Para os cerca de 25% de portugueses que estudaram durante o Estado Novo, Camões foi o poeta indómito laureado da grande gesta dos Descobrimentos e, permitam-me o bleibismo, uma seca monumental para quem tinha de dividir as orações dos decassílabos do Canto I dos Lusíadas. Para os outros 75% que já estudaram depois, parece que a situação não melhorou. Resumindo, o Camões poeta é conhecido de toda a gente mas o Camões pessoa é ignorado pela maioria. Para citar uma frase de Almada Negreiros, “a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões!”

Esta ignorância discretamente gritante faz com que esta biografia de Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo, Sorte” devesse ser leitura obrigatória nas escolas. Mas não se trata só de compensar um lapso. Isabel, professora de História e romancista, tem uma narrativa deliciosa que, ao mesmo tempo que esclarece a vida obscura do bardo, nos faz passear pelo século XVI como se lá estivéssemos. Nas situações em que pouco sabemos do que fez - como nos anos de Coimbra - ela conta-nos com qualidade literária o ambiente onde ele decerto viveu, com imagens, sons e cheiros e costumes.

Começando pelo fim, quando Camões morreu reinava D. Sebastião que era muito novo e foi muito influenciado pela entourage ultra-católica e nacionalista dos seus educadores. O rei tinha 20 anos. E estávamos em plena contra-Reforma.

O que me fascinou no livro é que, à falta de dados biográficos concretos, a Professora faz uma descrição muito pormenorizada da época. O leitor sente-se a viver naqueles tempos, como se tivesse embarcado numa máquina do tempo. 

O ponto é que nós não vivemos apenas num contexto, somos também esse contexto. Imagine alguém que queira descrever esta conversa daqui por uns anos sem saber exactamente o que foi dito. Mas sabendo que foi numa esplanada num dia de Agosto, consegue-se dar uma ideia precisa do ambiente da conversa.

É uma extrapolação.

Uma extrapolação fundamentada, digamos assim.

Surpreendeu-me os seus enormes conhecimentos sobre aquela época.

Tive que estudar muito.

Quanto tempo é que demorou a fazer o livro?

Cinco anos. Tive a vantagem do confinamento da pandemia, que me proporcionou mais tempo. Não deixei de dar aulas, mas com um horário reduzido. O confinamento obrigou-me a adiar as viagens, que foram quase todas feitas no ano passado.

"O que levou os portugueses ao Oriente foi uma questão puramente mercantil. Tentar arranjar uma forma de obter as especiarias e as restantes mercadorias do Oriente"

Foi a todos os sítios onde o Camões esteve?

Fui a Goa, à ilha de Moçambique, só não fui a Macau por falta de tempo e porque eles desconfinaram muito tarde. Pensei que seria útil, mas não absolutamente imprescindível. Estamos a falar de viagens que implicam muito tempo e um grande investimento pessoal. Em Portugal, as biografias não costumam ser financiadas. Mesmo assim tive o apoio, que foi muito importante, da Fundação Oriente e do Instituto Camões. 

A Professora dá uma ideia do Oriente na época do Camões completamente diferente dos que nos foi ensinado na escola - eu estudei antes do 25 de Abril. Os portugueses realmente eram uns bandidos, andavam na pirataria. Basicamente, o que queriam era roubar os muçulmanos diretamente, para prejudicar os venezianos indiretamente e assim ficar com os benefícios do mercado das especiarias.

Nós éramos bandidos no meio de bandidos. Há duas formas de viajar, uma no sentido físico, e ainda hoje acho que ao ir-se à ilha de Moçambique, ou ir à velha Goa, se colhe muito da atmosfera dos lugares na época. Pode ser muito produtivo não só em termos da reconstituição desses ambientes mas também em termos de informação geográfica. Depois há outra forma de viajar que é ler as descrições da época. E há muitas, escritas tanto por portugueses como por estrangeiros.

E, de facto, o que levou os portugueses ao Oriente foi uma questão puramente mercantil. Tentar arranjar uma forma de obter as especiarias e as restantes mercadorias do Oriente de uma forma direta e que não implicasse a passagem por Veneza.

Há três teorias sobre as razões da nossa expansão marítima. Uma é a expansão da cristandade, que me parece uma desculpa moral.

Isso era o espírito da época, que legitimava o resto.

"Camões era temperamental, fervia em pouca água e não tinha dificuldade nenhuma em envolver-se numa disputa"

O Infante D. Henrique era esclavagista, negociava o que conseguia, inclusive escravos. Então, a outra teoria é a comercial, com o objetivo de retirar a Veneza o exclusivo do tráfego do Oriente para a Europa. Partiu-se do princípio - não se sabia, mas havia uma ideia - de que seria possível contornar a África. E, finalmente, há a teoria de que queríamos expandir-nos para fora do continente e criar um Império onde ainda havia espaço disponível. O facto é que tínhamos apenas dois milhões de habitantes, o que não chegava para criar um Império tão vasto.

Pois, não chegava. A ideia era estabelecer um conjunto de feitorias e fortalezas que permitisse controlar o tráfico sem ter território. E foi o que fizemos. O primeiro Vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida, até era completamente contra o envio de muitos homens e grande quantidade de armamento. Foi Afonso de Albuquerque que inverteu essa tendência, começando logo por conquistar Goa, que a partir daí se tornou a capital da Ásia Portuguesa.

E é verdade que descobrimos o Brasil por acaso, ao fazer a rota para a Índia?

Nisso eu não sou especialista, mas é muito provável. Entre as várias especialidades que tive de aprender sobre o século XVI, como o armamento, a teoria da guerra, botânica, geografia, náutica… Uma coisa que aprendi é que éramos bons marinheiros, sem dúvida. Em termos de navegação demos cartas, e aprendemos a lidar com as monções, o período do ano mais favorável para fazer as viagens - e a determinada altura percebemos que chegando à latitude do arquipélago de Cabo Verde, se fizéssemos uma mudança de rota, a que eles chamavam a derrota, para o lado do Brasil, depois abordava-se com mais facilidade o Cabo. E terá sido num desses desvios que se chegou ao Brasil. E é provável porque isso acontecia volta e meia com as naus que seguiam a carreira da Índia.

"Camões publica sátiras e poemas, fortemente críticos, a mostrar que todos são mais ou menos desonestos e que há um sistema de corrupção, de ganância e de peculato que cada um pratica como pode"

E daí o tratado de Tordesilhas.

E daí o tratado de Tordesilhas. O nosso D. João II, que realmente era um génio, um rei extraordinário, muito astutamente fez questão de que a linha divisória incluísse aquilo que depois veio a ser uma parte do Brasil.

Agora, outra coisa que a Professora descreve e que me surpreendeu foi a maneira como nós combatíamos. Atacávamos ao molhe, cada um por si e Deus por todos. Não havia tática, porque também não havia exército permanente.

Pois não. Normalmente os nobres comandavam - uma nobreza de armas com experiência militar, que ia para o Oriente não só para melhorar o currículo e o prestígio mas também também aumentar a sua riqueza. Depois, servindo sob o seu comando, havia homens com experiência militar, como o próprio Camões, que tinha lutado no Norte de África, mas também havia pessoas sem qualquer tipo de experiência militar. Há vários relatos da época, desde os dos nobres e dos cronistas, como descrições não oficiais a que recorri, porque são credíveis, concordantes que nem sempre as nossas investidas eram muito organizadas e disciplinadas. Há mesmo um soldado da Índia, mais ou menos contemporâneo do Camões, que faz um relato um bocadinho enviesado, porque percebemos que é muito crítico, e que diz que quando os batéis levavam os soldados à praia do território que era para conquistar, corriam desordenadamente em todas as direcções, e quando vencíamos era por acaso. 

Os outros ainda eram piores, não é?

Sim. Porque nós tínhamos armamento evoluído para a altura. Há, por exemplo, uma expedição militar em que Camões garantidamente participou, logo que chegou à Índia, em 1553, que ele descreve em verso. Depois, quando comparamos a poesia dele com as cónicas Décadas da Asia  de João de Barros e Diogo do Couto, conseguimos perceber que ele esteve lá, e é ao contrário, o desembarque e a investida são bem planeados, mas também vemos que o inimigo não tinha hipótese nenhuma, porque invadiram umas ilhotas onde os habitantes só dispõem de arcos e flechas, e os portugueses já tinham armas muito mais sofisticadas.

"Entendo os Lusíadas como uma espécie de apelo ao rei. (...) Escritos para redireccionar o rei na linha certa, quase como as obras que existiam na época que eram os “espelhos dos príncipes”, feitas para os educar, a apontar o caminho certo"

É interessante que o arco e flecha é a arma mais primitiva. É anterior à lança. Para lá da pedrada, foi a primeira arma utilizada nos conflitos entre tribos.

Fortuna, caso, tempo e sorte
Fortuna, caso, tempo e sorte Fortuna, caso, tempo e sorte, Camões créditos: 24

Mas então, afinal de contas, o Camões era um brigão que, por acaso, também foi o nosso maior poeta, ou foi o nosso maior poeta que por acaso também era um brigão?

Bem, apesar dos seus defeitos de temperamento, era alguém com caráter e, sobretudo, com capacidade empatia, que se nota até na forma como vê as mulheres e numa relação com elas capaz de evoluir ao longo da vida e de aprender e melhorar-se. Agora, sem dúvida - e nisso não há qualquer interpretação da minha parte e todos os seus contemporâneos o admitem - era temperamental, fervia em pouca água, não tinha dificuldade nenhuma em envolver-se numa disputa - um brigão. Ele próprio se vangloriava disso. Há uma carta em prosa onde diz que nunca ninguém lhe viu os calcanhares e ele já viu os calcanhares de muita gente. E isto foi escrito na Índia, numa altura em que já tinha sido preso, já tinha suportado as amarguras da prisão do Tronco de Lisboa, já tinha escapado por pouco de embarcar para a Índia, e mesmo assim continuava a vangloriar-se. Aliás, nessa carta a primeira coisa que ele conta é que continuava a viver entre desordeiros e tinha sido padrinho numa disputa.

Pode dizer-se que ele pertencia à pequena nobreza, ou era arraia miúda? O que seria a baixa burguesia de hoje?

São conceitos que para nós são difíceis de perceber, mas na época considerava-se que a nobreza tinha seis graus, que iam desde a baixa nobreza à alta fidalguia. E Camões era nobre, de facto, tinha origens nobres, só que estamos a falar de uma nobreza sem título nobiliárquico - não era conde, não era duque - e sem propriedades. Ele sabe que descende de um nobre galego, mas dos filhos segundos, aqueles que não herdam nem património, nem título. Assim, quando chegamos à geração de Camões, temos um nobre orgulhoso das suas origens, porque havia essa consciência de classe, mas sem bens.

Quer dizer, não era um plebeu.

Não era um plebeu. Não lhe passaria pela cabeça, por exemplo, tornar-se mercador no Oriente e enriquecer à custa de uma atividade mercantil. Isso seria indigno porque era um nobre de armas. Só que estamos a falar duma nobreza empobrecida cuja única riqueza era a consciência aristocrática e uma série de relações de parentesco, que hoje para nós não valeriam nada, mas que na altura tinha algum significado. Isso permitiria, por exemplo, uma situação que durante muito tempo se achou impossível e contraditória, que ele fosse um pé rapado mas tivesse acesso a alguns salões de grandes fidalgos de Lisboa.

"O caminho que Camões aponta é inequívoco, está escrito nos Lusíadas com todas as letras: o Norte de África. Ali é que é a guerra justa e santa, a guerra em que ele participou e de onde trouxe uma recordação honrosa"

Realmente na época estes laços de parentesco, embora afastados, tinham a sua importância.

E essa convenção de que os fidalgos, mesmo dos mais baixos escalões, não podiam fazer negócios, era mesmo assim?

É nesta época que a mentalidade começa a alterar-se, mas ainda era pejorativo dedicar-se ao comércio. Os congéneres do rei D. Manuel, que foi o rei mais rico do seu tempo, chamavam-lhe o “rei merceeiro”.

Pois, ele foi o primeiro rei a admitir que o comércio era o que mais interessava ao reino. Foi ele que abandonou o castelo de São Jorge e mandou construir o palácio real junto ao rio, ao pé da alfândega, do cais do Alfeite e da rua dos mercadores. Queria estar de olho nos negócios.

Segundo os cronistas - um, acho que é o Gaspar Correia, que diz que o rei gostava tanto de ver as idas e vindas dos barcos e a descarga das mercadorias que chegava a dormir em cima dos armazéns.

É interessante essa contradição: os nobres não podiam dedicar-se ao comércio, mas queriam enriquecer e faziam negociatas.

Na Índia, fazíamos o seguinte: o vice-Rei tinha como função principal arrecadar todos os anos uma carga de pimenta, das outras especiarias e riquezas para mandar para o Reino. Isso era obtido localmente mas também combatendo as naus turcas para as roubar e deixar o mar livre para as nossas.

"Uma coisa que não se diz nas escolas é que os Lusíadas não estavam destinados a ter só dez cantos. Ele queria fazer outros. Queria embarcar com o rei para Alcácer-Quibir. Não vai porque está velho e enfraquecido, já anda de muletas, e o rei leva outro poeta, mas Camões em todo o caso fica em Lisboa a escrever a continuação do poema. Quando chegam as notícias do descalabro, rasga tudo."

Portanto os nobres ganhavam nas comissões sobre as taxas.

Isso mesmo. Não comerciavam mas aplicavam taxas, e depois havia um sistema em que recebiam proporcionalmente ao seu cargo uma parte legalmente, e outra por fora.

Quer dizer, eram piores do que os comerciantes; viviam de os explorar.

Camões percebe isso e publica sátiras e poemas fortemente críticos, a mostrar que todos são mais ou menos desonestos e que há um sistema de corrupção, de ganância e de peculato que cada um pratica como pode.

Há uma contradição no Camões. Não estou a falar na dicotomia entre poeta e brigão. A contradição é que ele canta Portugal como sendo um país de heróis impolutos e corajosos, mas tinha a perfeita noção de que isso não era verdade. A sua experiência “colonial” foi péssima, só se deu com pessoas horríveis, teve questões horríveis…

Viu a vida dos pobres soldados, viveu na miséria…

Havia coisas que eu não sabia, tinham de comprar a própria farda e as armas, tinham de pagar para ser soldados. Em termos práticos, iam obrigados…

Só recebiam se combatessem. Não tinham alojamento…

Isso foi assim até quando? Até ao Marquês de Pombal, no século XVIII?

Isso já não sei. Mas, voltando à contradição de que fala, na forma como vejo, colocando-a no contexto da vida de Camões, eu entendo os Lusíadas como uma espécie de apelo ao rei. Isto em todos os sentidos: o passado, glorioso, é celebrado. O presente é criticado, à luz desse passado. E Camões é implacável na crítica; todos os finais dos dez cantos terminam com um remoque, que se vai adensando até ao final. Camões critica os juízes que não praticam a Justiça, critica os conselheiros do rei, critica os fidalgos que vivem à sombra dos seus pergaminhos e não fazem nada, critica os cléricos…

Mas não deixa de ser um patriota.

Os Lusíadas são escritos para redireccionar o rei na linha certa, quase como as obras que existiam na época que eram os “espelhos dos príncipes”, feitas para os educar, a apontar o caminho certo. E o caminho que Camões aponta é inequívoco, está escrito nos Lusíadas com todas as letras: o Norte de África. Ali é que é a guerra justa e santa, a guerra em que ele participou e de onde trouxe uma recordação honrosa. E, uma coisa que não se diz nas escolas - pelo menos a mim não me disseram - e o comum dos leitores não sabe, é que os Lusíadas não estavam destinados a ter só dez cantos. O alvará assinado pelo rei que autoriza a publicação da obra diz muito taxativamente que a autorização é para aqueles dez cantos e para os mais que se seguirem.

"Temos de ver a diferença entre a lenda e a realidade. Nós crescemos todos com a imagem do Camões a segurar um rolo de papel numa mão e a nadar crawl. (..) É muito provável que os sobreviventes tenham deitado mão aos seus pertences"

Portanto ele iria escrever outros.

Ele queria fazer outros. Queria embarcar com o rei para Alcácer-Quibir. Oferece-se para isso, da forma mais literal possível. Há uma parte nos Lusíadas em que ele diz que o rei precisa disto, e disto e ele tem os requisitos todos. Não vai porque está velho e enfraquecido, já anda de muletas, e o rei leva outro poeta, mas Camões em todo o caso fica em Lisboa a escrever a continuação do poema. Quando chegam as notícias do descalabro, rasga tudo.

Uma coisa que sempre me intrigou é como todas aquelas referências à Cultura Clássica e aos deuses gregos passou pela Inquisição. Porque a Igreja achava a Cultura Clássica obscena, impura.

Quando termina o Concílio de Trento, a reacção da Contra-Reforma católica, vem reforçado, através da legislação, que há matérias que são proibidas. A mitologia pagã e o erotismo seriam duas delas.

Mas a mitologia pagã está presente em toda a obra, ele está sempre a ir buscar os deuses gregos.

Aí eu acho que o Camões e o sensor, Frei Bartolomeu Ferreira, se entendem. Há uma empatia entre eles que gera um acordo de cavalheiros. Dizem exatamente o mesmo. O autor no corpo do texto, e o censor no alvará. Se eles mantiverem aquela versão e nenhum se desdisser, não há ponta por onde se lhe pegue. Então o sensor diz assim: o poeta usa deuses e fábulas, mas tudo isto é poesia e fingimento. E há uma estrofe no Canto X em que a própria deusa Tétris diz “mas nós somos só poesia e fingimento”. Como os dois se puseram de acordo, o poeta pode dizer que está autorizado pelo revedor, e o revedor diz que leu com atenção - como os censores, ou revedores, eram obrigados a fazer -, falou com o autor e ele disse-lhe que era só poesia e fingimento.

Sabe-se alguma coisa sobre esse revedor, era um homem culto, com bom gosto literário. Aquele alvará é um documento legal, não é uma crítica literária, mas o revedor mostra muito engenho. Não era suposto fazer uma apreciação estética, mas ele afirma que o autor tem muito talento.

Eu não duvido que o original fosse muito mais problemático, nas partes do erotismo e da violência, porque há em vários arquivos versões manuscritas dos Lusíadas com diferenças. Foram escritos ao longo de muitos anos.

Pelo que escreve, não se pode dizer que haja uma primeira edição com o texto fixado. Era composto à mão com caracteres móveis e durante a impressão iam-se corrigindo gralhas, sem deitar fora as que já estavam impressas.

Em todos os livros da época, só os Lusíadas é que levantam essa celeuma. Nas obras contemporâneas era habitual não haver exemplares iguais.

Para já, segundo diz, há duas versões dessa edição, uma com uma gravura de um pelicano virado para a esquerda e outra virado para a esquerda. O que achei surpreendente é que durante a impressão das páginas - a folha era colocada num prelo e prensada individualmente - às vezes os tipos saltavam e eles punham outra vez, sem ser no sítio certo, mas a impressão continuava.

E outras coisas. Se alguém se apercebesse de um erro, corrigia dali para a frente, mas todas as folhas impressas antes não eram deitadas fora. O papel era muito caro, nem o próprio autor esperava que as folhas com erros fossem para o lixo. Quando se cosia um exemplar, esse exemplar era único. Os especialistas que fizeram esse confronto constataram que os exemplares que sobreviveram da edição de 1572 são todos diferentes uns dos outros. Há cerca de cinquenta. Quando a questão de haver uma edição pirateada parecia estar resolvida, há quem tenha descoberto nalguns exemplares papel com marca de água de mil quinhentos e oitenta e tal. Esses têm de ser contrafeitos.

"A dada altura, acredito que a miséria de Camões fosse tão evidente que ninguém colocou obstáculos a que voltasse a Portugal. Nada tinha resultado, a comissão militar acabara, o cargo civil não trouxe resultados, portanto voltar era a única solução"

Quando sai a chamada “edição dos Piscos”, em 1584, que é a segunda edição oficial, com o mesmo revedor, mas muito mais pressionado pelo rei espanhol e pela Inquisição, o parecer é muito mais lacónico, várias estâncias da Ilha dos Amores são expurgadas e com alguns “retoques”. Como estávamos numa monarquia dual, não se podia dizer mal dos castelhanhos, e então há uma parte sobre o Nuno Álvares Pereira que deixa de ser uma coisa e passa a ser outra.

Pior do que a Inquisição e os castelhanos, só o Salazar. A versão que existia quando eu estudei era bastante alterada. Por exemplo, nada dos cantos IX e X - a Ilha dos Amores. 

Essa Edição dos Piscos não é fiel à primeira. A única forma de reimprimir a primeira edição era fazê-la passar pela de 1572, que estava autorizada. E o que deve ter acontecido é que alguém quis lucrar com essa primeira edição e por isso simulou-a.

Ele não ganhou nada com os direitos dos Lusíadas, pois não?

Acho que não. Ele não tinha dinheiro para a impressão, acredito que tenha sido patrocinada pelo D. Manuel de Portugal, da família do Conde de Vimioso. Há um poema que eu acho claríssimo, escrito a um mecenas a agradecer a publicação de um poema heróico que só pode ser os Lusíadas.

E depois, falando das motivações dos Lusíadas, Camões escreve o poema também para desbloquear a sua situação financeira. Não estou a dizer que foi a motivação principal. O que um soldado reformado fazia quando vinha do Oriente era apresentar-se e requerer uma tença, ou a atribuição dum cargo. O amigo de Camões, o Diogo do Couto, que regressa com ele, mas era mais novo, só tinha uma intenção, requerer um cargo e voltar para o Oriente. Eles vinham cá para ser promovidos. 

Camões recebe um cargo, e nós sabemos isso por um documento de revalidação da tença, só que não volta ao Oriente porque já não tinha hipóteses. Normalmente essa atribuição era puramente nominal e não havia cargos suficientes para os soldados que regressavam. Neste caso, a nomeação para a feitoria de Chaul era revertida numa tença. Camões regressa em 1569 e só depois da publicação dos Lusíadas é que recebe a tença.

Acredito que os Lusíadas tenham sido um argumento adicional. O documento diz que ele vai receber a tença pelos serviços prestados na Índia, pelos que eventualmente vier a prestar e por causa do livro, que foi um comprovativo adicional dos serviços prestados.

“Mais do que elogiar o passado, os Lusíadas pretendiam incentivar o rei D. Sebastião para um heróico futuro.”

Um outro assunto que merece reflexão é a história do naufrágio. Não me parece credível que o que ele tinha escrito na altura, que era em papel com tinta de negro de carvão, resistisse a um banho. E depois há o pormenor da amante chinesa que teria deixado afogar para salvar os Lusíadas.

Atendendo ao temperamento do Camões, por muito que ele achasse que o poema era fantástico, e que aliás ainda estava numa fase muito incompleta, acho duvidoso que ele preferisse salvar o documento a uma pessoa a quem queria bem. E depois há a questão de não ser possível que o manuscrito tenha sobrevivido ao naufrágio de uma forma legível.  Só se estivesse num Tupperware.

Temos de ver aí a diferença entre a lenda e a realidade. Nós crescemos todos com a imagem do Camões a segurar um rolo de papel numa mão e a nadar crawl. Os biógrafos dizem que ele estava agarrado a uma tábua; podia ser um bote, um pedaço de madeira, e aí é muito provável que os sobreviventes tenham deitado mão aos seus pertences. E não me custa a crer, enquanto autora, que ele tivesse pegado nos seus papéis. E também há provas indirectas: o facto de ele não ter salvado a rapariga e de se sentir culpado por isso, não estou a ver uma questão de preferência. No meio da confusão, como é normal nessas situações, uns morrem, outros não, e normalmente os que sobrevivem acalentam durante algum tempo um sentimento de culpa.

E quanto aos papéis sobreviverem à água?

Bem, se ele consegue escapar numa tábua, dependendo do tamanho dela, é discutível.

Mas ele com certeza que se lembrava de cor do que tinha escrito. Sou mais a favor dessa possibilidade.

Também não duvido disso. Camões tem uma memória portentosa, e em Goa já havia cópias, como aliás existem cópias de parte dos Lusíadas em várias fases.

Quando ele chega a Goa, depois dum resgate que não sabemos quanto tempo demorou, mas deve ter sido demorado. Há quem diga que apareceu um barco português ou amigo que acabou por levar os náufragos. Ele realmente não tinha conseguido aquilo que era suposto ter, e que era o mais importante. Quando esteve em Macau exerceu o cargo de Provedor dos Defuntos. Era um cargo burocrático, uma espécie de executor testamentário. Inventariar os bens, levá-los a leilão, entregar a moeda em Goa com o treslado do inventário e receber uma percentagem sobre o valor.

Isso é daqueles cargos que se está mesmo a ver que se prestava a todas as aldrabices.

Basta ler a Pregrinação de Fernão Mendes Pinto, que conta a história de um provedor completamente desonesto que expoliou os herdeiros de um arménio convertido ao cristianismo. Portanto, quando o Camões chega do naufrágio e diz que não tem nada porque naufragou, não havia provas dos naufrágios - não era evidente, e os naufrágios fraudulentos eram outra forma das pessoas conseguirem roubar. Pedem-lhe contas e então ele é suspeito de ter roubado e preso. A dada altura, acredito que a miséria dele fosse tão evidente que ninguém colocou obstáculos a que voltasse a Portugal. Nada tinha resultado, a comissão militar acabara, o cargo civil não trouxe resultados, portanto voltar era a única solução.

Menciona a História Trágico-Marítima e eu já tinha lido sobre a maneira como os portugueses enchiam os barcos de tal maneira que muitos afundavam por excesso de carga. Além disso, nós nunca fomos de fazer manutenção de equipamentos -  somos assim até hoje. Em termos marítimos, uma superioridade dos ingleses vinha de manterem os navios. Ao fim de uma viagem ou duas iam para a doca seca para ser verificados. Nós, portugueses, deixavamo-los degradarem-se e depois implorávamos à Virgem quando estavam a perigo no mar alto. Somos bons é a fazer remendos de improviso.

Os naufrágios eram um problema constante e os testemunhos são recorrentes: tanto sobre a sobrecarga dos navios, como a má distribuição do peso. Entretive-me a ler as cartas dum feitor do vice-Rei D. João de Castro que falavam constantemente das vezes em que tinha de mandar retirar as cargas de distribui-las novamente.

Já que fala na História Trágico Marítima, o tristemente célebre naufrágio dos Sepúlvedas, é um caso desses. É uma narrativa trágica, que dava um filme, mas é mais uma daquelas histórias de ganância; o galeão já parte de Cochim com excesso de carga e mais pessoas do que era suposto. Depois saem fora do calendário, o que era quase sempre fatal.

"Filipe I de Portugal era um rei extremamente inteligente e há um biógrafo que conta que  quando o rei chegou a Lisboa tentou informar-se do paradeiro de Camões, e ficou desiludido quando soube que ele tinha morrido. Talvez porque pensasse em utilizá-lo."

Tinham de obedecer ao ciclo das monções, não era? Aliás, a noção do tempo era completamente diferente da nossa, uma viagem de seis meses era normal.

Isso é quando corria bem. A armada de Camões, tinha quatro navios, um queimou-se no porto de Lisboa, já não partiu, a outra nau teve problemas técnicos e arribou, istou é, voltou a Lisboa e partiu no ano seguinte. Das duas que seguiram, uma desviou-se demais ao fazer a derrota e foi parar ao Brasil, e só a dele conseguiu chegar à Índia dentro do previsto.

Eu falei-lhe na tese do “Império dos Pardais, do João Paulo Oliveira e Costa, acho que foi isso mesmo que aconteceu. As águias da Europa lutavam entre si e os pardais, não podendo competir, lançaram-se para fora do continente. Quando os países da Europa se aperceberam das riquezas do mundo que havia por explorar, os portugueses perderam as hipóteses, porque não tinham meios nem população suficiente. Aliás, conseguiram uma situação inacreditável, que foi arruinarem-se com as Descobertas. Os ingleses enriqueceram com a exploração marítima, e acho que esta diferença diz tudo. 

Os ingleses tinham aquele modelo das companhias; a das Índias Orientais, da Baia de Hudson e a Royal African. As companhias é que realmente exploravam as colónias, selvaticamente aliás, e a Coroa limitava-se a suprir soldados e burocratas. Mesmo assim, na Índia havia mais militares pagos pela Companhia do que pela Coroa.

Quanto a nós, tivemos um modelo de colonização que em vez de nos enriquecer, nos arruinou. Quando chegamos aos Filipes (1580) Portugal estava sem fundos e despovoado.

Pois estava. E nessa época, além da crescente hostilidade dos povos orientais, havia a concorrência dos Holandeses. Fazíamos tudo à custa de empréstimos.

Os nosso inimigos históricos eram os holandess, na verdade. Tinham uma religião oposta, eram muito mais mercatilistas e extremamente liberais. Quando os judeus foram expulsos de Portugal, fixaram-se na Holanda. Foi o caso dos pais do Spinoza, um dos filósofos mais importantes do Ocidente. Por acaso até foi expulso da sinagoga e excumungado, mas o facto é que não o mataram nem prenderam - deixaram-no escrever à vontade.

Assim que os espanhóis ocuparam Portugal - apesar de, pelo tratado, Portugal continuasse a ser o dono das suas feitorias - os holandeses sentiram-se no direito de atacar os territórios portugueses. Os nossos grandes inimigos no Brasil e no Oriente, Java, foram os holandeses.

Aliás os espanhóis não nos trataram mal durante os 60 anos de ocupação. O Filipe II viveu um tempo em Lisboa, a convite dos comerciantes da cidade, que se juntaram para lhe enviar presentes.

E houve uma confraria, acho que dos sapateiros, que decorou a cidade com versos dos Lusíadas! A verdade é que o Filipe I de Portugal era um rei extremamente inteligente e há um biógrafo que conta que  quando o rei chegou a Lisboa tentou informar-se do paradeiro de Camões, e ficou desiludido quando soube que ele tinha morrido. Talvez porque pensasse em utilizá-lo.

"Se me convidassem - o que eu não aceitaria - para ser um daqueles ilustres comentadores que vão aos canais de notícias falar da actualidade, acho que me bastava levar os Lusíadas"

Há uma história, que não sei se é apócrifa, que a Catalunha se revoltou, mais ou menos, ao mesmo tempo de Portugal e que o Filipe IV de Espanha preferiu reprimir a Catalunha, dando-nos assim força para vencer as incursões castelhanas no tempo do D. João IV.

Já ouvi falar nessa história, sim, mas não me documentei.

Bem, eu tirei duas conclusões da leitura do seu livro. Uma, é que é muito bem escrito. Sendo uma pesquisa histórica, lê-se como um romance. Normalmente as biografias são literariamente muito desinteressantes porque são feitas por académicos e não por romancistas. A outra satisfação veio da descrição dos ambientes, não só com as imagens, mas também com os sons e os cheiros. Senti-me lá dentro.

Finalmente, fiquei a conhecer quem foi realmente Camões, fora da hagiografia panegírica que me ensinaram. Foi sobretudo um sofredor, que soube tirar beleza desse sofrimento.

Foi um homem do seu tempo, até nos preconceitos, mas era uma pessoa extremamente inteligente, extremamente lúcida, capaz de reflectir sobre a complexidade da sua época e a sua própria complexidade interior - além de ser um autor e um poeta genial.

Finalmente, a última conclusão da leitura do seu livro, é que nós não mudámos nada.

Nada!

Olhe, se me convidassem - o que eu não aceitaria - para ser um daqueles ilustres comentadores que vão aos canais de notícias falar da actualidade, acho que me bastava levar os Lusíadas e, para qualquer incidente da política nacional, ou um conflito no mundo, ou alguma questão social, eu ia conseguir encontrar alguma estância dos Lusíadas que se adequasse perfeitamente.

É impressionante, a lucidez de Camões; ele consegue pôr o dedo na ferida da própria natureza humana, que cinco séculos depois, mudando o contexto, não é assim tão diferente. Há  uma contradição na natureza dos portugueses que nós não sabemos explicar, mas que é evidente.