"Se estamos a contar que o governo nos venha ajudar contra as dificuldades que aí vêm, não me parece que tenhamos sorte", diz o economista João César das Neves. É que "já este ano ficámos na parte de baixo da tabela dos governos europeus que mais ajudam o seu país. Fomos dos mais fraquinhos e tudo indica que vai continuar a ser assim".
Isto, apesar da retórica, onde este governo é "brilhante". "A generalidade das pessoas vai perder dinheiro com este Orçamento por causa da inflação e do aumento de impostos", antecipa o ex-conselheiro de Cavaco Silva. "O que ganhamos de um lado, vamos perder do outro. Vamos apertar o cinto. Se não chegarmos à recessão - é possível que escapemos -, as coisas já não estão mal".
A probabilidade de Portugal escapar a uma recessão, um cenário previsto para a Alemanha, mais afetada pela questão energética devido ao peso da sua indústria, é baixa. O professor catedrático admite que o cenário é "nubloso" e "ninguém pode dizer coisas seguras quanto ao futuro", mas lembra que uma recessão na Alemanha só será evitada por um "milagre" e o mais provável é que os restantes países apanhem por tabela.
Por tudo isto, "quase de certeza este Orçamento terá de ser alterado", prevê João César das Neves. De resto, esta é uma proposta de continuidade: "Parece que existe um template, sai sempre mais ou menos igual".
O economista lembra que a inflação, o grande fenómeno que estamos a viver, "é ótima para as contas públicas. Os efeitos, para todos nós muito dolorosos, são ótimos para o Estado. As receitas fiscais aumentam". E é de impostos indiretos como o IVA que o Estado vive, "por isso o governo nunca fala neles, estão escondidos".
E deixa uma pergunta: "Quando Medina [ministro das Finanças] diz que tem uma folga, é para ajudar a economia ou para não rebentar com as contas?" Para dar a resposta em seguida: "Acho que a folga não é para ajudar a gente, é para o défice, para a dívida".
Mas este não é necessariamente um mau motivo. "Temos um problema gravíssimo de dívida pública e estar preocupado com isso é uma coisa boa, fico muito contente por ver a esquerda a preocupar-se com isso". "Este governo terá aprendido com o descalabro de Sócrates, o que é bom, porque o equilíbrio das contas nunca antes foi uma preocupação socialista".
João César das Neves recorda que "a dívida vem do caminho para o euro. O euro é o bar aberto; apanhámos um pifo e ainda hoje estamos tortos". E agora, com o PRR, "não vamos melhorar". Para o economista, a dívida "é uma fragilidade enorme para o futuro e é preciso tratar disso". Resta saber se esta é a melhor altura. "Só um estúpido deixaria baixar a dívida num momento de um drama horrível como o da pandemia. [...] A questão é saber se a emergência em que estamos agora é comparável".
Um feito "notável", sobretudo na atual circunstância, é o acordo social alcançado entre patrões e trabalhadores. "Os 5,1% são indiferentes, porque ninguém sabe quanto será a inflação", mas "os salários têm de subir, senão as pessoas morrem". Também é claro que "se as coisas mudarem muito, o papel vale zero - e também não sabemos quais as contrapartidas -, mas há um compromisso e um número para nos guiarmos", diz.
Os aumentos na Função Pública [3,6%] não preocupam muito João César das Neves, "porque esses têm poder, estão sempre protegidos". Ainda assim, ri-se da "lata" de algumas pessoas, "por isso vão para a política", quando afirmam que "não querem subir os salários dos funcionários públicos para não promover ainda mais a subida da inflação, como disse o ministro das Finanças".
Mas, são os mais pobres que preocupam o economista. "Este Orçamento tem duas falhas grandes, que vêm de trás: os pobres e o crescimento económico. São duas coisas a que o governo não liga. O governo está montado para a classe média, para esses todas as regras são adaptadas. O sistema vira-se para onde estão os votos e os mais fracos são sempre esquecidos".
Por outro lado, acredita, "vamos ter um crescimento medíocre. Mais uma vez e por muito barulho que se faça. [...] Mas temos um país pacificado, não está tudo a ferro e fogo com em Espanha, em França ou em Itália. O sistema político é o mesmo desde o 25 de abril. Mas temos o outro lado dessa paz, que é não ter as tensões do crescimento".
Sobre as opções do governo, João César das Neves chama a atenção para aquilo que considera um erro: "O grande apoio é baixar os impostos da energia. E isso é perigoso, porque a energia está mais cara. Se fingem que não, continuamos a gastar. E não podemos continuar a gastar ou arruinamos o país".
E "o país está mais pobre, não há volta a dar-lhe". A propósito das perguntas e desabafos deixados pelos leitores e ouvintes do podcast "O sapo e o escorpião", João César das Neves lembra que "o país sempre teve incompetentes a tomar conta. Uns mais, outros menos, mas competentes, competentes nunca houve".
Quanto ao Orçamento, uma novidade que afeta o mundo da criptoeconomia, que vai passar a pagar impostos. "Acho que o governo faz isto para parecer chic". "Já não estão lá só os malucos, já há entidades sérias" a mexer com isso. "É verdade que esses ativos têm de ser taxados, não faz sentido que não sejam - têm até de ser regulados, mas essa é a dificuldade, porque a natureza da coisa é ser à margem, no dia em que o Estado impuser regras, morre".
Sobre o que ficou de fora, como a taxa sobre lucros extraordinários que a Comissão Europeia quer impor e que o governo português, apesar de garantir o seu apoio, mal menciona no OE2023, o economista chama a atenção: "Essas empresas podem deixar de investir, e precisamos, por exemplo, do investimento das petrolíferas. Se estamos a tributar de mais, estamos a estragar o nosso futuro", avisa. "Mas em Portugal a questão não se coloca, porque o governo está na cama com as petrolíferas", atalha.
O Orçamento do Estado será agora apreciado na generalidade e depois discutido na especialidade e votado, finalmente, a 25 de novembro. Com um governo de maioria absoluta, os restantes partidos com assento parlamentar passam a ter um papel quase de circunstância, enquanto o presidente da República passa a ter um papel mais relevante.
Nesta matéria, João César das Neves considera que "o principal perigo para o presidente da República é a inexistência". Mas Marcelo Rebelo de Sousa, "sabe o que faz" e o mais provável é " fazer sentir o seu poder ao governo" para António Costa perceber "que precisa de o manter a bordo".
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