"Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e de um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos".

Começava assim o Papa Francisco a sua homilia na tarde de 27 de março de 2020, numa oração que pretendia unir o mundo pelo fim da pandemia. Mas não foram apenas as palavras a ecoar entre os fiéis, também as imagens da Praça de São Pedro vazia, de um céu carregado e chuvoso e de um homem vestido de branco sozinho num sítio onde costuma haver uma multidão marcou aquele momento para a história.

Na sequência deste episódio foi lançado o livro "Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?", editado em Portugal pela Dom Quixote — já disponível nas livrarias — e oferecido pelo Papa Francisco aos bispos portugueses.

O Dicastério para a Comunicação do Vaticano, responsável pela edição original do livro que reúne as orações, mensagens e imagens do Papa no ano passado, enviou a obra aos bispos, com uma carta assinada pelo prefeito Paolo Ruffini e pelo Monsenhor Lúcio Adrian Ruiz, secretário da mesma organização.

"Tendo reorganizado as fotos, textos e vídeos daquela extraordinária oração pelo fim da pandemia, o Dicastério decidiu partilhá-las, para que permaneçam fixadas na memória e sejam recordadas", lê-se no documento. A carta explicava ainda que o livro pretende que o leitor tenha "uma oportunidade de parar, para repensar a nossa própria vida e recomeçar renovado, com um novo olhar sobre os irmãos e sobre o mundo”.

Nesse sentido, o SAPO24 pediu uma reflexão sobre estes gestos — a oração e a entrega do livro — a quatro dos bispos que receberam a obra: D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa; D. Daniel Henriques, Bispo Auxiliar de Lisboa; D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, e D. Virgílio Antunes, Bispo de Coimbra.

Entre os comentários, a certeza de que aquela tarde escura "não partiu de uma montagem cénica cuidadosamente calculada" e que representou um "gesto único e extraordinário de solidariedade do Papa Francisco". Numa altura em que "a humanidade estava como que suspensa entre o céu e a terra, entre a esperança e o desespero", as palavras do Papa vieram como “um sinal sublime". No fim de tudo, quando a pandemia tiver passado, existirão "muitas histórias belas para guardar e contar" — e estes testemunhos ajudam a perceber uma delas.

"Ficámos mais perto"

por D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa

27 de março de 2020, com o Papa Francisco na Praça de São Pedro vazia, foi um sinal absoluto, que não precisou de mais nada para valer por si e para o mundo, assolado que estava e continua a estar pela pandemia. Em alturas assim, alguém como o Papa Francisco, pelo que representa e pelo que faz, transporta o drama do mundo e vive-o com Deus para todos.

Guardo o acompanhamento que fiz, pela televisão, recolhido e solidário com o Papa e com muitos por esse mundo além. Ficámos mais perto.

Os discípulos de Cristo, ou seja, a sua Igreja, têm vivido como todos os outros seres humanos, entre o sofrimento e a esperança que nos mantém vivos e solidários. Por si ou com ou outros, desdobram-se em ações pessoais, profissionais e solidárias, nos vários ambientes e setores. Há muitas histórias belas para guardar e contar depois.

"A pandemia não é um acontecimento que se possa encerrar entre um antes e um depois"

 por D. Daniel Henriques, Bispo Auxiliar de Lisboa 

Apesar dos textos publicados agora em livro estarem acessíveis, considero muito oportuno a sua publicação numa obra como esta, muito bem conseguida graficamente e oportunamente enquadrada pelo prefácio do Perfeito do Dicastério da Santa Sé para a Comunicação. Não tanto para que fique registado devidamente, para memória futura, um evento que teve um fortíssimo impacto dentro e fora da Igreja, mas para que se possa ir cada vez mais ao fundo dos questionamentos que esta pandemia não cessa de nos trazer.

O gesto do Papa Francisco não partiu de uma montagem cénica cuidadosamente calculada e penso que ninguém poderia imaginar o impacto que ele viria a ter. Tratou-se de um gesto simples realizado por um homem simples que acredita profundamente no valor da oração e que abraça resolutamente a sua missão de pastor universal da Igreja e de guia espiritual de todos os homens e mulheres de boa vontade.

Penso que todos guardamos na memória e no coração a imagem do Papa caminhando sozinho, sob um clima inóspito, adentrando-se na enorme e vazia praça de São Pedro. Todos tínhamos sido convocados para esta peregrinação e, por isso, aquela praça estava repleta como nunca antes tinha estado. Unidos, mas cada um na solidão da sua individualidade, imagem do quanto esta pandemia nos aproximou mas, igualmente, do modo único como cada um de nós a está a viver. Particularmente, guardo a leitura do texto do Evangelho e a meditação do Santo Padre acerca do mesmo. A tempestade que se abateu sobre a barca dos discípulos e as outras barcas que navegavam juntas, o grito assustado dirigido a Jesus que dorme à popa, a sua palavra cheia de autoridade que acalma o mar e as palavras de Jesus: "Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?". Tantas vezes refleti e preguei sobre esta passagem evangélica mas, neste contexto de pandemia, foi como se a escutasse a primeira vez, vendo como ela põe a nu os meus medos e a minha falta de confiança.

Já todos nos apercebemos que a pandemia não é um acontecimento que se possa encerrar entre um antes e um depois, sendo o depois o simples retomar o que era antes. Sendo a pandemia um fenómeno global, ela requer uma resposta global: planetária mas, igualmente, que englobe a totalidade da existência humana. A Igreja não "plana" sobre os dramas do mundo. Ela faz parte desta humanidade sofrida que procura soluções e horizontes de esperança. É "carne da sua carne e sangue do seu sangue". As chagas da humanidade são as suas próprias chagas. No entanto, ela traz consigo uma "Boa Nova" que a transcende, que não é um simples "vai ficar tudo bem", mas o anúncio da vitória de Jesus sobre a morte e a certeza de que Ele caminha connosco, como outrora navegou com os discípulos no Mar da Galileia. Com o mesmo poder e a mesma autoridade. Mas, também, com a mesma interpelação cortante: "Porque sois tão medrosos? Não tendes fé?".

"Guardo a imagem impressionante do Crucifixo sobre o qual caía a chuva"

por D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima

Um gesto único e extraordinário de solidariedade do Papa Francisco que, sob a forma de oração, interpretou a angústia e a dor de toda a humanidade — de crentes e não crentes — surpreendida e desorientada, à procura de uma resposta, perante uma pandemia devastadora. É um momento inesquecível, conhecido e reconhecido como um dos acontecimentos centrais do ano 2020 que marca a história deste século. O registar este momento em livro é um precioso contributo para ajudar a viver o momento presente e para memória futura.

Guardo a imagem do Papa solitário, a atravessar a praça de São Pedro deserta, debaixo de chuva, como quem leva sobre si o peso do sofrimento do mundo, e guardo também a imagem impressionante do Crucifixo sobre o qual caía a chuva e evocava as chagas do lado do Crucificado e da humanidade. E ainda as palavras proféticas do Papa: "Estamos todos na mesma barca. Ou nos salvamos todos ou nos afundamos".

[Sobre como enfrenta a Igreja esta pandemia], respondo com as palavras do Papa indicadoras do rumo a seguir pela Igreja: "À pandemia do vírus queremos responder com a universalidade da oração, da compaixão e da ternura. Permaneçamos unidos. Façamos sentir a nossa proximidade às pessoas sós e provadas… Proximidade a todos… Todos somos importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, todos necessitados de nos confortar mutuamente".

"A pandemia é um drama demasiado forte para que alguém ou alguma instituição possa dizer que está à altura para enfrentar os seus efeitos"

por D. Virgílio Antunes, Bispo de Coimbra

Há gestos que valem por mil palavras, como é o caso do que foi protagonizado pelo Papa Francisco na Praça de São Pedro, no auge da pandemia da covid-19. A humanidade estava como que suspensa entre o céu e a terra, entre a esperança e o desespero, uma espécie de suspensão do presente para ver como seria o futuro. Aquela paragem no tempo, aquele silêncio fecundo e aquela dor sentida foram materializados na convergência para um lugar e numa pessoa. A humanidade calou e chorou como nunca tinha acontecido de forma tão visível e palpável, graças à comunicação social que fez sintonizar em direto as emoções de cada um em comunhão com as emoções de todos os outros. O lugar com uma carga histórica tremenda, o crucifixo como sinal do amor de Deus e do amor humano, como sinal da vida que se dá e se recebe, como sinal de sofrimento, de morte e de esperança de ressurreição, acolheu efetivamente o peso de toda a humanidade. Foi um sinal sublime.

Desse dia memorável todos guardamos o silêncio como atitude fundamental diante do mistério que nos envolve. Guardamos as muitas interrogações que povoam a nossa mente e que, ali, convergiram para uma única questão, a do sentido do que somos. Guardo também a certeza de que em Jesus Cristo encontramos o horizonte de leitura e compreensão do mundo, da humanidade e da vida, como dom tão rica e tão frágil. Guardo ainda a memória da solidariedade e comunhão, como uma realidade, que ali aconteceu, e como um sonho que tem de perdurar para sempre. Alegrei-me com o vislumbre de fraternidade humana universal, que ganhou novo ânimo e ancorada na força de Deus.

A pandemia é um drama demasiado forte para que alguém ou alguma instituição possa dizer que está à altura para enfrentar os seus efeitos. Estamos todos à procura de saídas que tenham em conta as várias dimensões: pessoal, familiar, social, laboral, económico-financeira, espiritual… As palavras do Papa Francisco, que têm sido sempre de solidariedade para com todos e de esperança no meio da catástrofe, calaram fundo na humanidade. Não foi simplesmente uma voz ao lado de outras, mas foi "a voz", pela autoridade moral reconhecida, pelos fundamentos humanos e teológicos, por tocar o coração das pessoas e as ajudar a encontrarem caminhos de resposta às suas mais sérias interrogações. A palavra do Papa foi portadora de serenidade e paz. A Igreja recorre ao património bíblico, à palavra do Papa, ao património espiritual e à proximidade com as pessoas nas muitas comunidades. Sente o dever de estar com todos, com um coração aberto em gestos pequenos, mas significativos para cada um e em cada situação.

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