Assinalou-se recentemente o Dia Mundial da Diabetes (14 de novembro) e gostava de começar a nossa conversa por lhe perguntar quais são as boas notícias?

Temos certamente boas notícias, no sentido em que temos bons profissionais de saúde, temos equipas no terreno ao nível dos cuidados de saúde primários e hospitalares, com profissionais de saúde motivados, temos acesso a terapêuticas medicamentosas, vamos tendo acesso à tecnologia, tivemos recentemente a notícia, por parte do Ministério da Saúde, sobre a alteração do processo de distribuição das bombas de insulina às pessoas com diabetes tipo 1, o que permite simplificar-lhes a vida e também aos profissionais de saúde que as acompanham.

Estas são as boas notícias, mas estamos num país que tem uma elevada prevalência de diabetes. Somos dos países da Europa com maior prevalência de diabetes, fruto de termos uma população que está mais envelhecida do que as outras populações, mas também fruto dos nossos hábitos culturais, nomeadamente da alimentação, e do nosso estilo de vida em geral, que nos dá uma prevalência também da obesidade que começa muito cedo em Portugal.

Há vários tipos de diabetes, qual é a diferença entre a diabetes tipo 1 e tipo 2 e que diferentes cuidados devem ser observados?

Chamamos diabetes a um conjunto muito diferente de doenças que só têm uma característica comum, que é serem diagnosticadas por níveis muito elevados de açúcar no sangue. Cada tipo de diabetes distingue-se pela razão que levou ao aparecimento destes níveis de açúcar elevados.

Na diabetes tipo 1, o corpo de quem tem a doença, a determinado momento, muito mais frequentemente na idade pediátrica, deixa de reconhecer as células que produzem insulina, uma hormona muito importante para mantermos a nossa energia. Neste processo designado de autoimunidade deixamos de reconhecer uma parte do nosso corpo e o organismo vai destruí-la. Neste caso, falamos das células que produzem insulina. Portanto, quem tem diabetes tipo 1 tem uma doença autoimune porque criou anticorpos contra as suas células e mobilizou o processo de destruição destas, o que faz com que as pessoas que têm diabetes tipo 1 precisem de administrar continuamente insulina. E a forma de aparecimento da diabetes tipo 1, até ao momento, é através dos sintomas. Estamos perante crianças e jovens que estão bem até a um determinado momento e, de repente, os próprios, a família ou os amigos começam a referir que está a beber muita água, a urinar muito, com muita fome, a emagrecer, a ficar cansado, irritado. Se nada for feito, estas crianças e jovens vão a um serviço de urgência e acabam por ficar internados por descompensação da diabetes tipo 1.

Esta diabetes é um das doenças crónicas mais comuns na infância e adolescência?

É a doença autoimune crónica mais frequente na idade pediátrica, ou seja, até aos 18 anos. Mas, na verdade, temos de ter noção de que pode aparecer em qualquer idade. É sempre possível aparecer diabetes tipo 1 em pessoas acima dos 18 anos e, agora que medimos com mais frequências estes anticorpos que são a característica da diabetes tipo 1, verifica-se que uma percentagem das pessoas que estão classificadas como tendo diabetes tipo 2 provavelmente são casos de diabetes tipo 1 que não estavam diagnosticados.

No caso da diabetes tipo 2, como se estabelece o diagnóstico?

A diabetes tipo 2 é a que representa o verdadeiro tsunami quando falamos da doença. Representa mais de 95% dos casos de diabetes no mundo e está associada aos estilos de vida, ao excesso de peso, à obesidade, ao sedentarismo e ao modelo de sociedade em que vivemos, desde o acesso aos alimentos até ao tipo de trabalhos em que já não há tanta atividade física. A maior parte das pessoas com diabetes tipo 2, ao contrário do que se passa com as pessoas com diabetes tipo 1, não são diagnosticadas pelos sintomas, mas sim por análises ao sangue ou porque fizeram uma ficha de avaliação do risco de ter a doença. Não podemos esperar pelos sintomas para diagnosticar a diabetes tipo 2, porque quando aparecem a doença já existe há mais de 5 ou 10 anos e as pessoas já começaram a desenvolver complicações que lhe estão associadas.

Voltando à diabetes tipo 1 e à importância do diagnóstico precoce. Que recomendações é que podem ser dadas às famílias, atendendo que afeta sobretudo crianças e jovens?

Até há muito pouco tempo – este ano – não falávamos de identificação precoce da diabetes tipo 1, ou seja, só com os sintomas é que as crianças e os jovens eram diagnosticados. Este ano, em muitos países da Europa, incluindo Portugal, já é possível, em crianças da população em geral, com uma picada no dedo medirmos se existem os anticorpos que revelam a presença de diabetes tipo 1 e, portanto, não deixamos que as crianças positivas evoluam para esta forma de descompensação grave, nem sequer esperamos pelo aparecimento dos sintomas. Com o acompanhamento de equipas dedicadas conseguimos evitar essa descompensação. E isso  abre uma outra janela, porque começam a aparecer medicamentos que permitem, nesta fase muito precoce de diagnóstico da diabetes tipo 1, ainda sem sintomas e com os níveis de açúcar no sangue praticamente normais, travar o processo de destruição. Estas crianças, provavelmente, nunca chegarão a ter esta forma de diabetes tipo 1.

É possível fazer esse teste na idade adulta?

É possível, mas 50% dos casos de diabetes tipo 1 estão concentrados entre o primeiro ano de vida e os 18 anos. A partir daí temos uma outra distribuição de casos e uma incidência mais baixa.

No caso da diabetes tipo 1 há algum peso da hereditariedade?

As pessoas que têm diabetes tipo 1 herdaram geneticamente uma predisposição para ter algumas doenças autoimunes, mas não é o que causa a doença. A maior parte dos casos aparecem em famílias onde não há outros casos de diabetes tipo 1. No caso da diabetes tipo 2 é o contrário. Tipicamente, encontramos familiares com diabetes tipo 2, excesso de peso e obesidade na família, hipertensão, alteração dos níveis de colesterol no sangue e estilos de vida que contribuem para a evolução da diabetes tipo 2.

A diabetes tipo 1 tem um impacto ao nível familiar, escolar e social. Hoje já é possível ter um cenário mais esperançoso na forma de viver com a doença?

Temos em Portugal, como referi, equipas treinadas e motivadas para este acompanhamento. Neste momento, viver com diabetes e, neste caso, com diabetes tipo 1, representa um peso significativo para a criança ou jovem e para as famílias. A diabetes ainda está associada a um estigma, provocando por vezes problemas de integração, nomeadamente no meio escolar – felizmente, é uma minoria de situações, mas para quem tem um filho que sente receber um tratamento diferenciado tem impacto, desde a não aceitação da doença ao abandono da terapêutica. Tem peso psicológico e impacto nos resultados escolares.

As novas terapias permitem uma nova abordagem. Como funcionam e que impacto têm na vida de quem tem diabetes tipo 1?

Estas notícias mais recentes sobre bombas de insulina referem-se a sistemas que permitem simplificar significativamente a vida das pessoas com diabetes tipo 1, já que se trata de um dispositivo que consegue ir medindo simultaneamente os níveis de açúcar no sangue e comunicando com uma programação informática, que vai sugerindo as doses de insulina que vão sendo administradas. Isto significa que muitas das decisões que uma pessoa com diabetes tipo 1 tem de tomar no seu dia a dia, como verificar os níveis de insulina e acautelar a dose face aos resultados, são eliminadas pela utilização destes dispositivos. Para termos uma noção do impacto, na idade pediátrica, a criança e os seus cuidadores têm de acordar uma ou duas vezes por noite para verificar se têm níveis demasiados baixos ou demasiado altos de açúcar no sangue. Estamos a falar de anos e anos de vida em que nenhuma destas pessoas dormiu uma noite seguida. A existência destas bombas de insulina permite que voltem a dormir. Só quem passa por estas experiências é que pode valorizar o que isto muda em termos de qualidade de vida.

Há avanços em termos de inovação no tratamento e nas tecnologias de saúde muito significativos e penso que daqui a cinco anos teremos um mundo completamente diferente para quem tem diabetes tipo 1.

Que mensagem é importante passar no sentido de incentivar a uma maior prevenção no que toca à diabetes em geral e à diabetes tipo 1 em particular?

O sucesso do tratamento de qualquer forma de diabetes, tipo 1 ou 2, passa por atuarmos paralelamente em vários níveis. A nível individual, cada um de nós tem de ser responsável por adotar o melhor estilo de vida possível, para si e para a família, no sentido em que somos responsáveis pelas nossas escolhas alimentares, por praticarmos mais atividade física e valorizarmos este tipo de comportamento. Qualquer família pode fazer isto desde muito cedo com as crianças e vai traduzir-se em ganhos de saúde no futuro, incluindo em situações de diabetes tipo 2.

O próximo nível prende-se com a forma como organizamos o nosso modelo de sociedade, porque aí também há responsabilidades. Se alimentos de pior qualidade forem mais baratos é evidente que para uma boa parte da população não há escolhas alimentares. E reflete-se noutros níveis, como o modelo de urbanismo - se é mais fácil andarmos a pé ou se temos de nos inscrever num ginásio para fazer atividade física. Tem de haver uma estratégia combinada entre pessoas e sistemas, caso contrário continuaremos a falar do aumento dos casos de diabetes tipo 2.

Em relação à diabetes tipo 1, a estratégia passa por, para quem puder, levar as crianças e jovens a projetos de rastreio para percebermos qual é o número de crianças, aparentemente saudáveis, que já têm estes anticorpos. E esperamos que em muito pouco tempo Portugal esteja em condições de decidir se vai implementar um programa nacional de rastreio e diagnóstico precoce de diabetes tipo 1, alterando o panorama das crianças e das famílias que são hoje internadas durante uma semana no início da doença. Hoje sabemos que é possível alterar este cenário.