Joacine Moreira veio da Guiné-Bissau para Portugal com oito anos, para estudar. Sempre pensou que regressaria, mas quando chegou o tempo aquela já não era a sua terra, a Guiné que tinha na memória. Licenciou-se em História Moderna e Contemporânea, na vertente de Gestão e Animação de Bens Culturais, e doutorou-se em Estudos Africanos no ISCTE.
Interessa-se pelas questões de género, do desenvolvimento e dos movimentos sociais e cívicos, e é cabeça-de-lista do Livre por Lisboa às legislativas, um partido que parece feito à sua medida pelas ideias que defende, como a igualdade e a justiça social. Estes são temas centrais, "pois deles dependem a liberdade, a ecologia e a democracia plena", afirma.
Joacine Katar Moreira tem a desigualdade na pele. Estudou num colégio interno, tem onze irmãos, passou por dificuldades económicas e sofre de gaguez profunda - o que a salvou de não deixar os estudos a meio, porque no dia em que foi à faculdade suspender a matrícula por falta de dinheiro, ficou tão nervosa e tão gaga que virou costas e veio embora. Diz que quando a convidam para fazer apresentações públicas pede sempre mais uns minutos, mesmo que não precise de os utilizar; espera que na Assembleia da República também possa ser assim. Afinal, é isso a "igualdade de oportunidades". Foi, sobretudo, sobre este tema que falámos.
Diz-se feminista interseccional, uma destas palavras modernas cujo significado explica mais à frente. Chegou ao SAPO24 com a filha, Anaïs - uma homenagem a Anaïs Nin - uma menina de dois anos que parecem cinco, alegre e mexida. Antes, perguntou se faria diferença - as mães carregam os filhos consigo muito mais que nove meses, sobretudo em altura de férias, quando as alternativas são escassas.
Há quanto tempo está em Portugal?
Desde os meus oito anos. Costumavam perguntar-me de onde era, e respondia sempre: "Sou da Guiné. Vim para Portugal unicamente para estudar e depois vou regressar à minha terra". Andei uma existência inteira a dizer isto, porque foi isso que a minha avó me disse: "Irás agora lá, mas só vais estudar, depois regressas. Só passados uns anos de repetir aquilo, já na universidade e ainda com o objetivo de estudar e regressar, comecei a achar que era hora de alterar as coisas. Porque, efetivamente, eu não era olhada como uma verdadeira guineense pelos guineenses, nem como uma verdadeira africana pelos africanos.
Nunca mais regressou à Guiné?
No último ano da universidade fui à Guiné pela primeira vez em todos estes anos, a achar que ia lá e seria imediatamente uma alegria enorme, uma empatia. Mas foi um choque absoluto, e dei comigo a pensar: "Não vou aguentar viver aqui, não sei o que isto é, não me reconheço em nada aqui". Era óbvio que era um país com imensas dificuldades, um país completamente instável. Isto era óbvio e eu sabia, e era exatamente o que me dava ânimo, a possibilidade de ir auxiliar no desenvolvimento da Guiné Bissau, contribuir para qualquer coisa. Mas foi exatamente o inverso disto: olhei, vi e disse: "Esta não é a minha terra, os meus amigos não estão aqui, a minha mãe não está aqui, os meus irmãos não está aqui".
Regressou. Hoje tem dupla nacionalidade?
Tenho. Mas tenho uma nacionalidade efetiva, real, da minha existência quotidiana, que é a portuguesa, e a seguir uma nacionalidade que é afetiva e emocional, mas que nunca uso, que é a guineense. Foi mais um ato emocional do que um ato administrativo.
"Rejeitar a nacionalidade é um atentado aos direitos humanos"
Pergunto isto porque uma das bandeiras do Livre é pedir a nacionalidade portuguesa para os que nascem em Portugal...
As pessoas não fazem a menor ideia do que é exigido a um imigrante para que ele obter a nacionalidade ou para que ele possa renovar os seus documentos. É preciso autorização de residência, visto de trabalho, um conjunto de papéis. Para um imigrante conseguir o visto de trabalho, precisava de ter um contrato de trabalho, mas conseguir trabalho, as empresas pediam-lhe o visto de trabalho. Foi assim anos e anos. E havia algumas empresas, algumas fábricas, que usavam estas exigências absurdas do Estado para empregarem imigrantes, numa altura em que o ordenado mínimo era 385 euros. Era este valor que as pessoas recebiam por trabalhar onze ou doze horas por dia em fábricas, numa situação dificílima.
A sua filha nasceu em Portugal?
Sim.
Tem nacionalidade portuguesa?
Tem nacionalidade portuguesa porque a mãe e o pai têm nacionalidade portuguesa. Para o Livre é inadmissível que alguém que nasça em Portugal não tenha direito à nacionalidade portuguesa. Se eu fosse uma imigrante com autorização de residência a trabalhar regularmente em Portugal há um ou dois, a Anaïs não era neste momento uma cidadã de nacionalidade portuguesa, teria de esperar até aos 18 anos. Seria tratada como imigrante e estrangeira a sua existência inteira para, aos 18 anos, adquirir nacionalidade, usando documentação dos países de origem da mãe e do pai, onde ela nunca esteve. E o que temos hoje já é resultado das reivindicações de ativistas afro-descendentes, porque antes era mais difícil ainda. E os euros que isto envolve...
"O Estado aceita receber todos os euros de indivíduos que, a seguir, o próprio Estado considera ilegais."
A ideia é não fazer depender a atribuição da nacionalidade da situação dos pais?
A ideia do Livre é independentizar as crianças da situação dos pais. Além de que, na minha ótica, rejeitar a nacionalidade é um atentado aos direitos humanos, é rejeitar que alguém tenha a sua cidadania no espaço onde nasceu, onde estuda, onde mora. E ainda isto: houve alguns imigrantes que antes de 1981 eram nacionais e que após 1981 perderam a nacionalidade porque a legislação foi alterada, e os que nasceram entre 1981 e 1996 foram prejudicados. E isto é algo revoltante, e o Estado não pode perpetuar isto. Mas esta é uma questão independente da esquerda ou da direita, e os atuais partidos com assento parlamentar não auxiliaram na alteração da lei da nacionalidade para que quem nasce em Portugal seja português.
Em relação aos imigrantes há ainda outra reivindicação do Livre, que se prende com as questões da nacionalidade: o voto.
Sim, faz parte do nosso programa destas eleições o direito de voto para os imigrantes. É que se há algo que o Estado não rejeita a indivíduo algum, independentemente de estar indocumentado ou não, é o numero de contribuinte. O Estado aceita receber todos os euros de indivíduos que, a seguir, o próprio Estado considera ilegais. Durante anos e anos as pessoas trabalham, descontam e a seguir é que obtêm os vistos de trabalho. Depois trabalham mais um ano, dois anos, três anos e então obtêm a autorização de residência. Mais outros anos a descontar e, finalmente, podem adquirir nacionalidade portuguesa. Imagine o investimento que estes imigrantes fazem para pagar impostos, Segurança Social, sempre sem direito nenhum.
Antes de avançar mais no programa do Livre, gostaria que me falasse mais um pouco de si. Sei que estudou num colégio interno, que tem muitos irmãos, mas queria que me contasse a sua história.
É verdade, estudei. E tenho onze irmãos, mas são irmãos uns da parte da minha mãe com o meu padrasto, outros e outras da parte do meu pai com as minhas madrastas [ri]. Sou a única filha da minha mãe e do meu pai. Como era a irmã mais velha, isso fez com que um dos meus objetivos fosse a união dos meus irmãos, independentemente de serem de mãe ou de pai. Hoje todos se tratam como irmãos. E fui uma das que incentivou os meus irmãos a irem para Inglaterra, sou a única cá. Independentemente de estarem na universidade, a fazer mestrados ou terem acabado o 12.º ano e engravidarem. Houve uma época em que eu sabia que isto ia ser algo extremamente difícil para eles e incentivei-os, um a um, a irem para fora.
Vivemos na época do politicamente correto, com algum medo das palavras. Deve dizer-se preto ou negro?
Tem necessariamente que ver com as histórias dos países. Nos Estados Unidos quando se quer ofender usa-se o nigger, porque era a expressão utilizada na época da escravatura para humilhar, reduzir, inferiorizar. Em Portugal é exatamente o inverso: quando se desejava ofender dizia-se: "Ó preto, vai para a tua terra". Na época da escravatura e do tráfico também era assim. Portanto, de geografia para geografia a ótica muda. Na minha ótica, o mais correto é dizer negro, tanto que fundei o Instituto da Mulher Negra, precisamente. Mas entre nós, negros e negras, há legitimidade de nos tratarmos por preto. Mas há quem defenda que não se pode estar a evitar o uso da palavra preto, que o que é absolutamente revolucionário é usá-la, mas com ânimo.
A Joacine é gaga. Muito gaga. Já pensou se for eleita como vai ser com os tempos de antena na Assembleia da República ou em debates televisivos?
[Ri] Não faço a menor ideia. Não sei se há regras para isso. Mas eu, nomeadamente na universidade, nas conferências universitárias, em que são dados oito minutos, um quarto de hora ou vinte minutos para cada interveniente, sucessivamente digo que preciso de um minuto ou dois minutos extra, mesmo que não os utilize [ri]. É uma maneira de mostrar o que é a igualdade: seria ótimo que houvesse essa igualdade se estivéssemos em igualdade de circunstâncias. Não havendo uma igualdade de circunstâncias, a Assembleia da República precisa de ser por excelência o espaço da igualdade, em que, independentemente de gaguejarmos mais, repetirmos mais os "às" ou os "ésses" temos direito de antena.
Sofre com isso ou não?
Sim, sim. Houve anos e épocas em que era uma ansiedade enorme. Era uma ansiedade ir a um minimercado, a um restaurante, a uma instituição em que nos é imediatamente exigida eficiência e uma objetividade enorme. E era imensamente difícil expor as minhas necessidades, as minhas questões, porque a outra pessoa não estava preparada para se relacionar com isto. E se inicialmente a impaciência, o suspirar, o bater com as mãos, o olhar para o lado me revoltava, rapidamente iniciei a achar que não era porque as pessoas não fossem ótimas, impecáveis, mas era eu que necessitava de educá-las, uma a uma. Então, mal eu desatava a gaguejar e a outra pessoa suspirava, eu explicava-lhe: "Não adianta suspirar, porque se suspira enerva-me e fico ainda mais nervosa. E assim, em vez de estar aqui o tempo necessário, fico aqui mais uma hora. E a senhora vai ficar a ouvir-me, porque não me vou embora enquanto a questão não ficar resolvida". Mas também tem a ver com a minha maneira de ser, não entro em desespero imediato, em histeria imediata e não saio magoadíssima e arrasada destas situações. Agora, é obvio que é necessária uma educação para a diversidade.
Quando percebeu que gostava de política e que queria ir mais longe?
Amo analisar as sociedades politicamente. E dentro de cerca de um mês irei editar uma obra que é especificamente sobre as relações político-institucionais na Guiné, mas com enfoque nos homens e nas masculinidades. Isto, porque, inicialmente, a minha investigação universitária tinha uma ótica feminista, com o objetivo de analisar as mulheres e de retirá-las da invisibilidade na História. Mas às tantas optei por objetificar os homens, porque acho um erro enorme andarmos sucessivamente a objetificar as mulheres, a estudar as mulheres, a analisar as mulheres, quando as sociedades são de dominação masculina. O enfoque precisa de ser nos homens, para compreendermos as instabilidades, as violências, as guerras, a falta de organização.
Diz-se feminista. O que é isso de ser feminista?
Não sou unicamente feminista, sou uma feminista interseccional. Há um feminismo que é o feminismo histórico, com um impacto enorme, mas que universalizava as experiências das mulheres ocidentais, e eram estas mulheres ocidentais a imagem e a história do feminismo. Até que, nos Estados Unidos, algumas mulheres afro-americanas começaram a questionar isto. Porque numa época em que para as mulheres brancas era urgente, era uma necessidade ocuparem um espaço público, votarem e trabalharem, as mulheres afro-americanas contrapunham e diziam que se fossem elas a fazer estas reivindicações não iam exigir direito ao trabalho, porque sempre trabalharam. Iam exigir o direito ao descanso. E é esta a origem do feminismo interseccional.
Ou seja, a desigualdade é desigual?
É um facto que somos todas mulheres, é um facto que sofremos com as enormes desigualdades, com a dominação institucional masculina, com o patriarcado, mas é também um facto que há mulheres que sofrem ainda mais do que outras, porque são minoria das minorias étnico-raciais, porque são imigrantes, porque são mulheres da comunidade LGBT, porque são mulheres pobres, porque são mulheres com algum tipo de deficiência. Porque aumentarmos a ideia do que é ser mulher e o movimento feminista tem de parar de universalizar as experiências das mulheres ocidentais como se fossem as experiências que contam, omitindo as necessidades urgentes, imediatas, das outras mulheres, das minorias.
"Os pobres não são uma minoria, minoria são os endinheirados, os milionários, mas a esses nunca damos o nome de minoria"
Vive-se hoje uma "ditadura" das minorias? É possível tratar maiorias e minorais da mesma maneira?
Há um conceito de minoria, e muitas vezes damos nome de minoria a grupos que, afinal, não são necessariamente uma minoria, são uma minoria apenas no que diz respeito ao acesso aos recursos, às mesmas oportunidades. É preciso dar voz às mulheres e às minorias étnicas, sim. Mas as mulheres não são uma minoria, embora sejam normalmente olhadas dessa maneira. Os pobres não são uma minoria, minoria são os endinheirados, os milionários, mas a esses nunca damos o nome de minoria. O que temos de fazer é olhar para alguns setores que estão mais afastados do exercício do poder e da influência, e é a estes que damos o nome de minorias. No que diz respeito às minorias étnico-raciais, também chamamos minoria à comunidade LGBT, e a verdade é que não sabemos, não temos números.
Para terminar a questão das minorias: é a favor das quotas étnicas na Assembleia da República? Porquê?
Não assisti ainda a nenhuma proposta legislativa para a instituição de quotas na Assembleia da República e não entendo a euforia dos debates nas televisões, nas redes sociais. O que esteve em cima da mesa foi a recolha de dados étnico-raciais, que eu e o meu partido consideramos absolutamente fundamentais: o Estado precisa de ter estes elementos para traçar estratégias. A ideia de que alguém se pode ofender é uma desculpa, porque já existe recolha de dados técnico-raciais nos hospitais, nas maternidades, nas escolas. O Estado sabe exatamente em que escolas há determinadas minorias étnicas, e faz ofertas técnico-profissionais em função disso.
O Estado faz escolhas em função disso? Que tipo de escolhas?
No concelho da Amadora foi-me dito na câmara municipal que há um aumento, ou, pelo menos, não tem diminuído a infeção por HIV. Isto é algo que está a reduzir em algumas áreas, mas no concelho da Amadora está a aumentar. Este é um dos concelhos com maior diversidade étnica, importa ao Estado saber qual a origem do problema. O que desejamos, é que estas recolhas de dados étnico-raciais sejam oficiais e sejam feitas no recenseamento, e não por amostragem de oito ou nove. Isto é fundamental para o combate às desigualdades e para se melhoraram as políticas públicas e combater o racismo institucional.
A que chama racismo institucional?
É nas escolas onde há mais indivíduos das minorias étnico-raciais que as ofertas formativas são diferentes das das escolas onde não há essa maioria. E isso acontece. Os meus irmãos que não viviam em bairros sociais foram os que entraram na universidade, e estão em Inglaterra em áreas como Matemática ou a Bioquímica - um dos meus irmãos foi considerado o melhor investigador júnior da sua universidade. Fez toda a sua formação em Portugal, e entrou no ISCTE, em Engenharia das Telecomunicações e Informática, mas como a minha família não tinha recursos económicos, todos tiveram de estudar e trabalhar ao mesmo tempo.
A Joacine também?
Exatamente. Tive um apoio económico do serviço de ação social, 100 euros por mês por ano, 150 euros no ano seguinte e 220 euros no último ano.
Voltemos às escolas...
Na escola de Alverca, onde alguns os meus irmãos estiveram e onde eu estive, havia a opção de técnico de informática, que dava o acesso ao 12.º ano. E este meu irmão, que é especialista em computadores, enfiou-se ali e a seguir entrou para a universidade. Mas as minhas irmãs do Vale da Amoreira, um bairro social da margem sul, não tinham a opção de técnico de informática, ou assistente de análises clínicas, ou assistente de medicina dentária, ou técnico de alguma coisa, áreas que dão aos alunos a hipótese de iniciarem uma atividade profissional.
Que opções existiam na escola do Vale da Amoreira?
A maioria dos alunos optou por barman, uma opção do Ministério de Educação para os alunos fazerem o 12.º. Fiquei em choque: isso existe? Que sim, era a melhor opção. Mas afinal não era nada do que estavam à espera e no estágio, normalmente feitos em hotéis, meteram-nas a fazer camas e coisas do género. E depois lhes ensinaram a fazer um cocktail ou outro. E havia oferta de jardinagem, também, não apenas nas escolas, mas no IFP [Instituto de Formação Profissional], para onde eram orientadas diversas pessoas das minorias étnico-raciais. E eu, ironicamente, digo: não são as minorias que precisam de aulas de jardinagem, porque essas não têm casas com jardim. Quem tem casas com jardim é o pessoal do Restelo, da Av. de Roma, essas é que precisam de aulas de jardinagem. E esta oferta formativa existe porque o ministério e as escolas sabem exatamente a composição étnico-racial ali. A escola do Vale da Amoreira está nos últimos lugares do ranking nacional. Portanto, as escolas onde há menos investimento pedagógico são as que mais necessitam dele.
E em relação ao ensino superior?
Os alunos mais pobres e das minorias étnico-raciais tem mais dificuldades no acesso ao ensino superior - não houve um ano em que eu não colocasse a hipótese de desistir por não ter dinheiro. Houve um ano em que disse: de facto não há dinheiro. Fiquei sem residência universitária, precisava de dinheiro para um quarto, e decidi suspender a matrícula. Só que não consegui desistir, porque estava tão gaga nesse dia, e a secretaria cheia de gente, que não consegui falar. E fui embora. Mas é muitíssimo desafiante, porque desde o infantário os alunos começam a ser orientados e sabem que uns têm mais hipóteses do que outros. O Estado tem de intervir para antecipar uma maior igualdade nas instituições.
O Livre ainda não descolou dos 2%, tem menos votos do que o nulos e está longe dos brancos. O que falta para convencer os abstencionistas a votar?
Antes de mais, estamos com níveis de abstenção altos, altos, altos. Quase 70% nas europeias. Isto é da responsabilidade dos partidos com assento parlamentar, não é da responsabilidade dos novos partidos, que estão a iniciar hoje os seus trajetos e não têm nada a ver com as altas abstenções. Normalmente, os votos nulos e os votos em branco são votos de protesto em relação ao trabalho dos que já lá estão. Depois, não olho isto como não conseguimos convencer o eleitorado. Penso que, com um orçamento de 10 mil euros, conseguirmos 61 mil votos nas europeias foi extraordinário. Houve partidos que gastaram 300 mil euros, 500 mil euros e obtiveram menos votos do que nós.
O que espera para estas legislativas?
A nossa expectativa absolutamente realista é o Livre eleger um deputado - neste caso, uma [ri]. Mas iremos esforçar-nos para eleger dois, esse é o objetivo.
De quantos votos precisam para eleger um deputado?
São precisos 24 mil. E nas europeias obtivemos 21 mil votos, portanto, não é algo que consideremos difícil.
O programa do Livre é extenso. O que quero perceber é em que difere dos restantes partidos de esquerda?
Há diferenças que não são necessariamente ideológicas, mas dizem respeito à ação objetiva e à prática. Não podemos esquecer isto: nas últimas eleições legislativas uma das nossas bandeiras foi a convergência à esquerda, o que antes era absolutamente impensável, uma união dos partidos de esquerda. Esta é a nossa diferença. Porque compreendemos que a única maneira de evitar mais anos de austeridade, mais anos de emigração forçada, mais anos de enormes dificuldades das famílias, era fazer uma convergência à esquerda para evitar que os partidos à direita destruíssem todo o tecido social. Também consideramos que um partido de esquerda precisa de ser necessariamente um partido com uma política interna altamente democrática, por isso no Livre há eleições primárias, não há uma direção que opta e que escolhe o número um, o número dois ou o número dezanove, qualquer um, qualquer uma pode candidatar-se a estas eleições e ser eleito. Isto é algo absolutamente revolucionário.
"O ordenado mínimo nacional é absolutamente miserável e não dá hipótese às pessoas de garantirem uma subsistência"
O programa do Livre fala numa visão ecológica e humanista de longo prazo para o país. Não sei exatamente o que isto quer dizer, mas parece-me que a recente greve dos camionistas de matérias perigosas engloba todo este pacote, das empresas aos trabalhadores, passando pelo Estado e consumidores...
Número um - e é necessário enfatizar isto: a greve dos camionistas está altamente relacionada com as assimetrias sociais e salariais. Está muito relacionada com o ordenado mínimo nacional, que é absolutamente miserável e que não dá hipótese às pessoas, aos homens, às mulheres, às famílias, aos pais e às mães, de garantirem uma subsistência.
De quanto devia ser o ordenado mínimo nacional?
Defendemos um ordenado mínimo nacional de 900 euros. Os camionistas em causa auferem entre 600 e 800 euros de salário base, acrescidos de subsídios vários. Um ordenado de 900 euros é o que consideramos um ordenado mínimo nacional, porque irá permitir às famílias orientarem-se, organizarem-se e cumprirem minimamente as necessidades básicas todos os meses. Um dos aspetos que, imediatamente, nos surge com esta crise, entre aspas, é que o Estado tem de tomar conta de determinadas áreas.
E quais são essas áreas? O que deve ser do Estado e o que deve ser do privado?
O Estado não pode descurar áreas como a do transporte de mercadorias, uma área unicamente privada. Nestes últimos anos assistimos a uma tendência de privatização de algumas empresas, nomeadamente dos CTT, e até se falou na hipótese de privatizar a Caixa [Geral de Depósitos]. Houve da parte de alguns executivos uma vontade enorme de privatizar aqui e ali. E é nestas épocas de enorme dificuldade, que se exige respostas do Estado, respostas objetivas para resolver situações que estão a acontecer a nível dos privados, mas que têm um impacto enorme em toda a sociedade. O Estado não se pode afastar completamente.
"Um indivíduo com um ordenado mínimo nacional não consegue fazer opções ecológicas e ambientalistas"
Para isso existem as leis, ou não?
Existem as leis, a lei da greve, a dos serviços mínimos... E estou completamente do lado dos trabalhadores desde que eles garantam os serviços mínimos.
Tem também o lado do consumidor, que grita pelo ambiente, mas não está disposto a abdicar do seu conforto e escolher alternativas.
É por causa disso que o movimento ecológico não pode não ser um movimento ideológico. Não há ecologia sem combate ao capitalismo, ao consumo desenfreado, à exploração dos trabalhadores. Porque um indivíduo com um ordenado mínimo nacional não consegue fazer opções ecológicas e ambientalistas. E se as faz, não consegue uma sustentabilidade, porque são necessários recursos. Mesmo as pessoas que não ganham o ordenado mínimo, não colocam o seu conforto em causa, para isto, para alterar hábitos, é necessário uma educação desde o infantário: se os pais não abdicam do automóvel para ir ao Algarve ou a outro lado, os filhos vão mimetizar os comportamentos.
Não nos esqueçamos disto: até este consumo desenfreado é oriundo de uma educação que nos foi sucessivamente incutida pelas televisões, pelas empresas, pelo Estado. É necessário ter a educação ambiental enquanto disciplina, desde a infância, para as pessoas compreenderem que o ambiente não é um extra, não é uma opção ser-se ou não se ser ambientalista. Isto é nosso planeta, trata-se do futuro dos nossos filhos, da herança das novas gerações.
O programa do Livre não fala apenas na defesa das minorias e da igualdade de oportunidades, fala em socialismo, em ecologia, em europeísmo. Pode explicar o que propõe para cada uma destas três áreas?
O programa do Livre assenta em dois pilares fundamentais que são a justiça social e a justiça climática, que acreditamos que dificilmente teremos uma sem a outra. As questões da igualdade e de uma maior redistribuição da riqueza não são questões das minorias, mas da maioria. Da maioria de pessoas que aufere salários baixos, da maioria de mulheres que têm sistematicamente de lutar muito mais para aceder a cargos de chefia - independentemente das suas competências - e da maioria de cidadãos, que pretende uma vida com maior dignidade e a defesa da nossa democracia. O socialismo propõe-se a combater estas desigualdades e assimetrias, a universalizar os serviços públicos e a não permitir que os trabalhadores e as trabalhadoras sejam tratados como mercadoria. No Livre defendemos, além do aumento do salário mínimo nacional, a creche pública a partir dos 4 meses e a redução do horário de trabalho para as 30 horas semanais.
"Queremos rever o sistema de apoio judiciário para que a justiça seja acessível a toda a gente e reformar o sistema prisional"
E quanto à ecologia?
Todas estas questões estão relacionadas com uma maior qualidade de vida e uma maior responsabilização sobre a urgência climática e a sobrecarga que todos sentimos - e sentiremos ainda mais se continuar tudo como está. A crise climática precisa de um grande investimento, por isso defendemos um novo pacto verde, o Green New Deal, a nossa bandeira nas europeias, um plano de investimento público que permita uma rápida transição energética, obras de infraestruturas nos locais de trabalho e em casa, que vão trazer conforto e sustentabilidade e reduzir a pressão sobre o serviço nacional de saúde, por exemplo. Isto acontece em muitos países europeus, e aproveito para fazer a ponte com a questão do europeísmo, dizendo que somos europeístas e também por isso o único partido que defende uma democratização profunda da UE.
O que pensa e o que propõe o Livre para a área da Justiça, por exemplo?
O programa das legislativas do Livre tem muitas medidas para a área da Justiça, que têm o objetivo comum de promover a rapidez, eficácia e transparência, para combater a corrupção e o desperdício de recursos públicos. Também queremos rever o sistema de apoio judiciário, para que a justiça seja acessível a toda a gente, e reformar o sistema prisional. Defendemos a redução das taxas de justiça e defendemos a sua extinção no âmbito dos processo laborais. Por exemplo, os serviços de reinserção social dos ex-reclusos não têm sido eficazes e funcionam sistematicamente de forma precária e subfinanciada.
"Se há quatro anos não tivesse existido uma geringonça hoje estaríamos pior do que estamos"
Muitas das medidas que apresenta custam dinheiro, e o orçamento do Estado não é elástico: ou cobra mais e gasta mais, ou cobra menos e gasta menos (ou fica a dever). De onde virá o financiamento?
Somos pela estabilidade financeira e pelo equilíbrio orçamental, mas não a todo o custo e não a custo da dignidade das pessoas e do ambiente. Grande parte das medidas que apresentamos são essencialmente medidas de investimento público, tal como os 10% de habitação pública, a reforma da administração pública, que a ser feita trará melhorias significativas na vida de toda a gente e terá um impacto positivo na economia.
O país está melhor ou pior do que há quatro anos?
Penso que está a caminhar para ficar melhor. Se há quatro anos não tivesse existido uma geringonça hoje estaríamos pior do que estamos. Mas, também, o facto é que esta geringonça termina com alguma desilusão e não superou minimamente as expectativas. Foi uma geringonça que fez uma gestão da crise económica e financeira, mas no que diz respeito aos direitos sociais, dos trabalhadores, dos emigrantes, foi uma geringonça fraca.
Qual devia ser a relação do presidente da República com um governo? O presidente tem desempenhado o papel que lhe é exigido?
Este presidente é um presidente absolutamente especial, não pode ser olhado nem analisado no âmbito do historial dos ex-presidentes. É uma celebridade. Confesso que tenho uma mistura de sentimentos em relação a ele; obviamente que há determinadas qualidades que tem, e admiro-lhe isso: é o inverso do seu antecessor, uma pessoa empática, que comunica, faz um esforço para estar onde o povo está, distribui os afetos. Mas ao mesmo tempo é uma distribuição de afetos muito circunstancial. Haveria áreas, nomeadamente no posicionamento sobre a história colonial - quer queiramos, quer não há um enquadramento histórico e familiar, é um presidente que faz parte das estruturas coloniais. Se olharmos para o colonialismo, que não acabou há 100 anos, terminou há 45 anos, no que diz respeito às minorias étcnico-raciais, no que diz respeito à revisão da história colonial, ao reconhecimento da violência colonial, à alteração dos manuais de história que ainda hoje objetificam, animalizam e desumanizam os africanos, o presidente da República não tem nenhum afeto para dar. No que diz respeito à alteração da lei da nacionalidade, recolha de dados étnico-raciais, etc., também não tem um posicionamento que seja o dos afetos. E convém não esquecermos que este presidente vem de uma família política conservadora, o que o coloca automaticamente numa área; é um presidente de direita, não é um presidente de esquerda, por mais que distribua beijos, afetos e abraços. Mas tem a minha admiração porque faz um esforço por sair de um certo elitismo e da elitização.
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