A Margarida Ramos de Almeida e a Ana Paramés, ambas juízas do Tribunal da Relação de Lisboa, coube apreciar um recurso apresentado pela Autoridade Regional de Saúde (ARS) dos Açores a contestar a decisão do tribunal de primeira instância em relação a um pedido de 'habeas corpus' [libertação imediata] de quatro alemães confinados em agosto na ilha de São Miguel depois de um deles ter sido diagnosticado com covid-19.
Na sua análise, as duas magistradas consideraram que as autoridades de saúde não têm poder para decretar medidas de privação de "liberdade" e confirmaram a decisão que tinha sido tomada na primeira instância.
A forma como conduziram o processo, revela hoje o Jornal de Notícias (JN), levou, no entanto, à abertura de um inquérito disciplinar por parte do Conselho Superior da Magistratura. Em causa estão duas razões. A primeira prende-se com as considerações que tomaram quanto à legitimidade da entidade recorrente, a ARS dos Açores, em proceder ao recurso. A segunda razão relaciona-se com o facto de ambas as juízas terem emitido uma opinião infundada do ponto de vista científico ao dizerem que os testes RT-PCR à covid-19 têm uma "fiabilidade que se mostra, em termos de evidência científica mais do que discutível".
Sobre este segundo ponto, ao jornal Público, dois especialistas acusam as magistradas de terem feito uma leitura “completamente errada” de artigos científicos centrados nos testes RT-PCR e que é "uma irresponsabilidade" colocarem em causa instrumentos de diagnóstico da covid-19 devidamente validados. "Os testes de PCR têm uma especificidade e sensibilidade superiores a 95%. Isto é, na esmagadora maioria dos casos detectam o vírus que provoca a covid-19”, diz Vasco Barreto, investigador do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (Cedoc) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.
Na sua apreciação do recurso movido pela Autoridade Regional de Saúde dos Açores a contestar o pedido de libertação apresentado pelos turistas alemães, as duas magistradas consideraram que esse mesmo recurso das autoridades de saúde não era admissível, por a ARS "não ter legitimidade, nem interesse em agir".
Não deixaram, porém, de apreciar as questões que o recurso levantou, considerando que o decreto de confinamento por parte das autoridades de saúde é o equivalente a "uma detenção ilegal" se publicado sem o apoio de uma autoridade judiciária ou durante um estado de emergência ou de sítio declarado pelo parlamento.
Quando é que tudo aconteceu?
O caso em questão que envolveu os turistas alemães teve lugar no verão, quando o país se encontrava apenas em estado de alerta.
Os turistas em causa tinham realizado um teste nas 72 horas anteriores no seu país de origem para determinar se eram portadores do vírus que origina a covid-19, tendo o resultado sido negativo.
À chegada aos Açores, os cidadãos entregaram cópias desses testes à Autoridade Regional de Saúde no aeroporto de Ponta Delgada. Em 07 de agosto, duas cidadãs deste grupo realizaram um segundo teste e os restantes fizeram-no três dias depois.
Uma das mulheres deu positivo e, de acordo com o tribunal, “foi-lhes dada, a todos, ordem de isolamento profilático subscrita pelo delegado de Saúde de Lagoa, de 08 a 22 de agosto, mas que permanecia em execução” no dia da decisão sobre o pedido de ‘habeas corpus’, quarta-feira (26).
Para o tribunal, a decisão de “privação de liberdade promanada da Autoridade Regional de Saúde assentou apenas em circulares normativas emitidas pela mesma e pela Direção-Geral da Saúde” que “consubstanciam orientações administrativas não vinculativas para os requerentes, mas apenas para as mencionadas autoridades e respetiva cadeia hierárquica”.
O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores aponta que, aos cidadãos requerentes, “nunca foi transmitida qualquer informação, comunicação, notificação, como é devido nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na sua língua materna”.
Este não era um caso isolado nos Açores, uma vez que, em 14 de agosto, o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores ordenou a libertação de duas cidadãs que interpuserem um ‘habeas corpus’ após lhes ter sido decretada quarentena por terem viajado em lugares próximos de um infetado com covid-19.
Também em 27 de julho, o tribunal decidiu declarar procedente o 'habeas corpus' interposto por três cidadãos “privados da liberdade” desde 24 de julho numa unidade hoteleira da ilha Graciosa, no âmbito da covid-19.
Em 05 de agosto, ficou a saber-se que o Tribunal Constitucional considerou que as autoridades açorianas violaram a Constituição ao impor a quem chegasse à região uma quarentena obrigatória de 14 dias por causa da pandemia da covid-19.
A decisão surgiu na sequência de um recurso interposto pelo Ministério Público (MP) a uma decisão judicial de libertar um homem que se queixou da quarentena imposta.
Depois da decisão do tribunal de primeira instância, o Ministério Público recorreu para o Tribunal Constitucional, mas os juízes do Palácio Raton consideraram, na decisão datada de 31 de julho, que “todas as normas disciplinadoras de um direito liberdade ou garantia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República”, exigência que “ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito”.
Nova versão editada às 11h55
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