Portugal subia ao relvado pela primeira vez num Campeonato Mundial de Futebol. Estádio de Old Trafford, Manchester. A bola começava a rolar no primeiro jogo da seleção no Mundial de 1966. Por cá, colado à televisão, estava um país (o que já a tinha nessa altura, visto que para muitos a televisão ainda era uma miragem da grande cidade) que vibraria com os nove golos que o ‘pantera negra’ marcaria para Portugal ao longo do campeonato.
“Há público para dividir, já não há é publico para somar”
Quase a fazer seis anos, João Gobern assistia colado à televisão a retransmissão do jogo Portugal-Hungria pela RTP, então Radiotelevisão Portuguesa. É esta a primeira memória que guarda da televisão que acabou por crescer com ele.
Portugal tinha então um canal de televisão. Para poder ver mais o país teve de esperar por um presente de Natal que chegaria dois anos mais tarde, a 25 de dezembro de 1968, com o começo de emissão do II Programa (atual RTP2). O salto para o começo das emissões privadas dá-se só longos anos mais tarde, com a chegada dos anos 90. A SIC, de Francisco Pinto Balsemão, e a TVI, da Igreja Católica, vencem o concurso público e iniciam emissões em 1992 e 1993, respetivamente. É aqui que termina o livro. Será este o momento em que a televisão deixou de parar o país?
A fragmentação da televisão em vários canais, algo que foi potenciado pelo grande crescimento do número de consumidores de televisão por cabo em resultado da falta de oferta da televisão analógica e, numa fase posterior, da Televisão Digital Terrestre, faz as generalistas perder quota de mercado. Para Gobern, que acumula a presença como comentador no Trio de Ataque (RTP3, RTP África e RTP Internacional) com a rádio em Hotel Babilónia e Bairro Latino (Antena 1), “há público para dividir, já não há é publico para somar”, talvez por isso as generalistas “nunca mais vão voltar a ser o que eram” no tempo em que não havia alternativa.
“(Na televisão) optou-se pela via do facilitismo”
Se o livro se foca no período antes do aparecimento da SIC, Gobern admite que o grande avanço aconteceu com o aparecimento das televisões privadas. “Houve um extraordinário aumento da qualidade técnica”. É certo que a RTP não estava preparada para esse momento e optou por uma política de “terra queimada” ao comprar mais minutos de séries internacionais do que aqueles que conseguia emitir para tornar mais difícil o caminho aos canais privados.
“A história passou-se comigo” introduz-nos Gobern no prefácio do livro lançado em dezembro último. Estamos com ele dentro da história, isto não se passou apenas com o "rapaz" João que mais tarde cresceu, passou-se com várias gerações de portugueses que nasceram até aos anos 90. “A visita da Cornélia”, “Zip-zip”, "Festival da Canção" ou “1,2,3” são memórias coletivas de um país e fazem parte do nosso património audiovisual.
Cuidadosamente organizado, o livro é uma viagem de memórias ao melhor dos nossos serões, ou então dos serões dos nossos pais e avôs.
“Eu tenho dificuldades em perceber que os programas de hoje possam deixar tantas memórias como os de antigamente”, diz Gobern, que dedicou uma parte da sua vida à televisão. “Acho que hoje a capacidade de reação, e a capacidade crítica de uma parte dos espetadores é nula”, isto porque os espetadores “olham para a televisão como para a fast food: o que é preciso é comer qualquer coisa”.
A influência da RTP foi indiscutível até, pelo menos, 1995, altura em que perde pela primeira vez em audiências contra a SIC. É celebre o episódio conhecido por “Pato com Laranja”, 12 anos antes do fim do monopólio da RTP.
Na noite de 21 de setembro de 1983, assim que acabou o Telejornal, foi emitido o filme erótico italiano (datado de 1975) no espaço “Noite de Cinema”. Este filme não estava inicialmente previsto, mas acabou por ir para o ar em substituição de outro. Na sua imagem mais ousada, o filme mostrava uma mulher nua, de costas, sentada num sofá, algo que provocou 11 telefonemas de indignação feitos por telespetadores, e que obrigou o então presidente do Conselho de Administração da RTP João Palma Ferreira a pedir que retirassem o filme do ar a meio, ficando a RTP 'a negro' durante largos minutos. O caso levou a um aceso debate parlamentar e acabou com a demissão de João Palma Ferreira. Já o cinema erótico na RTP ficou de fora durante os oito anos seguintes.
Hoje não é difícil ver conteúdos desta natureza numa escala maior e em sinal aberto, como nos reality shows. “A televisão optou por um caminho degradante”, considera João Gobern. “Optou-se pela via do facilitismo”, quando se opta “pelos mesmos formatos de sempre”. E é “uma figura degradante para o espetador, mas também para o apresentador que faz figuras tristes”.
“As pessoas param pontualmente para ver futebol ou param pontualmente para ver um acontecimento com a dimensão de um 11 de setembro”
“Hoje o desnível entre profissionais de televisão é muito maior”, isto porque continuam a existir os grandes profissionais mas surgiram aqueles que “parece que passaram à porta do estúdio e ficaram, não se sabe bem como”.
“Se pensarmos no legado da RTP como uma herança de personalidade, vemos que ainda hoje são raras as grandes figuras da televisão que não passaram pela escola da RTP”. Se é certo que há figuras que marcaram a caixa mágica e que apenas remontam a um tempo, há rostos que nunca deixaram que lhes apagassem a luz dos holofotes. Júlio Isidro é hoje locutor de continuidade da RTP Memória, apresentador do Inesquecível e participante no painel do “Trás para a frente” do mesmo canal. Teresa Guilherme apresenta ‘reality shows’ na TVI. Manuel Luís Goucha é o rosto das manhãs da TVI, no programa Você na TV. Catarina Furtado é a cara do ‘The Voice Portugal’ e de ‘Príncipes do Nada’. Herman José, mantém-se “cá por casa” na RTP1. José Rodrigues dos Santos é, ainda hoje, cara do Telejornal. Todos eles são recordados neste livro como figuras históricas da televisão, e que, também eles, tiveram a proeza de parar o país.
“(Hoje) um êxito que podia ser coerentemente pontual é arrastado no tempo”
Na capa do livro “Quando a TV parava o país” figuram muitos dos nomes que marcam (e marcaram) a televisão em Portugal. Fica a questão: a caixa mágica já não para o país, como quando Portugal ganhou a final do Europeu de Futebol em Julho de 2016? “As pessoas param pontualmente para ver futebol ou param pontualmente para ver um acontecimento com a dimensão de um 11 de setembro”, conclui João Gobern.
Nesse caso, está a televisão a precisar de se reinventar? João Gobern acredita que isso vai acontecer, “mas acima de tudo o que se vai reinventar é a forma como consumimos televisão”. Cenários apocalípticos estão de parte para o autor. “Eu não acredito no fim da televisão, as coisas vão é mudando”. Se há uns anos alguém “falhava um programa na televisão, a pessoa sentia-se excluída porque isso era assunto de debate no dia seguinte, hoje isso já não acontece e podemos sempre puxar para trás”. “Havia um consumo familiar da televisão, que hoje não existe” e a causa desse desaparecimento está na fragmentação dos conteúdos. Como podemos dizer a um miúdo para ver um concurso de uma televisão generalista quando existe um canal especializado para ele?
"A televisão desilude-me quando se afasta das pessoas ou baixa de um determinado nível"
A opção pela via do facilitismo, considera o autor, também acabou por ter influência na forma como o público lida com os conteúdos. “Hoje tentar que um debate político tenha mais de 45 minutos é matar o programa à partida. O frente a frente entre Soares e Cunhal teve 3 horas e as pessoas viram”.
A aposta sistemática nos mesmos formatos porque antes tiveram bons resultados é também um problema: “Um êxito que podia ser coerentemente pontual é arrastado, esticado”. “Zip-Zip” ou “A visita da Cornélia” tiveram períodos de emissão muito mais curtos e mesmo assim “marcaram gerações como poucos”, lembra.
A televisão terá desiludido quem também a faz, como é o caso de João Gobern? “A televisão desiludiu-me muitas vezes”, confessa. “(Desilude) quando em vez de entreter de uma maneira formativa, se dedica ao desígnio do ‘o que é preciso é ter o boneco a mexer’”, e desilude “quando se afasta das pessoas ou baixa de um determinado nível”. “Há programas hoje que são absolutamente insuportáveis”, acrescenta.
Tudo se torna mais difícil quando se torna pessoal, e João Gobern não podia fugir à difícil questão: ’Agora escolha’ rádio ou televisão? “Se disso não dependesse a minha subsistência preferia a rádio, sem desprimor à televisão”, responde, mas sossega os apaixonados da TV: é apenas porque se sente “mais confortável” com o obscuro estúdio de rádio do que com os holofotes da caixa mágica.
Antes de 'fecharmos o programa' desta entrevista, é com amizade que nos despedimos de Gobern, tal como fazia o Engenheiro Sousa Veloso aos seus telespetadores no TV Rural. Não até ao próximo episódio, mas, quem sabe, até ao seu próximo livro.
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