A revelação do segredo há muito guardado na própria família da autora foi feita por Andrea Robin Skinner, filha de Alice Munro, dois meses após a morte da mãe, num ensaio publicado no domingo no jornal canadiano Toronto Star e repercutido na imprensa internacional.
Segundo Andrea Robin Skinner, o padrasto, o geógrafo Gerald Fremlin, começou a abusar sexualmente dela a partir de 1976, quando ela tinha 9 anos e ele 52.
Alice Munro soube dos abusos, que duraram até à adolescência da filha, quando Skinner lhe escreveu a contar, 16 anos mais tarde, mas a escritora decidiu ficar com o marido, mesmo assim, até à sua morte, em 2013.
“Ela era inflexível e dizia que o que quer que tivesse acontecido, era entre mim e o meu padrasto. Não tinha nada a ver com ela”, escreveu Skinner, citada pelo The Washington Post.
Gerald Fremlin escreveu cartas à família Munro, admitindo os abusos em pormenor e culpando Skinner, descrevendo-a como uma “destruidora de lares”.
Quando voltou a falar com a mãe – escreveu Skinner – Alice Munro concentrou-se na sua própria dor e pareceu “incrédula” com o facto de a filha dizer que foi magoada pelos abusos.
Segundo Andrea Skinner, a mãe contou-lhe sobre “outras crianças com quem Fremlin tinha ‘amizades’, enfatizando a sua própria sensação de ter sido traída”.
Depois de ler um artigo de jornal de 2004 em que Munro falava com entusiasmo do seu casamento, Andrea Skinner decidiu que não podia continuar a manter o abuso em segredo e apresentou queixa na polícia.
O padrasto foi acusado de atentado ao pudor e declarou-se culpado em 2005. Skinner esperava que este facto obrigasse o público a confrontar-se com a sua experiência, mas a fama da mãe “fez com que o silêncio continuasse”.
Após a publicação do texto de Skinner no Toronto Star, as reações de colegas de Munro não se fizeram esperar e alguns assumem não ter sido apanhados de surpresa, como é o caso de um biógrafo da escritora canadiana, que disse estar entre aqueles que sabiam que a filha de Munro tinha sido abusada sexualmente pelo padrasto.
“Eu sabia que este dia ia chegar”, afirmou Robert Thacker ao The Washington Post na segunda-feira, acrescentando mais tarde: “Eu sabia que ia ser revelado e sabia que ia ter conversas como esta”.
Thacker disse ao jornal norte-americano que Skinner lhe escrevera em 2005 a relatar o caso, depois de ter contactado a polícia. Quando a biografia de Munro estava para ser publicada, o autor decidiu não usar a informação.
“Claramente, ela esperava que eu a tornasse pública”, disse Robert Thacker ao The Post na segunda-feira. “Mas não estava preparado para o fazer. […] Não era esse tipo de livro. Eu não estava a escrever esse tipo de biografia. E vivi o tempo suficiente para saber que nas famílias acontecem coisas de que não querem falar e querem manter só entre si”.
Thacker recordou ainda que falou com Munro sobre o assunto quando a entrevistou em 2008, e a escritora lhe pediu na altura para desligar o gravador. O biógrafo recusou-se a descrever esta conversa em pormenor ao jornal, mas confirmou que Munro lhe dissera ter ficado a saber dos abusos pela filha, quando esta tinha 25 anos, em 1992.
“O termo que [Munro] usou foi ‘devastada’, que estava devastada. E estava devastada. E não foi nada que ela tivesse feito, foi algo que o marido fez”, acrescentou Thacker.
Segundo o biógrafo da escritora, Munro abandonou Fremlin durante algum tempo, mas acabou por voltar.
Para Robert Thacker, foi “amplamente entendido” que Alice Munro se baseou nestes acontecimentos da sua vida para a história “Vandals” (“Vândalos”), que escreveu em 1993.
Num ‘email’ enviado ao The Washington Post, a escritora Margaret Atwood também reagiu ao desvendar público do caso: “Só soube dos pormenores quando toda a gente soube, apesar de já ter tido algumas pistas antes do fim de semana passado… Horrível”.
“Como seu editor canadiano, eu sabia que Alice e Andrea estavam afastadas há vários anos”, escreveu Douglas Gibson também num ‘email’ dirigido ao jornal, acrescentando: “Em 2005, tornou-se claro qual era o problema, com a revelação do papel vergonhoso de Gerry Fremlin, mas não tenho nada a acrescentar a esta trágica história familiar e não tenho mais comentários a fazer”.
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