Uma coisa que achei estranha é a sua afirmação de que vivemos hoje numa “sociedade do medo”. Penso que as épocas anteriores eram muito mais sociedades do medo do que a atual, porque a informação era menor....

Nós não nos comparamos com essas sociedades.

Mas, mesmo no século XIX, o medo sempre foi o sentimento prevalecente. Com o avanço da ciência e o recuo das superstições, o medo recuou...

Até podia usar o exemplo, ainda mais forte, das duas guerras mundiais, no século XX, portanto os nossos pais viveram os tempos da II Guerra Mundial, o racionamento, os campos de concentração, as bombas atómicas...

Então não acha que vivemos numa sociedade em que a esperança, mesmo falsa, é superior ao medo?

Eu acho que o que permite usar o conceito de medo modernamente é o facto de nas sociedades europeias, porque não é em todas [as sociedades], existir uma grande instabilidade. Noutras sociedades, por exemplo, em África, onde há uma grande mortalidade infantil, a perceção que as famílias têm do medo é muito diferente daquela que nós temos. Mas o conforto relativo que se viveu no mundo, no longo período de expansão pós-guerra, quando houve paz, crescimento dos salários, o baby-boom, a democracia nos países do sul da Europa, todas essas transformações permitiram uma perceção de tranquilidade que [agora] é perturbada pela ideia de que pode haver um vírus, ou uma doença, em que o perigo ameaça os nossos mais próximos, aqueles com quem temos contacto físico. Essa é a mudança. Não é por haver um perigo exterior novo, como [o vulcão] nas Canárias. É, na nossa vida concreta, quando contactamos com os nossos amigos, familiares, ou as pessoas com quem nos relacionamos, e que vemos nelas a potência de um novo medo, que há dois anos era totalmente desconhecido, isto até surgir a vacina. É a essa mudança que eu me refiro.

Nos seus exemplos da força do medo, fala especificamente nos evangélicos brasileiros, cujo sucesso viria deles o usarem para atrair adeptos. Mas o que eles vendem não é medo, é esperança. Não assustam as pessoas; dão-lhes esperança de uma vida melhor, aqui e agora. Quem usa o medo é a igreja católica, que sempre usou o medo do castigo, do pecado, do Inferno, e que agora está em recessão. A razão do sucesso dos evangélicos é que dão esperança aos pobres, prometem-lhes a felicidade e riqueza, já. Eles não enganam pelo medo; enganam dando falsas esperanças aos seus seguidores, que são os mais pobres, aqueles que não têm nenhuma hipótese — nenhuma esperança, no fundo.

Mas isto é só um pormenor. No final do seu livro, dá cinco hipóteses de esperança, mas o livro todo, em geral, não tem um tom esperançoso. Por acaso, os últimos acontecimentos com o Facebook vieram levantar novamente um medo específico, o da devassa da vida privada. Fala nisso como uma situação que parece fechada, ou seja, não vamos conseguir sair desta situação, que tão bem analisa, do controle das redes. Acha que existe alguma maneira real - não teórica, porque fala-se muito em fiscalizar, mas nós sabemos que isso é impossível - de fiscalizar a ação do Facebook? E, nesse particular, acha que caminhamos para o quê? Haverá alguma maneira de fugirmos ao universo facebookiano?

A vulnerabilidade do poder do Facebook e das redes sociais, mas sobretudo do universo do Zuckerberg, está em iniciativas de democratização. A possibilidade de redução do poder algorítmico depende das circunstâncias sociais. No período mais recente, houve um alerta, por causa da audiência [da denunciante Frances Haugen, ex-gestora de produto do Facebook] no Congresso e das falhas na rede, que foram dramáticas. No Brasil, por exemplo, a maior parte das pessoas comunica por WhatsApp e, portanto, quando deixou de haver comunicação durante seis horas, muitas empresas ficaram sem capacidade de atuação, para não falar das pessoas individuais. Hoje, a vulnerabilidade do Facebook a pressões regulatórias é maior do que no passado. 

"As redes sociais estão a criar uma política muito mais agressiva, muito mais violenta e superficial, muito mais baseada em jogos de interesses e clubes de discursos de ódio"

Eu tenho algum ceticismo sobre o equilíbrio de poder que poderia determinar alterações fundamentais. Mas é evidente que é da democracia que vai depender esta capacidade, e aí os dados não estão jogados. Não chegámos a nenhum fim da História. Há mudanças que são possíveis. Houve uma tentativa nos Estados Unidos, por procuradores-gerais de quase todos Estados, da separação jurídica das três empresas, o FaceBook, o WhatsApp e o Instagram, mas isso fracassou porque era tarde demais, consideraram os juízes. Veremos se há novas ofensivas dentro desse ponto de vista. Essa divisão poderia ter algum efeito, embora haja bastante ceticismo quanto ao resultado.

Na verdade, o poder do controle algorítmico vai muito mais longe do que isso, é um controle sobre a forma de seleção da informação e de promoção de certas afirmações em detrimento de outras. As normas das redes sociais, tanto pelo imediatismo, pela superficialidade, pela promoção da agressividade para provocar mais capacidade comunicante, está a transformar os modelos de linguagem política e de organização social. E está a fazê-lo em profundidade. Está a criar uma política muito mais agressiva, muito mais violenta e superficial, muito mais baseada em jogos de interesses e clubes de discursos de ódio. É uma potência gigantesca, cujos efeitos nós já estamos a ver na ascensão da extrema-direita, nas vitórias implausíveis de Trump em 2016, de Modi em 2014 e de Bolsonaro em 2018. Situações absolutamente implausíveis, em que não se via como é que a direita e o centro brasileiros poderiam ser representados por uma figura tão lamentável.

Surreal.

Exatamente. Portanto, eu creio que é tudo isso que está em jogo. As soluções são muito difíceis, exigem uma grande capacidade jurídica, que pode mudar em função das perceções sociais.

Por acaso, a única coisa em que os republicanos e os democratas concordam, neste momento, é que o Facebook precisa de ser controlado.

O que não quer dizer que concordem sobre a forma de o fazer. A legislação norte-americana, tal como a europeia, protege o Facebook, ao aceitar a ideia de que não é um órgão de comunicação social, é um espaço de liberdade de expressão. E, sendo um espaço de liberdade total de expressão, tudo pode acontecer. Todos os clubes, todas as linguagens cifradas, a capacidade de comunicação auto-referencial, o terraplanismo, o anti-vacinismo, a xenofobia, o ódio às mulheres, o ódio aos gays – tudo isso pode constituir uma cobertura confirmativa.

Eu defendo que a alteração mais radical que poderia acontecer nesse contexto era simplesmente obrigar todas essas redes a submeterem-se às mesmas regras que os órgãos de comunicação social, porque se num jornal for publicado um texto difamatório, um texto que promova o assassinato de ciganos ou de quem quer que seja, a pessoa que o faz é responsável, mas o órgão que escolheu publicá-lo também é.

créditos: JOÃO RELVAS/LUSA

Aliás, as redes praticamente destruíram a comunicação social.

Exatamente. As pessoas vão buscar informação que não é informação. Há informação nas redes sociais, com certeza que há, como há na Internet, mas a perda de força da intermediação, da confirmação de fontes, da classificação das notícias – deixou de haver responsabilidade, porque o algoritmo permite isso.

"Atualmente, o António Costa faz mais comunicação pelo Twitter do que por conferências de imprensa"

Na realidade, a comunicação social nunca foi imparcial. Isso é um mito. Mas pelo menos sabia-se qual era a política de tal e tal jornal, portanto a parcialidade era assumida. Hoje, quando lemos o Observador, sabemos qual é o ponto de vista deles. Qual é o projeto político que está por trás.

Exatamente. Mas agora repare: durante muito tempo, o Zuckerberg era um dos grandes aliados do Trump. Agora teve de o proibir para tentar salvar a face.

Aliás, o Trump foi muito inovador, porque praticamente acabou com as conferências de imprensa na Casa Branca, que eram para a comunicação social, e deu a sua versão dos factos diretamente através do Twitter. Portanto ultrapassou a intermediação e moderação dos órgãos de informação.

Se verificar bem, com algum desgosto, verificará que essa tendência se está a generalizar a outros governantes. Atualmente, o António Costa faz mais comunicação pelo Twitter do que por conferências de imprensa.

Pois, porque é direto, não tem um filtro.

E não tem perguntas. O Poder tende a reproduzir-se desta forma.

O Twitter, que não é do Zuckerberg, é que tomou a iniciativa de o calar na sua plataforma. Quanto ao Zuckerberg, uma das soluções seria obrigar o Facebook a vender o WhatsApp e o Instagram.

Isso é a estratégia anti-monopolista. Mas, para já, não tem grande força jurídica, porque perdeu a sua primeira proposta em tribunal.

Sim, e a AT&T, a companhia telefónica, foi divida em sete empresas nos anos 80 e depois voltou a juntar-se.

Como a quebra da Standard Oil na década do século passado.

“O futuro já não é o que nunca foi”, de Francisco Louçã

SINOPSE: Todo o futuro é fabuloso», escreve Alejo Carpentier. Será? E será uma fábula feliz ou uma efabulação quimérica? A resposta está no presente, aquele que hoje vivemos, que é o de uma sociedade de medo. Foi isto que desaprendemos com a pandemia: o medo dos outros ou de nós próprios fechou-nos numa vida em zapping, mergulhou-nos em identidades ilusórias no Facebook, avassalou-nos com imagens dominadas pelo tribalismo - seja de religiões fanatizadoras, seja de supremacismo agressivo. O nosso mundo está a mudar e ressurgem fantasmas do passado, a necropolítica, que usa a destruição como normalização, e a bufonaria, que eleva títeres ao poder fazendo com que, como adivinhava Foucault, «o grotesco seja um dos procedimentos essenciais da soberania arbitrária».

O Futuro Já Não É o Que Nunca Foi discute esta modernidade destroçada. Mostra como o predomínio da intoxicação nas redes sociais constitui uma tecnologia da razão sonâmbula, com um regime de avalancha que esgota a informação e que se constitui como arma do capitalismo tardio, com a plataformização do trabalho e a vigilância dos dados da nossa vida. Tornámo-nos cobaias do maior espaço social que existe, sem regras que não sejam as da privatização por um mercado totalitário, e é nele que nasce a agressividade da extrema-direita trumpista, ou da multidão dos seus seguidores. A resposta, urgente, é a luta pela democracia como força emancipatória e como responsabilidade social. Este livro propõe-lhe que nem espere nem desespere: é no presente que definimos a nossa vida.

Editora: Bertrand | Preço: 17,70 euros | Clique aqui para saber mais informações.

Deixe-me fazer-lhe uma pergunta pessoal: sente-se melhor nesta posição atual de Conselheiro de Estado – “Senador” da nossa República – do que quando estava no Bloco?

Continuo no Bloco, não tenho é responsabilidades há quase dez anos. São duas formas diferentes de estar presente. Eu acho que a vida pública, a vida social, exige intervenção ativa e sempre gostei muito do que fiz durante aquele longo período.

Mas o Bloco no seu tempo não era o mesmo que é agora.

Todos os partidos vão mudando ao longo do tempo. Em algumas coisas até acho que hoje está bastante mais forte, bastante mais capaz do que inicialmente. 

Mas também não é esse o tema da nossa conversa. 

Gosto do que faço hoje porque é preciso dar lugar à geração seguinte. Um partido que saiba fazer uma transição inteligente, dando espaço e capacidade de aprendizagem e de construção de personalidade por parte de jovens, isso é muito raro. Em Portugal, raríssimo. O Mário Soares saiu e voltou, o Sá Carneiro também, há esses dramalhões todos, a História sempre os teve, o Guterres com o Jorge Sampaio, e todas essas histórias que conhecemos bem. Que um partido procure e possa fazê-lo de uma outra forma acho que é uma lição extraordinária.

Quanto a mim, faço o que sempre fiz, escrevo, trabalho, sempre dei aulas, como sabe, mesmo quando estava no Parlamento.

"O Chega é o Bolsonaro e é o Trump. Usa os mesmos métodos, a intoxicação das redes sociais. (...) Esta forma de fazer política tem sucesso, mas tem uma gigantesca vulnerabilidade: não é verdadeira"

Para si será melhor não ter as obrigações duma direção partidária.

Claro. Eu tenho muita admiração pelo Jerónimo de Sousa, quase vinte anos naquela função. Ou a Catarina, ou outra pessoa, seis, sete anos, sei que treze, quatorze, quinze anos, é extremamente cansativo.

O Bloco representa uma esquerda do século XXI e o PCP representa uma esquerda de 1930, mais ou menos. Até à década de 50, digamos.

É razoável dizer isso, sim.

À direita, o CDS representa uma posição quase do tempo do “Trono e Altar”, não é? Acha que o Chega é uma direita do século XXI? O Chega pode tomar o lugar do CDS no espetro político português?

O Chega é o Bolsonaro e é o Trump. Usa os mesmos métodos, a intoxicação das redes sociais, o contexto das afirmações – eu vou destruí-lo, eu vou massacrá-lo, eu vou matá-lo...

Mas esses soundbytes hoje em dia são muito mais fortes do que aquilo que o CDS tem para dizer.

Com certeza, porque há as redes sociais. As redes sociais criaram uma cultura em que isto é premiado. O parlapatão é premiado. Quanto mais a rã pensa que é o boi, mais ganha. Só que depois desaparece. O Trump perdeu. O Bolsonaro está a caminho dum resultado catastrófico; o Lula pode ganhar na primeira volta. O Bolsonaro tem seiscentos mil cadáveres por trás. Esta forma de fazer política tem sucesso, mas tem uma gigantesca vulnerabilidade: não é verdadeira. Não tem projeto, é vulnerável a todo o tipo de flutuações. A democracia precisa de profundidade.

créditos: JOÃO RELVAS/LUSA

Não sei se quer falar nisso, mas há uma situação em Portugal em que o PS se tornou o partido inevitável do poder. Não só já tem mais anos de poder em democracia do que qualquer outro, como a fraqueza do PSD e a situação política o tornaram um partido sem a mínima hipótese de ser afastado. Obviamente, não podemos falar em ditadura, mas eu vejo isso como um perigo, acho que é mau para a democracia. Vê alguma maneira de desfazer este nó?

Essa pergunta... Desviamo-nos bastante da nossa conversa sobre o livro. Preferia não o fazer.

Está bem. Então vamos voltar ao livro.

Já sabe como é, depois publica esta entrevista e o que vão citar não é o tema principal.

"O contacto pessoal tem uma enorme força – repare na loucura que foi a abertura das discotecas. Não é só porque os jovens gostam de se divertir; precisam de ter contacto social, e ainda bem"

Então, o professor no livro fala intromissão da tecnologia na vida privada como sendo um mal, o que é um facto, mas não acha que é inexorável, que não há nada a fazer? Cada vez mais – e o Zoom é um exemplo disso – a vida privada precisa de recorrer a essas tecnologias. Nós não sabemos se esta conversa, por exemplo, não está a ser ouvida, sei lá por quem. 

Não acho que seja inexorável. Acho que o progresso da tecnologia tem vários caminhos e haverá sempre progresso nas soluções tecnológicas. É por isso que agora podemos mandar sondas não tripuladas a Marte, o que não era possível há alguns anos. Temos mais conhecimentos sobre o Universo e mesmo sobre a vida social. O progresso do conhecimento, por vezes dramático – veja a carta do Einstein sobre a bomba atómica –, ocorre sempre. Agora, que as redes permitam mais comunicação é uma possibilidade interessante. Que prossigam na senda... Se se lembrar do George Orwell, no 1984, uma das coisas que acontece é o Teletraan, que vigiava as pessoas, até lhes dava instruções: “o Winston não está a fazer a ginástica como devia!” Portanto, aí é o controle total sobre a vida, excepto o templo da casa, onde uma pessoa pode estar a ler, em silêncio.

Há um livro que reflecte mais o nosso tempo do que o “1984”. Chama-se “Isso não pode acontecer aqui”, escrito em 1935 pelo Sinclair Lewis, em que o Presidente dos Estados Unidos é um Trump. O livro saiu de moda, mas tem um cenário muito mais próximo da atual perversão da democracia americana. “1984” era baseado no estalinismo e no nazismo, mas esse tipo de ditadura desapareceu, exceto talvez na Coreia do Norte. A ameaça agora vem da chamada “democracia iliberal”, como na Hungria.

"O otimismo e o pessimismo são dois sentimentos que temos sempre em paralelo e em doses homeopáticas"

Há essa ameaça, mas não há só essa. Não vamos ser muito ingénuos. Repare: os Estados Unidos, a Grã Bretanha e os países nórdicos já promoveram formas de controle e vigilância sobre os cidadãos. E, em algumas, a esterilização forçada de mulheres até aos anos 70 – na Noruega e na Suécia. Estas coisas, do ponto de vista social, são tremendas. A Coreia do Norte será talvez o exemplo mais absurdo e até grotesco para as pessoas que lá vivem. As formas múltiplas de controlo mudam ao longo do tempo. Agora, se elas perduram, e perduram nas redes sociais, vai depender muito da capacidade de criar mecanismos sociais que sejam independentes dessas redes. É muito importante que as escolas não continuem a dar aulas por Zoom, que reabram para as crianças, que as universidades voltem a ter contacto direto, promovam conferências, façam comunicação direta. Pode haver espetáculos, pode haver cultura, formas de comunicação que não sejam permeáveis por mecanismos tecnológicos. E o contacto pessoal tem uma enorme força – repare na loucura que foi a abertura das discotecas. Não é só porque os jovens gostam de se divertir; precisam de ter contacto social, e ainda bem. Acho um acontecimento extraordinário, com os riscos que tem havido.

Quer dizer, uma sociedade totalmente mediatizada por uma informação Teletraan não existe. Haverá sempre resistências a isso. E há muitas formas de o fazer e estratégias mais acentuadas, incluindo o discurso público na expressão da comunicação e da cultura, que permita contrariar o que é mais perigoso de tudo, que é o enclausuramento em discursos de ódio e em culturas privadas.

"As redes sociais conheceram uma enorme expansão porque tiveram a inteligência de ser gratuitas. Extraem dados, mas o nosso acesso é gratuito, e o nosso acesso promete-nos uma grande capacidade de autonomia e liberdade de expressão"

Uma última pergunta: podemos ser otimistas? Quer dizer, podemos esperar que a tecnologia continue a evoluir, mas nos permita um espaço de privacidade – mais do que de liberdade, até, porque a questão aqui é mais a privacidade. Refiro-me sobretudo às democracias ocidentais.

O otimismo e o pessimismo são dois sentimentos que temos sempre em paralelo e em doses homeopáticas.

"Precisamos de um manual de sobrevivência da democracia. A democracia não pode ser meramente um exercício simbólico, até ocasional de alguma expressão, o voto"

Daí “o tempo mais extraordinário, para o bem e para o mal”, como escreve, citando Dickens.

Exatamente. É “o melhor dos mundos e o pior dos mundos”, sempre nos disseram isso. E é verdade, temos os nossos momentos otimistas e pessimistas, mas são sempre sentimentos. Acho que é preciso procurar a racionalidade social, a capacidade de comunicação, e perceber as contradições e os paradoxos. As redes sociais conheceram uma enorme expansão porque tiveram a inteligência de ser gratuitas. Extraem dados, mas o nosso acesso é gratuito, e o nosso acesso promete-nos uma grande capacidade de autonomia e liberdade de expressão. Acreditámos que havia um aumento da liberdade de expressão, só pelo facto de podermos todos escrever. No jornal só publicam os jornalistas, à televisão só podem ir alguns. Ali, toda a gente escreve os seus posts e depois há tecnologias que têm um aspeto fascinante. A tecnologia de encriptação ponto a ponto do WhatsApp, por exemplo. Se eu lhe mandar uma mensagem, só o destinatário pode ler. Mas isso também passou a ser um meio de organização das piores práticas, que assim estão protegidas. Não foi o Facebook que deu a vitória ao Bolsonaro, foi o WhatsApp. O WhatsApp é o instrumento do Modi. Portanto, o disparo automatizado de milhões de informações para centenas de milhares, em redes sucessivas, os vinte mil perfis falsos do André Ventura no Facebook e muitas outras formas aproveitaram todas as potencialidades que poderiam ser positivas para as transformar no continente do ódio. Portanto acho que, deste ponto de vista, o otimismo tecnológico deu lugar a um pessimismo sociológico – e até antropológico; será que as pessoas são todas más, será que elas todas gostam do que é sujo, violento, só gostam das imagens mais agressivas? 

A realidade humana é tudo isso ao mesmo tempo. O que é preciso é encontrarmos capacidades de comunicação e de experimentação social que sejam a base da democracia. Precisamos dum manual de sobrevivência da democracia. A democracia não pode ser meramente um exercício simbólico, até ocasional de alguma expressão, o voto. Tem de ser mais densa do que isso, tem de ter a capacidade de vivência social e de colocação de temas. É assim que algumas das fronteiras entram no mainstream; a luta contra as alterações climáticas, a ideia de que há uma igualdade fundamental de direitos, o respeito pelas pessoas, (a ideia de que) Portugal precisa de imigrantes por causa do seu envelhecimento demográfico. As respostas desse tipo atacam os pilares da violência social e da desigualdade. Conhecemos muitos casos de offshores: o Tony Blair, o Paulo Guedes, os que foram para o banco e depois o banco faliu, os grandes devedores – 700 milhões – a brincar connosco, a perceção da corrupção da elite e da necessidade da democracia obrigar à prestação de contas. 

Eu acho que a transparência da democracia é indispensável para a nossa racionalidade humana e para a capacidade de encontrarmos caminhos alternativos.