdadeira situação fiscal do país durante o ano eleitoral.
Nada do acima referido, que motivou minha inclinação a aceitar o impeachment, tem a ver com qualquer questão que arranhasse os princípios democráticos.
Dito isso como explicação pessoal aos que me convidaram a aos que me apoiam, não pretenderia, reitero, utilizar a LASA para discutir essas questões, mesmo porque, como já dito, elas nada têm a ver com a questão democrática.
Peço apenas que compreendam que a esta altura da vida, aos 85 anos, não quero dar pretexto a espíritos radicalizados e imbuídos de paixão partidária a me usarem para uma imaginária luta "contra o golpe", um golpe que não houve.
Agradecendo uma vez mais o convite e desculpando-me por não dever aceitá-lo pelas razões expostas, subscrevo-me",
FHC
Comentários