João César das Neves diz que António Costa está a seguir uma política exactamente igual à de José Sócrates, que conduziu o país para a crise. O SAPO 24 falou com o professor no seu gabinete na Católica Lisbon School of Business and Economics, o número 5319, povoado de livros e de imagens de Nossa Senhora.

Com uma fotografia do papa Francisco a passar no ecrã do seu computador, a conversa girou em torno do dinheiro, da religião, da ética e da felicidade. E daquilo que o governo, e cada um de nós, pode fazer em relação a isso. O ex-assessor económico de Cavaco Silva, que até comparou a técnica do actual primeiro-ministro com um truque usado por Salazar, não adivinha nada de bom para a economia portuguesa.

Defende a doutrina social da Igreja e, ao mesmo tempo, uma política de salários baixos, de cortes, de austeridade. Há aqui um conflito?

Não sou contra os direitos dos trabalhadores, pelo contrário. Sou é contra a ilusão que existe em Portugal há algum tempo de ter leis europeias com produtividade portuguesa. A consequência disto é uma brutal injustiça dentro da força de trabalho, que se consegue mascarar chamando direitos para alguns. Acontece – e isso é típico em Portugal – que alguns grupos capturaram o Estado em seu favor e dizem que os direitos dos trabalhadores são os seus direitos. Esses grupos são os funcionários públicos, os pensionistas, algumas empresas. O resto dos trabalhadores, que são contratados a prazo, que estão a recibo verde, não têm nenhum direito, os salários são muitas vezes abaixo dos restantes. São vítimas dos primeiros. O governo está ansioso por repor os direitos aos funcionários públicos, aos pensionistas, que foram poupados à crise até 2011. Só quando chegou a troika, nesse ano, começaram a sofrer alguma coisa. Antes já os outros estavam a ser despedidos, as empresas estavam a ir a baixo, os salários estavam a ser cortados. Quando, finalmente, a troika começou a criar algumas pressões e a cortar nos seus salários e pensões, eles vieram protestar e ainda foram protegidos pelo Tribunal Constitucional, que evitou alguns cortes. Protestaram muito mais do que todos os outros – até porque podiam protestar, estavam próximos do poder – e são os primeiros a ser ressarcidos, a ver repostas as suas benesses. Os outros, os que perderam o emprego, ainda estão a sofrer. A taxa de desemprego continua a mais alta desde antes da crise. É a mais alta desde sempre exceptuando o período da crise. Continuamos a ter um crescimento muito baixo, salários muito baixos para a generalidade da população e fingimos que damos justiça. Ora isto é de uma injustiça total. E é contra isso e em nome da ética que em me tenho levantado ultimamente.

O governo está ansioso por repor os direitos aos funcionários públicos, aos pensionistas, que foram poupados à crise até 2011. (...) Antes já os outros estavam a ser despedidos, as empresas estavam a ir a baixo, os salários estavam a ser cortados.

Se olharmos para os funcionários públicos como realidade e não como termo de comparação o que vemos?

O que se passa na função pública é que há também lá dentro uma grande injustiça. Porque o problema da função pública não é que ganhe muito, o problema é que são muitos. E dentro dessa função pública – quem lá está sabe mais do que eu, mas eu também sei - há uma quantidade de gente dedicadíssima, que trabalha de dia e de noite, faz funcionar tudo e, depois, há uma data de parasitas que vão lá para conversar sobre as férias e beber café nos intervalos, não produzem nada e até complicam o trabalho dos outros. É este o problema. É verdade que há salários muito baixos e é verdade que há salários altíssimos. Para a produtividade que têm. É isto que é uma má gestão, é um bicho tão grande que é difícil ser bem gerido. Mas há também o fenómeno que é a função pública estar próxima do poder, ter o poder na mão. Já vimos vários ministros caírem em desgraça. Os ministros ou tratam bem aqueles funcionários ou podem ser, de uma forma muito subtil, destruídos por esse aparelho. E os funcionários aproveitam-se disso. Isto acontece na função pública, em empresas do Estado e sectores que tomam conta do país e estrangulam a actividade económica. Por isso é que o país está como está: o crescimento é miserável. Essas classes foram as que nos trouxeram à crise, porque nos criaram este endividamento brutal para satisfazer as suas regalias e agora estão de novo a tomar o poder e estamos a confundir isso com crescimento.

E dentro dessa função pública há uma quantidade de gente dedicadíssima, que trabalha de dia e de noite, faz funcionar tudo e, depois, há uma data de parasitas que vão lá para conversar sobre as férias e beber café nos intervalos

Os principais indicadores, do governo, do INE, do Eurostat, são positivos. Afinal, havia alternativas à austeridade, ao anterior modelo de governação?

Isso é simplesmente mentira. Primeiro, os indicadores não são óptimos. Os indicadores só são bons comparados com a crise. Se compararmos com o período antes da crise, a taxa de crescimento actual é mais baixa que a média dos quinze anos anteriores. A taxa de desemprego é a mais alta da história de Portugal tirando os anos desta crise. Se eliminarmos 2008 a 2013, os números actuais são medíocres. Parecem muito bons quando comparados com o buraco anterior. É até uma reacção à crise: quando a economia cai muito, depois cresce muito. A única coisa que o governo demonstrou foi que a seguir a uma grande depressão a economia cresce e é fácil baixar o défice. E mostrou que não só os indicadores de crescimento não são excelentes como, pelo contrário, estão abaixo do normal da economia portuguesa e muito abaixo daquilo que seria necessário para haver um novo surto de desenvolvimento. Mas, pior que isso, a política do governo está a estragar, não está a melhorar.

Nunca tínhamos experimentado a extrema-esquerda no poder e agora experimentámos. Descobrimos que afinal é igual aos outros.

Como é que está a estragar?

Temos uma política onde se conseguiu baixar o défice, mas não foi fazendo dieta, foi pondo uma cinta. Aperta a gordura, mas não a tira. Não há uma reforma pública séria feita nos instrumentos, nos organismos, nas regras. O que há são cativações. Isso quer dizer: não gasta agora, mas quando houver dinheiro gasta. Os problemas passam ao lado e, mais grave, a política recente não tem nada a ver com crescimento económico. Voltámos as costas às empresas, as empresas são as más da fita, são para pagar impostos. Temos é de repor o rendimento para os amigos. Infelizmente, este governo está ao serviço dos grupos de pressão, os do costume, que estão felizes. Mas foi exactamente a atitude que teve Sócrates. Portanto estamos a criar uma nova crise em potência. Enquanto a economia mundial estiver a crescer e enquanto não houver problemas graves aqui à volta – e é fácil encontrar problemas –, isto vai correr muito bem. Quando correr mal já será no próximo governo e este saiu incólume. É um truque fácil que já vimos acontecer no passado, usado pela direita ou pela esquerda. Não é pelo facto de ser esquerda que isto é pior; pelo contrário, conseguimos provar que um governo de esquerda consegue gerir isto como os outros. Nunca tínhamos experimentado a extrema-esquerda no poder e agora experimentámos. Descobrimos que afinal é igual aos outros. Temos um problema estrutural na economia portuguesa que é o facto de o poder estar capturado pelos sectores do costume: a banca, as construtoras, as energias, as infra-estruturas em geral, os funcionários públicos, os pensionistas. Insisto nisto. Em grande parte, isto acontece simplesmente por razões demográficas: os velhos são muitos e votam, os jovens são poucos e não votam. Surpreendentemente. Depois os velhos ganham tudo e os pobres perdem tudo. Se olharmos para a evolução da taxa de pobreza, a dos mais velhos desceu para um pouco menos de metade e a dos jovens está a subir.

Os velhos são muitos e votam, os jovens são poucos e não votam. Surpreendentemente. Depois os velhos ganham tudo e os pobres perdem tudo. Se olharmos para a evolução da taxa de pobreza, a dos mais velhos desceu para um pouco menos de metade e a dos jovens está a subir.

E porquê?

Se é aí que estão os votos, é normal que os políticos, de esquerda ou de direita, queiram facilitar a vida aos mais velhos, blindar os empregos dos mais velhos, enquanto os mais novos, que não votam, andam em empregos a prazo ou sem futuro. Não contam em termos demográficos. Este é o drama do país e é preciso alguém que o diga.

O truque deste governo - e que é um truque que funcionou, Salazar usou isso durante 40 anos e funcionou - é dizer: “Lembram-se como era antes de eu cá estar?”

Os jovens não contam e importam-se com isso?

Coitados, nem sequer têm alternativa. O ponto é que são poucos, cada vez menos. Estamos a comprometer o país, somos talvez o país da Europa com mais baixa taxa de natalidade e onde menos se discute este assunto. Estamos a destruir o país em termos demográficos e ninguém liga nenhuma; pelo contrário, o que é importante é o casamento entre homossexuais, o aborto e tudo o que é contrário ao nosso problema. É extraordinário que os jovens resmunguem tanto mas não protestem. A taxa de desemprego é a mais elevada e ninguém liga nenhuma… O truque deste governo - e que é um truque que funcionou, Salazar usou isso durante 40 anos e funcionou - é dizer: “Lembram-se como era antes de eu cá estar?” Salazar usou isto relativamente à Primeira República durante todo o tempo em que esteve no poder. Este governo está a usar exactamente a mesma técnica e é engraçado que funciona tão bem como antes.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Costa e Salazar, quem diria…

O truque não tem nada a ver com esquerda ou direita, é uma ilusão pensar que isto é um problema de esquerda ou de direita. Aliás, este governo mostrou-o, está a fazer uma austeridade mais violenta que o governo anterior, tem um défice mais baixo que o governo anterior. Depois temos a patine que damos por cima, com certas cores de um lado ou do outro para medidas mais emblemáticas para fazer determinada clientela, mas de resto é um problema político que todos temos no colo. Repare, Trump está a ter este problema nos Estados Unidos e é de direita, o Syriza está a ter este problema na Grécia e é de esquerda. Não há diferença.

Sobre a questão da demografia, a Fundação Francisco Manuel do Santos fez um bom estudo sobre o tema. Em Portugal fazem-se muitos estudos e tomam-se poucas medidas?

É uma atitude tradicional. Temos a mania das tertúlias sem nenhum efeito real, nem na sociedade nem na política. Não é de agora, já vem do século XVIII. Hoje não faltam bons estudos e boas estratégias. O que falta e faltará sempre é a implementação disso na sociedade, que tem equilíbrios, dinâmicas, influências complicadas de gerir. Estamos hoje numa lógica europeia, aberta, a economia está a funcionar. As coisas são boas, mas continuam a vir vícios ao de cima. Voltámos a cair no erro da pimenta da Índia e do ouro do Brasil, que esbanjámos alegremente. Desta vez esbanjamos em auto-estradas e pavilhões polidesportivos, que sempre é um pouquinho melhor do que perucas e joias. Mas o esbanjamento é igual ao que nos arruinou e deixou debaixo do poder estrangeiro. Se fossemos mais sensatos e houvesse um pouco mais de coragem, talvez pudéssemos melhorar. Diria que a grande diferença é que actualmente os estudos são bem feitos, têm qualidade. Nas universidades e fora delas, a FFMS é um bom exemplo. Hoje são fundamentados, com dados, e não manipulações, como no século XVIII ou XIX, em que os intelectuais eram completamente ideológicos e faziam passar por ciência aquilo que eram as suas opiniões. Os estudos dessa altura eram um repositório de preconceitos e de ideologia, não tinham nada a ver com a realidade. Mas na imprensa popular continuam a dominar as tolices mais inacreditáveis e depois vão aparecendo surtos, como este do juiz que cita a Bíblia. Mas são fogachos que desaparecem rapidamente.

O que quer dizer com isso?

Os problemas são complicados. Os juízes são pessoas. Está mais que documentado que os veredictos são diferentes consoante o juiz é mais novo ou mais velho, homem ou mulher. Outro dia uma juíza dizia isto mesmo numa conferência: foram feitos estudos que mostram que há cada vez mais mulheres na magistratura e há uma diferença muito significativa entre homens e mulheres. Por exemplo, em crimes de dinheiro e de família, as percentagens das condenações de um lado e de outro, que antes eram equilibradas porque eram só homens, agora são uma roleta. É evidente que este problema tem de ser tratado na magistratura, é importante discutir estes assuntos. Agora, e esse é o principal defeito destes debates, as pessoas partem do princípio que o problema é fácil, é óbvio. É tão evidente que este senhor é uma besta e aquele um santo. Mas o problema não é evidente, é complicado. Todos os participantes têm uma fatia da verdade ou da razão e é isso que uma sociedade aberta, democrática, tolerante deve assumir. Mas assim que aparece um assunto destes lá se vai a tolerância. O que temos agora é a mais intolerante perseguição, extremada, com excelentes razões, mas deviam fazê-lo com tolerância, com respeito, com equilíbrio, que é o que estão a pedir em relação ao resto. A misericórdia é para os dois lados. Não estou a desculpar um lado ou a condenar outro, estou apenas a dizer que é preciso equilíbrio. E a forma selvagem como às vezes se tratam os assuntos – compreensível, são coisas que nos repugnam – não faz sentido. É para as coisas que nos repugnam que temos de ter tolerância; a tolerância é para o intolerável.

Existe em Portugal um desequilíbrio de poderes?

O problema é de facto de equilíbrio de poderes. Nos Estados Unidos a justiça tem um poder político extraordinário, o supremo tribunal tem até poder de decidir quem é ou não é o presidente. O equilíbrio de poderes está a ser testado agora com a presidência Trump; estamos a assistir à forma o homem mais poderoso do mundo não consegue fazer coisas precisamente porque há equilíbrio de poderes. O sistema tem de estar bem feito, mas depois temos de acreditar nele. Outro exemplo: nas eleições autárquicas houve pessoas condenadas porque foram punidas pela lei e depois foram eleitas. Num estado democrático, a justiça é a justiça e a política é a política. Uma pessoa deve ser punida independentemente de ser muito ou pouco poderosa, isso é que é indispensável. Se depois é eleita em termos políticos, é outro assunto. Também é bom que não seja prejudicada pela justiça. Se as duas coisas estiverem a funcionar cada uma no seu sítio, tudo bem. O problema é inquinar: quando uma pessoa por ser poderosa politicamente já não é condenada nos tribunais ou, ao contrário, por ter sido condenada nos tribunais deixa de ter direitos políticos. E não há equilíbrios perfeitos, não vamos à procura da constituição ideal porque não existe.  Temos de andar permanentemente a procurar esse equilíbrio e é assim que uma sociedade democrática tem de funcionar.

as guerras não são feitas pela classe média, são feitas pelos muito ricos e pelos muito pobres, por aqueles que têm tudo a perder ou não têm nada a perder.

Fala nas eleições autárquicas. As sondagens da Universidade Católica correram mal. Não têm corrido bem em lado nenhum… O que significa isto?

Significa que estamos a viver um período de ruptura. Que pode gerar uma ruptura mesmo má. A causa é fácil de perceber, vivemos o período de desenvolvimento mais extraordinário da história do planeta. A todos os níveis. Vivemos mais que os nossos antepassados, a tecnologia de informação tem uma grande velocidade, a energia é nova (petróleo de xisto e gás de xisto) e há uma redefinição geoestratégica (China, Índia, Rússia ganham poder). A taxa de transformação no planeta é incomparável com a de qualquer outro período da história e quando é assim acontecem sempre duas coisas: por um lado há um benefício espantoso, a maior redução da pobreza mundial que alguma geração já viu, melhoria da qualidade de vida. Depois há os custos dessas melhorias, que são grande parte do problema. Não há almoços grátis, dizemos nós economistas, e essa é a consequência. Quando temos os ubers a atacar os taxistas ou o airbnb a desafiar os hotéis, quando assistimos ao fim de uma quantidade de profissões porque as pessoas são substituídas por robôs, por computadores, tudo isso é extraordinário, mas para os que são afectados directamente por este choque cria-se um problema gravíssimo. Isto está a fazer com que as pessoas queiram o desenvolvimento e temam o desenvolvimento, queiram a globalização e temam a globalização. A consequência é virarmo-nos para as classes políticas, para os partidos tradicionais, e há uma irritação contra eles. E eles, coitados, estão tão aflitos como os outros. Estamos a assistir em todo o Ocidente a uma subida das forças extremistas. O caso mais terrível é evidentemente o americano, com Trump, mas há a Inglaterra com o Brexit, a França com Macron e também Le Pen, etc. Portugal é dos poucos locais onde os resultados eleitorais foram os do costume. Foi António Costa que fez a ligação à esquerda, uma decisão táctica, não foi um resultado eleitoral. Os partidos tradicionais têm exactamente o mesmo resultado há muito tempo. A consequência é que as previsões das sondagens, baseadas na história, falham fragorosamente. Têm falhado: Trump, Brexit, etc. E vão falhar mais. A questão é saber se isto depois não vai correr muito mal. A última vez que tivemos uma aceleração destas - é muito fácil encontrarmos paralelos entre este período e os anos 20 ou 30 do século XX – isso levou a duas guerras mundiais. Esperemos que isso não aconteça outra vez, que desta vez tenhamos a sensatez de aprender com as lições do passado. Mas que os sinais são assustadores, são.  Basta uma coisa correr mal, com o senhor Trump a provocar os norte-coreanos, para as consequências serem desastrosas. Hoje temos meios de destruição nas nossas mãos que são devastadores. O facto de ser assustador também dá alguma segurança, porque leva as pessoas a pensar duas vezes.

Nas guerras a espoleta é sempre um acontecimento menor…

As coisas vêm sempre do lado que não estamos a contar. Singapura é um caso extraordinário, porque estava completamente protegida de um ataque marítimo. Os japoneses vieram por trás, por terra, e conquistaram Singapura num instantinho. É difícil acontecer um novo Hitler, já estamos preparados para isso. O pior é sempre aquilo com que não estamos a contar. O fundamentalismo islâmico, o terrorismo, era uma coisa com que ninguém estava a contar e agora assusta o mundo inteiro. Mas já estamos a preparar-nos para isso. Qual será o próximo? Ninguém sabe. A única forma de responder é aquilo de que já falámos: o respeito, a tolerância, a compreensão. Se percebermos que do outro lado estão pessoas com horrores, com razões de queixa, conseguimos dialogar. Mas, claro, a primeira reacção nunca é essa, é considerar os outros uns trogloditas inaceitáveis que temos de espantar. Os cinemas estão cheios de zombies e de psicopatas; o outro lado não tem sequer dignidade humana, então vamos destruí-los. Todo o raciocínio de Trump se baseia nisto. Os terroristas também querem atacar a sociedade porque a sociedade é acéfala. Somos mais ricos do que éramos, os dramas não são iguais. Hoje, mais de metade da população mundial é de classe média. E as guerras não são feitas pela classe média, são feitas pelos muito ricos e pelos muito pobres, por aqueles que têm tudo a perder ou não têm nada a perder.

Continuamos sem vacina para asneiras antigas?

Um dos sinais de que estas coisas são menos dramáticas do que eram é que as ideologias dos extremistas não fazem sentido, porque são as mesmas do passado. Antigamente faziam. Voltam a ser marxistas, voltam a ser fundamentalistas… Seria muito difícil hoje voltarmos a ver como Lenine, como Hitler apresentavam as suas ideias, que pareciam plausíveis. Fazia sentido: vamos mudar a sociedade e isto vai correr melhor. As pessoas acreditavam. Agora aparecem tipos com as mesmas ideias, basicamente, mas já tudo soa a requentado. O Syriza vem dizer o que há muito sabemos – e nem diz bem, porque já ninguém fala na luta de classes, no proletariado, numa sociedade sem classes. São teses que, mesmo para quem acredita nelas, soam ridículas. Mas ainda não apareceu uma ideologia jovem, dinâmica, extremista que convença as pessoas e as leve atrás. Os grupos extremistas são pelo negativo, não propõem nada de novo, só dizem mal. E aí a malta adere. Trump tem valor negativo, o Syriza tem valor negativo, a Le Pen, todas estas forças que estão a aparecer e a ganhar, que querem ter poder, baseiam-se sempre no negativo, não têm nada de positivo para apresentar. Não têm soluções e quando chegam ao poder as coisas são iguais. A falta de uma dinâmica positiva é muito significativa e poderá vir a ser a tal vacina para evitarmos asneiras como as antigas.

Faltam líderes?

Isso é dramático, a falta de liderança. Os problemas são complicados, volto a dizer. Porque queremos mais internet, mais telemóveis, mais app, mais tecnologia, mas isso, por ser novo, desqualifica pessoas que se sentem perdidas e vão andar perdidas uns anos, umas décadas, talvez umas gerações. Isto é difícil de resolver. Apesar disso, tudo somado, temos mais recursos do que antes e fizemos uma distribuição, podemos melhorar. Porque já há direitos dos trabalhadores, sindicatos, uma enorme quantidade de organismos que não havia ou que eram duvidosos e hoje estão a funcionar. Já aprendemos com o passado. Mas o problema continua a ser difícil. Se em vez de acusarmos os políticos olharmos para o problema, conseguimos uma solução. Mas é muito mais fácil apontar o dedo a Washington, aos capitalistas, a um grupo de pessoas, a uma política, culpar o outro, que está tão ensarilhado no problema como eu. Isto não quer dizer que não tenhamos de acusar as pessoas e muitas culpas há na política, aproveitamentos, mas muitas vezes também somos culpados disso. Repito, um dos problemas em Portugal é a captura do poder por grupos instalados e poderosos e esses grupos somos nós, não está cá mais ninguém. Quando vamos olhar, muitas vezes estamos a ver-nos ao espelho. E se percebermos isso começamos a encontrar caminhos. O extremista nunca tem uma solução, tem sempre um ataque. E se isso é sedutor vamos entrar num caminho que leva à desgraça. A escalada é fácil. Por isso é que o Syriza chega ao poder e passados seis meses percebe que tem de fazer como os outros, ser sensato. Acontece em todos os países, incluindo Portugal. O Partido Comunista e o Bloco de Esquerda chegaram ao poder, anunciaram milhares de coisas e o que é que fizeram? Reduziram o défice, mais nada.

Continuam sem se fazer reformas estruturais?

As reformas estruturais não se fazem porque as pessoas não querem que elas se façam. Porque o poder está instalado. Fazer reformas estruturais significa tirar poder a certas pessoas, a cliques. Só em momentos de ruptura é fácil fazer reformas estruturais. Macron está a tentar fazê-lo em França, na Itália a mesma coisa. Quem é que se levanta em fúria? São as classes tradicionais, os sindicatos, as entidades patronais, a banca, os sectores mais representativos, que são aqueles que no final ficam todos melhor, mas no imediato perdem. Não são os pobres que se opõem às reformas estruturais, são os ricos. E os nossos políticos não são maus políticos. Em geral, comparando com a Primeira República, com o liberalismo, temos bons políticos. Agora os políticos têm de ser eleitos e para serem eleitos têm de servir aqueles que têm poder. Infelizmente, foi o que aconteceu no período do crédito fácil. Os tais interesses conseguiram levar o país à ruína alimentando-se sucessivamente de ficções. Políticas de desenvolvimento nos programas eleitorais todos têm. Durão Barroso teve, Sócrates teve, Passos Coelho teve. Mas não houve desenvolvimento, não temos em Portugal desenvolvimento significativo desde o início do século. Mesmo agora estamos a voltar a níveis que já tivemos no passado. Portugal estagnou. Mas não estagnaram as políticas de desenvolvimento que alimentam os do costume, provavelmente, as câmaras, os profissionais do subsídio…

Ninguém pode pedir a este governo que faça reformas estruturais com a combinação que está na coligação parlamentar. É impossível. É uma maioria parlamentar em que estão zangados uns com os outros. (...) A única coisa em que estão de acordo é que querem manter-se no poder.
créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

O que é que com este governo pode correr mal?

Este governo é um governo minoritário, é um governo fraco. Não tem facilidade em fazer reformas estruturais, ninguém pode pedir a este governo que faça reformas estruturais com a combinação que está na coligação parlamentar. É impossível. É uma maioria parlamentar em que estão zangados uns com os outros. O principal inimigo do PCP é o Bloco de Esquerda e o maior inimigo do Partido Socialista é a esquerda, não é a direita. Dentro do governo temos forças radicalmente contraditórias. A única coisa em que estão de acordo é que querem manter-se no poder. Por boas ou más razões. Quando há uma ameaça a esse facto, conseguem-se opor. Mas acordaram uma política? Nenhuma. Felizmente o Partido Socialista conseguiu convencer a extrema-esquerda de que não fazendo a consolidação orçamental, contra a qual eles urravam com todas as forças durante todo o período da direita, ia ser morte imediata. Então engoliram tudo quanto tinham dito e estão a fazer consolidação orçamental. Mais apertada ainda que a dos antecessores. Temos austeridade, por muito que digam que não - e são geniais a fazer fumo de retórica. Mas foi isso que nos safou, senão teríamos mesmo tido um colapso no ano passado. Infelizmente este governo não consegue sequer fazer pequenos ajustamentos que, já agora, poderiam fazer bem feito na linha da austeridade. Temos uma política que nem sequer está a acertar no caminho. Felizmente a economia está aguentada com a ajuda do crescimento externo.

Acredita que o PS vai perder votos?

Vamos ver, vai ser muito interessante. Há muitos acontecimentos até lá. Penso que os acontecimentos recentes, os incêndios – e boa parte tem a ver exactamente com esta política, a maneira mais fácil de cortar despesa é fazer cativações, que mantêm a casca mas tiram o conteúdo – podem alterar os factos. Medimos as coisas pelos meios que gastamos e não pelos resultados. Andamos a cortar nas despesas correntes, mantemos pelo menos o aspecto exterior, e o resto funciona dramaticamente. Penso que esta crise deixou marcas no governo, em particular no PS, deixou uma cicatriz. E as previsões, as sondagens, valem zero porque o mundo está cada vez mais incerto.

Prefere Rui Rio ou Pedro Santana Lopes?

Não tenho preferência nessa corrida, felizmente não tenho nada a ver com ela. Penso que são dois bons candidatos, a minha preferência natural é por Rui Rio, que é um economista e a quem tenho visto várias vezes fazer análise económica. Mas talvez por isso mesmo seja menos político que Santana Lopes. E já tem mostrado nas suas intervenções que é um bom economista, um homem que conhece bem a situação económica do país. A situação económica continua a estar na ordem do dia, mas cada vez menos. As questões políticas vêm agora mais ao de cima. Acho que vamos entrar num novo ciclo político, indiscutivelmente, e os problemas vão começar a aparecer. Manter este bom aspecto depende de uma combinação muito particular de coisas que por acaso se juntaram – o governo tem tido muita sorte – mas que são difíceis de manter. As taxas de juro vão começar a subir, toda esta situação económica internacional poderá a curto prazo ter consequências complicadas.

António Costa é um génio político, um homem que tem conseguido coisas extraordinárias. Como Sócrates, tanto um como outro conseguiram.

O governo tem sobrevivido bem a uma quantidade de crises…

E é preciso dizer que o governo está numa situação horrível, é extraordinária a boa imagem que tem se considerarmos como está por trás. António Costa é um génio político, um homem que tem conseguido coisas extraordinárias. Como Sócrates, tanto um como outro conseguiram. Pedir-lhe que além disso seja um grande reformador, quando o problema dele é se a cada dia aquilo não se parte tudo aos bocados nas suas mãos, quando a oposição vem de dentro da coligação, é demasiado. Há uma grande vantagem, uma vantagem espantosa, que é um fenómeno estrutural ao qual vale a pena ter atenção: o país é socialista. Somos um país que adora o Estado e os carinhos do Estado, primeiro ponto. Segundo ponto: a elite intelectual ainda é mais socialista que o país. E isso está a ver-se nos jornais, que passaram a adorar este governo. Tudo corre bem, está tudo bem. Há um problema qualquer e os jornais não notam; qualquer coisa bem-sucedida é logo em parangonas. A atitude dos jornais com este governo e com a direita é completamente diferente. Isto é uma coisa espectacular e até tem uma vantagem. Atrevo-me a dizer é bom que a extrema-esquerda esteja sempre no governo a partir de agora, que é para ver se não temos aquele matraquilhar constante da elite contra o poder, qualquer que ele seja, e em particular a direita, mas mesmo o Partido Socialista. Guterres e Sócrates tiveram ambos maior lua-de-mel do que a direita, mas assim que acabou levaram como os outros, e até mais. Agora ninguém critica o governo a sério e a direita é muito mais educada que a esquerda e apesar de estar na oposição também não ataca com a mesma virulência com que atacava a esquerda quando estava na oposição. Isso é bom. Não ter este ruído de fundo jornalístico ajuda o governo a fazer coisas que são necessárias e a tal austeridade tem sido muito mais engolida por causa disto.

O orçamento do Estado para 2018 é um bom orçamento?

Penso que é um orçamento medíocre. Faz o que se pretende, mas faz mal. Consegue um défice de 1% - o ministro da Finanças já avisou que vai fazer cativações até ser de 1% -, coisa que todos os seus antecessores quiseram e nunca conseguiram, porque os jornais não deixavam, os sindicatos não deixavam, os funcionários não deixavam. Antigamente faziam-se menos cativações porque os grupos de pressão não deixavam. Agora deixam. Mário Centeno está a conseguir coisas espantosas e Portugal tem o mais baixo défice da sua história recente. Não são medidas estruturais e como, infelizmente para a política do senhor ministro, a Europa trata as coisas em termos de défice estrutural, o défice estrutural não está a descer. E, se é verdade que o défice estrutural é uma ficção artificial, ele aponta para um fenómeno muito verdadeiro, que é o da gordura e da cinta. Não estamos a perder peso, estamos apenas a usar uma cinta apertada. Compreendo as críticas que são feitas a este indicador, mas são críticas hipócritas, porque se por acaso esses senhores estivessem na oposição estariam muito contentes com o défice estrutural. E estão a esquecer a verdade dessas críticas. Pela primeira vez em muitas décadas temos duas instituições que não nos deixam ser enganados pelo Ministério das Finanças, que sempre aldrabou no que quis, uma no Parlamento, a UTAO – Unidade Técnica de Apoio ao Orçamento, e o Conselho das Finanças Públicas. Vamos ver quanto tempo duram. As críticas a estas entidades têm-se tornado mais audíveis e é possível que algures no caminho elas sejam silenciadas, acabando, ou, pior, sendo substituídas por donos disto tudo que tornem aquilo inoperante. De facto este orçamento é fraco.

Porquê?

Por duas razões: primeiro, porque não faz as mudanças estruturais internas e vive simplesmente de cortes virtuais e do aproveitamento do lucro do Banco de Portugal e de coisas destas, expedientes conjunturais e não medidas estruturais, ou seja, não está virado para o crescimento. As empresas são vistas exclusivamente como peças de caça para esquartejar, não há a mais pequena orientação para gerar investimento – que depois daria mais fisco e benefícios para dar aos funcionários públicos e aos pensionistas e a toda a gente. O que se está a fazer é a tentar aproveitar a pouca folga deste período, algum solzinho que nos está a dar, para começar já a fazer um brilharete. Mas quando o solzinho acabar vem tudo por água abaixo. Foi o erro que cometemos em 2006/2007.

Não foi o Dr. Carlos Tavares que teve a culpa do colapso do BES. É muito fácil criticar os responsáveis, o governador do Banco de Portugal tem sido um bombo da festa, mas a culpa não é dele.

Queria falar da reforma do sistema financeiro, nas mãos de Carlos Tavares, que esteve à frente da CMVM num dos piores períodos da história do sistema financeiro…

Esse é um problema estrutural; só as pessoas que sabem do assunto é que podem tratar do assunto. E as pessoas que sabem do assunto estavam enfiadas no assunto quando o assunto correu mal. Não há volta a dar-lhe. Tinha de ser uma dessas pessoas, alguém de fora nem sequer conhece o sistema. Não foi o Dr. Carlos Tavares que teve a culpa do colapso do BES. É muito fácil criticar os responsáveis, o governador do Banco de Portugal tem sido um bombo da festa, mas a culpa não é dele. Ele, aliás, ainda não falou. Espero que fale. A história que ouvimos, de que ele sai tão mal, não faz sentido. Há qualquer coisa que é preciso explicar e que ninguém vai saber enquanto ele não contar. Quero ouvir a versão dele para fazer um juízo. Ele e Carlos Tavares, zangadíssimos um com o outro, nunca explicaram porquê. Há muitas arbitragens, mas só terei opinião quando tiver todos os dados. Li, ouvi, mas faltam peças.

É possível uma crise com a dimensão da que tivemos sem que o sistema financeiro esteja no centro da história?

Não, e é evidente que o sistema financeiro em Portugal se chama banca. A banca estava no olho do furacão quando ele rebentou. O que é extraordinário no caso português é que conseguiu fingir que não estava. Conseguiu isto durante todo o tempo da troika, em que só se olhava para o Orçamento do Estado, e quando a troika se foi embora os bancos começaram a cair uns atrás dos outros. Também caíram alguns banqueiros. E agora dá para fingir que está tudo bem, mas não está. Temos neste momento a banca praticamente toda na mão de estrangeiros, excepto a CGD. E vamos ver o que isso quer dizer – se calhar até é bom, porque quando estava nas mãos dos portugueses as coisas não corriam bem. Já vendemos as pratas da casa e não foi só na banca, foram as REN, EDP, etc., porque temos de pagar a dívida. Estamos a vender para conseguir capitalizar, porque andámos a comer capital. O país está descapitalizado, as empresas estão descapitalizadas, as famílias estão descapitalizadas. O problema de capital ainda lá está. A banca está cheia de crédito malparado, uma grande quantidade de negócios que não andam, que nunca andaram. Muitos estão ainda por mostrar precisamente para não ter de os assumir. Ainda não se fez uma avaliação da banca portuguesa, mas foi isso que salvou os Estados Unidos, os testes de stress, inventados por um ex-ministro da Finanças, que limparam a banca e a deixaram como está. Ainda não fizemos isso.

Parece que está tudo bem enquanto a anestesia, que é sobretudo o BCE a comprar a nossa dívida, mantiver as taxas de juro baixas. Como confundimos a anestesia com a cura, a doença volta.

Os testes de stress europeus mostravam sempre bancos fortes.

Porque os resultados excelentes que davam eram todos falsos. Um teste de stress é uma estratégia horrivelmente arriscada, porque põe tudo a nu. E isso pode ser ainda mais assustador, levar as pessoas a fugir e a banca vai a baixo. Ou pode ser que as pessoas percebam quais são as doenças, tratem essas doenças e os bancos recuperem. Nos EUA foi aplicado a sério em 2009, na Europa também, só que o primeiro teste a sério na banca foi feito em 2014. Os problemas não estão só em Portugal; temos Itália, Chipre e outros, e a Europa não está a saber lidar com o problema. Perdemos a confiança na Alemanha e a Alemanha perdeu a confiança na Grécia e em Portugal… Felizmente não perdemos a confiança completamente, o que levaria à queda da União Europeia. Os alemães não querem pagar outra brincadeira europeia e por isso não querem fazer a União Bancária a sério, compreende-se. Aqui dentro é preciso fazer qualquer coisa para limpar a banca, para lhe permitir dar potencial ao desenvolvimento, que não está a acontecer. O crédito às empresas continua a cair desde 2011. O que está a subir é o crédito ao consumo e ao imobiliário – outra vez a mesma tolice de antes da crise. E o pouco investimento que está a ser feito é pelas próprias empresas. Não chega. O FMI fala nisto, a OCDE fala nisto, alguns economistas têm falado nisto, mas não contam em termos políticos. Parece que está tudo bem enquanto a anestesia, que é sobretudo o BCE a comprar a nossa dívida, mantiver as taxas de juro baixas. Como confundimos a anestesia com a cura, a doença volta. Claro, mais 20 anos disto e a coisa resolvia-se. Mas alguém acredita que vamos ter mais 20 anos disto?

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

A União Europeia já passou a fase perigosa em que podia desmembrar-se?

A União Europeia é uma impossibilidade histórica, não pode existir. E, no entanto, ela existe. E um fenómeno extraordinário. Todos os dias que passam, mais um dia que passa, é um milagre. É a primeira vez na história do planeta que temos países independentes a partilhar voluntariamente soberania uns com os outros. É uma experiência que ficará marcada para sempre no mundo, mesmo que a União Europeia venha a desfazer-se.  Esperemos que não, mas poderá desaparecer, é como o Império Romano. Uma das coisas que a União Europeia conseguiu foi dar mais visibilidade a estas pequenas pátrias de que fala o Prof. Adriano Moreira. Um Estado-nação é uma coisa extraordinariamente frágil. A maior parte dos países aqui à volta são uma manta de retalhos: a França, a Alemanha, a Itália. Poderia gerar conflitos internos brutais e a existência da União Europeia veio amortecer isso. O desenvolvimento económico de que falávamos há pouco também veio abrir brechas que já existiam. Alguns estão irritados com o governo central e aproveitam para lançar ideias, já vimos isso na Escócia, vemos agora na Catalunha. O que vai acontecer ninguém sabe. Madrid está com o vento pelas costas, Rajoy, que estava aflito e sempre esteve, tem um momento de glória pontual. Correu-lhe muito bem, não por mérito dele, mas por causa das empresas, que fugiram. O que de alguma maneira mostra a novidade do jogo. No mundo globalizado não se pode brincar com estas coisas. Se alguém começa a fazer parvoíces onde quer que seja, as empresas vão-se embora. E isto é verdade para Portugal, é uma lição importante. As empresas não querem estar ligadas a sarilhos, porque não podem, é uma questão de sobrevivência. Aquilo que podia ter sido uma coisa terrível para a Espanha e para a Europa, neste momento está a ser benéfico, porque poucos vão tentar [a independência] outra vez. Todos os separatistas da Europa estão a olhar para o caso da Catalunha e a aprender, a começar pela própria Catalunha.

Há para si alguma diferença entre as grandes empresas e a banca ficarem na mão de capital europeu ou na de terceiros?

Depende dos países terceiros. É muito importante que essas empresas quando estão nas mãos de estrangeiros seja de estrangeiros que estão na concorrência internacional. É completamente diferente de quando estamos nas mãos de angolanos ou de chineses, que são entidades que não respeitam as regras normais de funcionamento do mercado e da sociedade e, portanto, pode ser perigoso. Apesar de o objectivo dessas sociedades, mesmo com influências políticas locais, ser fazer dinheiro. E fazer dinheiro quer dizer funcionar como empresas. Se as nossas leis funcionarem e não os deixarem pisar o risco, se cumprirem as leis locais – e isso depende da nossa polícia, dos nossos tribunais, do nosso sistema judicial -, não há problema. É evidente que prefiro que seja uma empresa americana, espanhola ou francesa a comprar do que sejam angolanos ou chineses. E, muitas vezes por facilidade de crédito, fugimos para aí, para os sítios fáceis. Ou também para países árabes. Parece uma boa solução, mas não é nada. Quer em termos comerciais, quer em temos financeiros. É perigoso. A EDP foi comprada por chineses e agora eles têm uma influência diplomática imensa. Por exemplo, a entidade reguladora do sector eléctrico tem dificuldade em fazer o que deve ser feito, resolver a questão das rendas. Não é igual ter por trás o estado chinês ou ter um estado europeu, democrático. Isto pode ser complicado. A facilidade com que se resolveu o problema na altura, que era ganhar uns trocos, pode vir a ser paga mais tarde. E isso acontece nos seguros, na banca e noutros sectores. Mas estavam nas mãos de portugueses e foram muito mal geridas e até houve alguns desfalques. Chegámos ao limite absolutamente dramático de o segundo maior banco português ser posto em hasta pública e não haver um banco europeu, um banco americano, um banco de qualquer lado a querer comprá-lo, mesmo com as garantias dadas pelo Estado português. Isto mostra a profundidade da crise, a situação em que estamos. Bancos com problemas é normal, infelizmente, o que não é normal é ninguém os querer. Mas não é só o Banco Espírito Santo...

É extraordinário que ninguém se esteja a virar para o lado produtivo. Continuam obcecados com as garantias reais, querem ter por trás um prédio que acham que tem valor, quando não tem valor algum. Mas é muito mais difícil fazer uma análise dos negócios, ver o que têm de boa ideia, apostar neles.

Com as novas regras um banco já não é um bom negócio?

Claro, porque quando o negócio prosperava as coisas corriam mal. Agora temos mais regulamentos porque, quando se podia, se fez mal feito. A malta abusou, se não tivesse abusado não estavam lá estes regulamentos. É extraordinário, no entanto, que ninguém se esteja a virar para o lado produtivo. Continuam obcecados com as garantias reais, querem ter por trás um prédio que acham que tem valor, quando não tem valor algum. Mas é muito mais difícil fazer uma análise dos negócios, ver o que têm de boa ideia, apostar neles. Hoje não se faz actividade bancária porque é mais barato fazer outras coisas. É a má qualidade do nosso sistema bancário que tem a culpa do problema. Depois, surpresa quando o crescimento económico não aconteceu, veio uma crise financeira e foi tudo por água abaixo. O nosso sistema bancário está com um problema muito grave e anda toda a gente com paninhos quentes e a saltitar à volta a fingir que está tudo bem. Não está. O governo apresentou uma solução, um fundo de resolução, uma entidade para gerir os créditos. Talvez tenha o benefício de alguma coordenação, mas pouco mais. Estamos a brincar.

Por falar em entidades gestoras, este orçamento prevê a criação de uma entidade para gerir e fiscalizar a utilização do dinheiro dos hospitais. Que têm administrações. Quem é que vai fiscalizar o fiscal, chegámos a isso?

A solução é óptima para criar burocratas. A esquerda tem esta maneira de pensar, um amor ao burocrata, é para aí que está virada. Adoram o sector público e o burocrata e acham que criar mais burocratas acima dos burocratas resolve o problema. Como esses burocratas não funcionam, querem nova dose de burocratas por cima dos que já há. É uma velha solução; está na genética da esquerda e está a ser aplicada. É das poucas coisas em que se pode dizer que a esquerda em Portugal, afinal, é esquerda. Nas outras, infelizmente, há muito que deixou de ser esquerda. Mas esta é a má esquerda, porque havia uma esquerda boa, progressista e dinâmica. Estes estão todos viradinhos para o Estado, para o aparelho, para o burocrata. O ensino tem de ser público, por isso estão a destruir boas escolas para fazer mais ensino público, porque só pelo simples facto de ser público é bom. O mesmo com a saúde e outros sectores. Estão ansiosos, mas é uma lógica instintiva, não há nada a fazer. Se não fosse assim, coitados, já não havia esquerda. Tem um fascínio pelo público que gostava de perceber, porque a seguir, a esquerda diz mal do Estado. Há muita gente inteligente na esquerda e gostava que me explicasse o que é isto, gostava de perceber como é que estão sempre a dizer mal e sempre a querer mais.

Suponho que a medida tem a ver com a ameaça feita pela Comissão Europeia de levar Portugal ao Tribunal Europeu por causa dos atrasos nos pagamentos, sobretudo na área da Saúde, onde se paga em média a 300 dias em vez de 30.

Isto é uma forma de dívida pública. As dívidas a fornecedores não contam para a dívida pública, mas são dívida pública. Não tenho tanta pena do tecido empresarial, porque só lá vai quem quer. As empresas que vão ao Estado já sabem o que as espera, já sabem que o Estado é caloteiro. O mundo é muto grande, mas elas estão ali. Quem é prejudicado por isto não são estas empresas, que reflectem isso nos preços, não são fraquinhas. Quem é prejudicado com isto são os utentes, que pagam mais caro e têm pior serviço. É assim que tudo isto é pago aos contribuintes, com pior qualidade de serviço e preços mais elevados.

O Estado é um devedor por direito - que depois cobra juros de mora exorbitantes ao contribuinte?

É o Estado. Sempre foi assim e não estou a ver que mude. No final ainda ficamos agradecidos quando nos dão algumas benesses… Somos muito socialistas e, pior, paternalistas. Adoramos ter o Estado a tomar conta de nós. Como não temos alternativa, porque só temos este Estado, ainda queremos mais, mais mecanismos para o Estado nos enganar mais vezes.

eu já disse que António Costa é um génio político, mas não tem qualquer comparação com Marcelo Rebelo de Sousa, que é um génio político dez vezes melhor do que ele.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

A propósito de paternalismo, como vê a relação entre o presidente da República e o governo?

Bem, eu já disse que António Costa é um génio político, mas não tem qualquer comparação com Marcelo Rebelo de Sousa, que é um génio político dez vezes melhor do que ele. É um homem instintivo, genial, e se António Costa está a ser um génio por gerir a coisa e estar a conseguir mantê-la, Marcelo Rebelo de Sousa está três passos adiante. Evidente que todos os presidentes, tirando o Dr. Mário Soares no tempo de Cavaco, querem estabilidade política, o seu mandato depende disso. Mas o presidente vai ter de se ir crescentemente revelando porque os problemas vão ser crescentemente mais violentos. Quando começar a decadência, e pode ser que já tenha começado, vamos ver. E será uma decadência rápida, precisamente porque o governo não é coeso e pode esboroar-se. E essa decadência, o presidente da República não vai estar nela, vai saltar muito antes. Não estou a fazer futurologia, porque este período está mais imprevisível do que algum outro, mas parece-me evidente.

Eu costumo dizer que quem quer felicidade, a Faculdade de Teologia é ali ao lado, aqui na Business School trata-se de bem-estar.

O dinheiro traz felicidade?

Felizmente a felicidade não é uma coisa que dependa do dinheiro; se dependesse estávamos tramados. Traz bem-estar. Eu costumo dizer que quem quer felicidade, a Faculdade de Teologia é ali ao lado, aqui na Business School trata-se de bem-estar. E o bem-estar é um elemento importante para a felicidade; uma pessoa que está doente, na miséria, com fome, desempregada, não consegue ser feliz. Ainda assim, há quem consiga. Também temos pessoas empanturradas em dinheiro e que são infelizes. A felicidade depende de outras coisas e é importante termos consciência disso. O desenvolvimento traz-nos bem-estar. Nos países mais ricos já começa a haver muito essa discussão, que é dizer onde é que isto pára? Será que vale a pena? Temos níveis de vida de 70 mil dólares per capita, vamos aos 100 mil, 150 mil, 200 mil? Vale a pena continuar nesta corrida frenética quando depois vemos que a felicidade depende de outras coisas, realmente? Estas coisas são estudadas e mesmo na Economia já há alguns estudos sobre a felicidade, que se mede perguntando às pessoas se são ou não felizes e descobrindo o que têm as pessoas que dizem ser felizes. Um elemento é o bem-estar directo, mas há outras coisas: a família, a religião, a comunidade onde está inserida, a actividade que têm. É curioso ver que muitas das políticas que vão no sentido de aumentar o tal bem-estar estragam a felicidade noutras coisas. Se estiver a trabalhar de manhã, de tarde e à noite, não consegue ter confiança nos vizinhos, nem os conhece, não vê a família, saúde não há-de ter muita. O que isto quer dizer é que temos de encontrar um equilíbrio. E não está a ser fácil. Ainda por cima alguns interesses económicos vivem de vender muito e de criar necessidades. Temos jovens capturados por estas coisas, querem o último jogo e o próximo jogo, mais um site e estão nesta ânsia que enche os bolsos e destrói a sua felicidade. Aí, a solução não está na economia, está noutro lado, na formação pessoal, na dignidade, na afirmação de valores que, como sabemos, acabam por ficar em segundo lugar. Por muito que as questões económicas tratem o tema, as pessoas acabam por ser escravas de si próprias.

Reza?

Rezo o mais que posso. Mas também é preciso rezar outra coisa, não para pedir, mas para aceitar o que o Senhor nos dá. Se dá não é por más razões, é por boas razões. Como já disse várias vezes nesta entrevista, como sei que os problemas são complicados, tenho a certeza que se peço e não me dá é porque o que estou a pedir não é bom. Eu sugiro, mas ele é Deus, sabe melhor do que eu.

Reza pelo quê?

Faz parte da minha vida. Não vivemos para este período, vivemos para o céu e estou a preparar-me para ir para o céu a maior parte da minha vida. E é isso que conta, este período aqui na terra só faz sentido com os olhos no céu. E a oração é isso, vivermos este período, a sala de espera, para o momento que é o definitivo com o Senhor. E o Senhor já cá está, veio de propósito para estar connosco. Embora não seja definitivo, ainda é temporário, parcial, mas já é uma vida com Cristo.

Os seus alunos nunca se metem consigo por esta sua maneira de pensar?

Não, por acaso não. Dou aulas a anos muito diferentes e nunca ninguém me chamou a atenção para isto. Podem vir falar comigo porque são católicos como eu, mas não são muitos, não é um assunto. Temos tantos assuntos dramáticos para tratar nas aulas de Economia e há tantos problemas de equações que não sobra tempo. Tenho vários momentos nas cadeiras, dou abertura para os temas que quiserem e os alunos perguntam muitas coisas, mas é raro aparecer uma questão religiosa. Isto a todos os níveis, dos executivos que cá vêm, e são geralmente pessoas mais velhas, aos jovens caloiros. Dou cadeiras de ética, por exemplo, de doutrina social da Igreja, onde a questão é religiosa. Mas tirando isso, normalmente o problema dos alunos é outro: passar no exame.

Há uma anedota: São Pedro fica a tomar conta do céu e, para distinguir os bons dos maus, Deus explica-lhe que os que pegarem na Bíblia vão para o céu, os que agarrarem no maço de notas vão para o Inferno. Até que chega um homem que pega na Bíblia, folheia umas páginas e vai metendo notas. S. Pedro fica aflito e Deus diz-lhe: “Ah, esse é economista”.

O que está errado nessa abordagem é supor que são coisas opostas. Não são. Podem ser dependendo da forma como as vivemos. Evidente que – e o Evangelho tem várias alusões a isso – podem ser coisas opostas. Se fizermos do dinheiro o nosso objectivo estamos perdidos. O dinheiro, que é um péssimo chefe, é um óptimo servidor. A economia não tem a ver com o dinheiro, tem a ver com o bem-estar. E eu, que sou economista e sou católico, desde o princípio que tenho trabalhado nisso intensamente, já escrevi vários livros sobre o assunto. É preciso perceber, e os grandes padres da Igreja nem sempre abordaram o assunto desta maneira, que o dinheiro em si não dá felicidade porque não é felicidade, é um instrumento para obter bem-estar. E o bem-estar poderá ser um instrumento para a felicidade. Se estas coisas estiverem alinhadas podemos ter uma situação excelente. Se alguma se desviar podemos ter a perda da pessoa. O dinheiro é perigoso, mas é perigoso como pode ser perigoso um automóvel. Qualquer coisa que é poderosa é perigosa e o dinheiro é muito poderoso. Mas pode ser um excelente instrumento. Perceber isto no dia-a-dia é uma coisa que tento explicar nas aulas àqueles que vão estar nas empresas, às vezes em multinacionais com muito dinheiro, e que é importante que percebam. É difícil porque estamos a falar de coisas que são pegajosas, mas é possível. Tem de ser possível, porque a alternativa era vivermos no deserto ou como os monges, que também são necessários, mas deixaríamos a maior parte do mundo sem nada. Num mundo muito económico como é hoje, compreender este fenómeno é extraordinário e decisivo. Jesus era carpinteiro, tinha um negócio. Cabe a cada um de nós perceber o que fazer com as ferramentas que estão ao nosso alcance nos sítios onde estamos. E Jesus veio cá viver e morrer connosco, portanto, é aqui e agora naquilo que estamos que temos de fazer de outra maneira, de uma maneira cristã. E não tentar inventar o mundo ideal - a Igreja várias vezes ao longo da história teve essa tentação e correu muito mal. Os apóstolos eram pescadores, falavam para famílias, para mercados. A Igreja tem 2000 anos de ensinamentos que nos ajudam a perceber isto e este Papa tem falado sobre o tema com muita clareza.

É mais difícil ser-se católico hoje do que há 20 anos?

É mais fácil em certas coisas e mais difícil noutras. O mundo vai mudando, os desafios também. Felizmente os desafios antigos estão resolvidos e a Igreja tem sempre adversários assustadores e também os antigos, que já morreram e são passado, são história. É só preciso não estarmos a cair no erro que infelizmente muitos generais cometem nas batalhas que é combater a guerra antiga, combater o inimigo que já está morto. E há ainda hoje muita gente a lutar contra os inimigos do século XIX ou do princípio do século XX. Eram inimigos assustadores, mas já acabaram. Agora estão a aparecer novos inimigos, noutros sítios, e é para aí que temos de nos virar. O combate vai ser até ao último homem, não vamos ter tréguas. Vamos continuar a lutar pela afirmação de valores.

É preciso uma certa valentia para ser de direita e católico?

Costumo chamar a isto o teorema Mário Soares. Soares uma vez explicou que a esquerda nos últimos 150 anos – estávamos na altura nos anos 80 -, sempre se tinha destroçado quando ganhou o poder por atacar duas forças: a Igreja e os militares. Um erro terrível. De alguma maneira esta democracia funcionou pela primeira vez na história - nunca tivemos uma democracia a funcionar como esta -, porque a esquerda percebeu que a irritação figadal contra a Igreja e os militares era estúpida. Acabava por lhe cair em cima. A esquerda fazia o gosto ao dedo a desancar essas instituições e perdia o poder. A esquerda actual tem sido até bastante respeitosa com a Igreja e ainda bem, é bom para toda a gente. Mas é preciso perceber que em termos culturais há um combate, como haverá sempre. Quando o nosso chefe máximo foi crucificado, o que fizeram aos discípulos? É normal. Em termos culturais existe uma luta que acaba por correr mal. O Papa veio cá, e não foi apenas o Papa Francisco, foi o Bento XVI, que culturalmente era muito mais atacado, e conquistou o país. Isto mostra que a luta cultural não faz sentido, mas em certas frentes – casamento, família, homossexualidade – é normal que haja combates em Portugal. E se há alguma diferença em relação aos combates aqui e noutros sítios é que são, por um lado, menos dramáticos na comunicação social, por outro, mais estúpidos no lado parlamentar. Porque a esquerda, que está a fazer política de direita em termos económicos, tem depois de polir os seus emblemas ideológicos tendo as políticas mais avançadas do mundo. E temos aqui as políticas mais tontas, estúpidas. Mas como ninguém liga nenhuma à lei, porque também ninguém liga às outras leis, isto acaba por não ser tão dramático como parece, sem querer minimizar o problema.