"Começa-se a brincar aos touros em miúdo e, pelas circunstâncias, isso converte-se na nossa vida". É assim que João Silva resume a sua história, ainda breve, mas já cheia de êxitos, no mundo da tauromaquia.
Nasceu e cresceu em Monforte, distrito de Portalegre, até entrar na adolescência e ir viver para Badajoz com o pai, bandarilheiro e subalterno do mestre João Moura, "figura máxima daquele momento".
Tinha meses quando assistiu às primeiras corridas de touros - as fotografias provam-no -, mas a primeira recordação a sério de uma tourada é da inauguração do Campo Pequeno, em Lisboa, teria uns cinco anos: "Talvez seja das primeiras corridas que me lembro de ver, de sentir, e que me cativou", conta.
"Juanito" fala com um sotaque alentejano carregado, mas já com muito portinhol (ou espanholês) pelo meio. Veio diretamente de um dia de treino em Badajoz, com uma paragem no Alentejo, em casa da mãe, para a redação do SAPO24, onde conversa com a certeza inabalável dos 23 anos e sem falsas modéstias. Para ele, "o toureio é uma forma de vida".
Põe-se sério quando posa para as fotografias, como se o touro estivesse ali a seus pés, até a respiração se altera. Por segundos, tudo parece suspenso. Transpira. No fim descreve "como é belo ver um animal com 550 quilos investir e traçar uma circular à roda do nosso corpo. É magnífico e nunca se vai ver noutro tipo de arte que não seja esta".
Para João Silva "não existem maus touros". A forma como se lida com eles "depende da personalidade do toureiro mas, sobretudo, da personalidade do touro. Cada touro é diferente do outro e é preciso entender o que quer a cada momento: mais toque, mais movimento, mais voz, exigir aqui ou aliviar ali".
"Seria mau se falássemos mal do touro. O toureio vai de dominar, de fazer o que queremos com o animal. Para sermos melhores a cada dia temos de pôr as culpas em nós, tentar mais investidas na nossa cabeça, tentar entender o que o touro quer a cada momento", sublinha. Mas podem existir touros "mais nobres", com "um tipo de investida com mais classe" e "que nos permitem expressar mais a nível corporal e estético, com mais elegância e mais ao nosso gosto", admite.
"Dois companheiros que morreram num espaço de dois anos, colhidos por cornadas fatais"
Na praça não é muito de voz. "Entendo o toureio como algo espiritual, algo que simplesmente temos de fazer para levar as pessoas a conectarem-se através de um valor, da postura e da arte que levamos dentro a conduzir esse animal tão grande e com tanta nobreza até ao final".
Já passou por diversos sustos, alguns grandes, mas nada com gravidade, ao contrário de "dois companheiros que morreram num espaço de dois anos, colhidos por cornadas fatais", lamenta. "Estamos a falar de uma profissão muito séria, um touro mata e temos de ter consciência de que esta é uma arte na qual o protagonista também pode morrer".
Juanito também tem "medalhas", com lhes chamam os toureiros, cada uma com a sua história: uma cornada numa perna, em Olivença, "que foi complicada pelas artérias e nervos que apanhou", outra atrás do joelho esquerdo, em Almería, outra que nem deu por ela, em Madrid, um rasgão por causa de uma bandarilha, no Campo Pequeno...
Quantos pontos? Nunca contou: "Deste lado 17, depois aqui mais 13, esta foram 15, aqui outros seis", começa. No total, talvez uns 100 pontos, e isso porque "o corpo me permite estar fino", seria diferente se "estivesse mais forte de pernas".
Aguenta coração de mãe - agora não namora, mas já teve namorada e "ela digeria bem estas coisas, porque também era aficionada, desfrutava. Mas entendo que se passa mal, que os que estão mais perto de nós passam mal, podemos sempre não voltar a casa".
Apesar disso, garante, "quem tem de manter a calma é, em primeiro lugar, o toureiro. A minha mente tem de estar preparada para se um touro me colher eu levantar-me, limpar-me, meter-me no sítio e continuar a tourear".
"Entendo que os que estão mais perto de nós passam mal, podemos sempre não voltar a casa"
E é para minimizar riscos que trabalha todos os dias. "Não é como ter um trabalho de oito horas", das nove às cinco. "Vou para a cama a pensar nos touros e durante o dia é igual". Levanta-se todos os dias às 8:30, está com a sua quadrilha, os seus bandarilheiros, que também se preparam, e às 9:00 corre entre oito e dez quilómetros a um ritmo forte, no meio do campo, com várias subidas. Depois passa para o toureio de salão, duas horas a treinar movimentos e investidas, "muito devagar, hiper-devagar, casi irreal".
"Isto nos dias em que o preparador não vem connosco e fazemos exercícios específicos de treino de explosão, porque o toureio são muitas explosões no meio da faena, picos intensos, em que o touro sai e o paramos, para depois o nível de stress baixar. O toureio bom é devagar, quanto mais devagar melhor, o chamado "temple"", diz João Silva.
Mas o treino não acaba aqui. Ainda vem o ginásio e, à tarde, tirando a corrida, vira o disco e toca o mesmo. Há ainda os dias de preparação dos touros, em que se aproveita para tourear no campo como na praça; "os ganadeiros têm de selecionar as vacas para a ganadaria continuar a evoluir e, com a nossa equipa, toureamos para preparar o que vamos fazer na arena".
Juanito diz que não é supersticioso, "mas é verdade que todos temos manias. Tento ter as mínimas possível, porque acho que isso só serve de desculpa para quando as coisas não nos correm bem. Aferramo-nos muitas vezes a algo que não tem muito sentido".
"O PAN não merece que lhe demos importância"
João Silva nasceu, cresceu e viveu no meio tauromáquico."Amigos dos meus pais são grandes toureiros e o meu pai era bandarilheiro. Tive essa sorte, o que me despertou o interesse antes, mas a afición nasce connosco", assegura.
Começou a tourear muito cedo, "acho que toureei a minha primeira bezerra com quatro anos. Era muito pequena, mas por o meu pai estar em casa do cavaleiro João Moura toureava todos os dias e, no final, ia às vacas, às bezerras. Era voltaretas quase todos os dias [ri], estava a começar".
Quando era pequeno um amigo do pai, da comunidade espanhola, dizia-lhe muitas vezes: "Vais ser toureiro e vais-te chamar Juanito". "Esse empresário tem agora de negociar comigo para me contratar para as suas praças", diz, "é uma história bonita".
Porquê o toureio a pé? "Porque realmente sonhava mais o que faziam a pé do que a cavalo. Respeito muito os cavaleiros e admiro o que fazem, mas é como tudo, há os que escolhem ser guarda-redes e os que gostam mais de ser avançados. Era o que me cativava e o que me chamava a atenção, um homem capaz de oferecer a sua vida, cara a cara com um touro, ainda para mais no caso de Espanha", explica Juanito.
E foi numa corrida em Olivença, "numa matinal", que tomou essa decisão. Teria uns seis anos e quando saiu do espetáculo disse aos pais: "Quero ser toureiro".
"O que não respeito é os que são os anti só para serem do contra, são anti-gostos dos outros. Isso não respeito"
João Silva não concorda que haja hoje menos aficionados, menos espetáculos ou que as touradas estejam a perder a tradição. Mesmo sem as transmissões na RTP, mesmo com o IVA nos 23%, mesmo com a declaração pública de António Costa, em 2018, de que o "horroriza ver corridas de touros no canal público”, ou a afirmação da então ministra da Cultura, Graça Fonseca, a defender que a descida do IVA nas touradas "não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização. [...] E as civilizações evoluem". E ainda há o PAN de Inês de Sousa Real.
Para João Silva a tourada não é um espetáculo decadente, pelo contrário, é "uma obra artística, muito para lá do aspeto económico ou de ter de provar alguma coisa a alguém. Acho que algumas pessoas nem entendem bem a dimensão, mas é a linha entre a tragédia e o triunfo que faz as pessoas levantarem-se numa bancada. Quanto mais o toureiro estiver comprometido e menos valor der à sua vida, mais coisas bonitas vai criar".
"Milhões vão ver touradas, não são todos uns bárbaros e uns sádicos"
Juanito vota, mas prefere não falar muito de política. No entanto, é impossível não comentar o assunto: "Sobre as políticas anti-touradas tenho a dizer o seguinte: o discurso do PAN está fora do tempo e nas últimas eleições, já deu para ver, ninguém acredita no que diz a senhora [Inês de Sousa Real] ou no que diz o partido. À parte das touradas, atacou outro tipo de atividades, tem um discurso ditador no aspeto de querer tocar nos gostos das pessoas, é um discurso sem nenhum nível e sem nenhum tipo de argumentos verdadeiros. Atrevo-me a dizer que respeito toda a gente, mas acho que o PAN não merece que lhe demos importância. Respeito e agradeço os que apoiam as corridas de touros e também respeito os que não apoiam. O que não respeito é os que são os anti só para serem do contra, são anti-gostos dos outros. Isso não respeito", desabafa o toureiro.
De resto, não acredita que as touradas venham a ser proibidas, "ainda para mais no momento em que estamos. Vivemos um momento saudável na festa e acredito que as novas gerações vêm forte. Existe uma grande manta de público e enquanto houver interesse e, sobretudo, enquanto houver miúdos pequenos a querer brincar aos touros, as touradas não vão acabar", isso vai ser impossível.
João Silva explica que a tauromaquia também evoluiu. "O toureio é hoje algo muito mais ordenado, os toureiros também evoluíram, assim como o espetáculo em si. Eu não sou nenhum assassino e milhões vão ver touradas, não são todos uns bárbaros e uns sádicos ou uns tontos descerebrados".
"[O PAN] À parte das touradas, atacou outro tipo de atividades, tem um discurso ditador"
E exemplifica: "Se até Picasso ou Dalí eram apaixonados pelos touros, se essa gente se inspira no toureio... Já vi colegas meus fazerem coisas incríveis com os touros, vi pessoas nas bancadas a chorar - e são pais de família, não são uns loucos - e outra coisa, vão a pagar, não é grátis. Os touros enchem praças, como eu este ano enchi a praça da Moita e de Mourão, dos primeiros festivais".
Dependendo da praça, cada espetáculo pode acomodar entre 6 mil e 30 mil pessoas, "como já me aconteceu em Madrid". Os dois últimos anos, 2020 e 2021, foram particularmente duros, sobretudo por causa da pandemia, mas as coisas parecem estar a voltar ao normal e a taxa de ocupação das praças, de acordo com números da APEFE - Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Evento, está em níveis superiores aos de 2018. Este ano, só em Portugal, já houve 25 espetáculos e até ao final de maio estão previstos 40, um número que deverá subir, já que as toureadas podem ser legalizados com 15 dias de antecedência.
João Silva congratula-se. É que "existem muitas famílias dependentes desta atividade, no Alentejo, como em todo o Portugal, direta e indiretamente há milhares de pessoas a viver da ganadaria. Todos são aficionados e na altura das festas todas as praças enchem porque vive-se a paixão, está-nos no sangue".
Concorda que "no toureio a pé houve uns anos complicados, por culpa de todos, mas estamos outra vez num momento muito bonito". A verdade, é que talvez tenha havido um fosso geracional. "É como o futebol, acontece no Real Madrid ou com Cristiano Ronaldo, há momentos em que a terra tem um grande toureiro e depois passa, até voltar outro".
Para Juanito, há um antes e um depois de Badajoz. "Badajoz significou uma explosão, tanto na minha carreira como para este país que é Portugal. Ver um português triunfar numa das praças mais importantes do mundo, nos cartéis mais importantes, com figuras mundiais, é subir mais uns degraus neste duro caminho", orgulha-se.
"Graças a Deus - e a mim [ri]", já teve a sorte de tourear e triunfar até na Maestranza de Sevilha, "uma das praças mais bonitas", mas "os sonhos e todos os desejos vão destinados a tourear em Madrid, a praça mais difícil, mais exigente: Las Ventas. É também aí que sonhamos triunfar e sair pela porta grande".
Em Espanha existe o confronto final entre touro e toureiro, em que "o toureiro, com uma espada, dá o coração e o corpo ao touro, quando este se cruza, com os dois pitons, entre o nosso coração e a nossa perna, e matamos o touro".
Mas nem todos os touros morrem também há os que saem vitoriosos e são poupados. Depois da luta, "pela sua bravura, pelo seu empenho em cada investida", o público pode pedir o indulto do touro. Normalmente "o público começa a pedir - é das coisas mais bonitas que se pode ver numa praça de touros -, e o toureiro e o presidente da corrida acordam que o touro volte para dentro, seja curado e regresse ao campo para viver da felicidade, comer como um rei e fazer o que tem de fazer". Aconteceu a Juanito em setembro de 2021 (ver vídeo a partir do minuto 27:33) .
Hoje, João Silva é recebido na localidade espanhola de Campanário, Badajoz. E no dia 24 de maio o "sonho", estará na Praça de Touros de Las Ventas, onde alternará com Daniel Luque e José Garrido na lide de touros de Valdefresno.
Juanito gostaria de sair da praça em ombros, com ovações do público. "A sensação máxima para um toureiro, mais do que o público, é emocionar-se a tourear, é a fusão de touro e toureiro. Que tudo o que idealizamos, sonhamos e treinamos seja tornado realidade e consigamos fazer o toureio eterno, profundo", diz. Assim seja.
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