Olaf Scholz, o novo Chanceler alemão, deu uma entrevista ao Jake Tapper, na CNN americana...

O Jake é bom, mesmo muito bom.

Tapper insistiu bastante na questão da posição alemã em relação à Crimeia, mas Scholz não se comprometeu com nada. Disse que “nós estamos juntos com os Estados Unidos”, mas a Alemanha recusa-se a enviar armamento para a Ucrânia e ainda não se pronunciou definitivamente sobre o gasoduto Nordstream 2. A minha pergunta é: o que faria a Angela Merkel nesta situação?

Ela estaria totalmente focada na situação. Não se limitaria a ir a Moscovo jantar com Putin; falaria com ele até haver um acordo. Foi o que ela fez em 2014-15, durante a primeira guerra com a Ucrânia. É preciso não abandonar o diálogo e responsabilizar o homem pelo que está a acontecer. Nessa altura, ela sentou-se à frente do Putin com gráficos, mapas e fotografias aéreas. E agora, quando ele começasse a impingir-lhe a sua história, ela responderia “Espera aí, Vladimir, tenho aqui fotografias como prova.” Ela sabia tudo sobre a situação em Donbas. Portanto, não chega pedir a Putin que seja razoável.

Nessa reunião, em 2014, Putin levou o seu cão para a reunião, para a assustar.

Você leu isso no meu livro.

Não, vi a fotografia na altura, toda a gente falou nisso.

Não se importa de que falemos menos no presente e mais sobre Merkel? Porque sobre ela posso falar com conhecimento de causa. O atual Chanceler acabou de ser eleito, espero que fale com ela, presumo que esteja a falar, pois não é parvo, mas nunca ouviremos nenhum deles falar dessas conversas. Não é o estilo de Merkel. Mas ele sabe que é a sua especialidade. 

A minha preocupação actual com a Europa é que não há nenhum líder com as qualidades dela e um relacionamento equivalente com Putin. Foi a única líder que ele respeitava e ambos conhecem os dois idiomas, ele fala alemão e ela fala russo; além disso são dois verdadeiros guerreiros.

Inimigos íntimos.

Sim, pode dizer-se isso. Não podem enganar-se um ao outro, e ele sabe disso. Portanto, podem resolver coisas. Tiveram a mesma formação, mas chegaram a conclusões diferentes. Para ela, a queda do império soviético foi a sua libertação; para ele, foi a maior catástrofe do século XX.

Como ele mesmo disse.

O facto é que se compreendem perfeitamente. E isso foi muito bom para nós.

Creio que toda a gente sentirá a falta dela, porque realmente tornou a Alemanha no país mais influente da Europa.

A Alemanha já era o maior poder económico e financeiro da Europa. O que ela fez foi manter essa posição, mas para lá disso, transformou o país no centro moral da União Europeia. Direi mesmo que do mundo. E isso é uma vitória notável para o ex-Terceiro Reich. Ela conseguiu-o com duas atitudes: em 2015, quando acolheu um milhão de refugiados muçulmanos do Médio Oriente num país cristão e branco. Aliás, esse milhão integrou-se quase totalmente. Assim, agora temos um modelo de como fazer uma integração. 

A segunda atitude foi fazer com que o país aceitasse as mulheres (em postos relevantes), as minorias, os homossexuais – o casamento de pessoas do mesmo sexo foi legalizado – e fez tudo isso discretamente, demonstrando o quanto se pode conseguir sem se vangloriar. Ela não precisa dos nossos elogios, nem dum Prémio Nobel. É a sua própria crítica, a política mais centrada em si própria [a expressão que Marton utilizou foi “inner directed”] que alguma vez conheci.

Há muitas coisas surpreendentes sobre ela. Foi educada nas condições mais duras que se pode imaginar, na Alemanha de Leste e com um pai luterano. Muito duro.

Como biógrafa de Merkel, devo dizer-lhe que o pai incutiu nela um forte sentido moral, e de responsabilidade em relação aos menos afortunados. Esta postura revelou-se em 2015 na sua abordagem à questão dos refugiados, uma postura a que chamo de “um gesto à Martinho Lutero”, pois Lutero disse “Tomo esta posição porque não há outra posição a tomar.” Em 2015, foi um verdadeiro milagre.

Além disso, embora ela nunca tenha obtido a aprovação completa do pai – ele, por exemplo, nunca votou nela – imbuiu-a de uma forma de pensar rigorosa, que valoriza a argumentação. A clareza do pensamento dela vem, por um lado, do pai lhe ensinar que numa discussão é preciso apresentar factos, não basta dar opiniões, e por outro lado, ter sido treinada como cientista. Foi a combinação dessas duas influências que a fez tão racional. Realmente, a Alemanha foi muito afortunada em ter uma líder assim.

O que acaba de dizer sobre ela é praticamente o oposto da maioria dos políticos que conhecemos: não têm um pensamento científico, são muito ambiciosos, extrovertidos e tentam enganar-nos quase sempre. Por exemplo, o Obama, de quem muito gosto...

Vá lá, ele foi o melhor de todos! Se o comparar com Orbán, Bolsonaro, Erdoğan – Obama está muito acima deles.

Não me deixou completar o que ia dizer. Obama não se compara com esses, evidentemente, em termos morais. Mas ele é muito mais emocional do que racional, tem um grande carisma – que ela não tem – contudo não conseguiu actuar com tanta eficiência. Ela tem uma atitude formal, não gosta de se exibir nem de se impor, mas mesmo assim conseguiu enfrentar Trump, conseguiu enfrentar o Putin e praticamente todos os outros. E ficou amiga de Macron. Realmente não condiz com o papel que estamos habituados a ver nos líderes mundiais. Acho que vamos ter saudades dela. 

Acho que o mundo vai sentir a sua falta e também acho que Putin está a aproveitar-se da ausência de Merkel, e de ter pela frente um novo presidente norte-americano e um novo chanceler alemão. Espero que a UE consiga manter-se unida sem Merkel, porque era ela que unia a Europa. Não se vê ninguém que possa fazer isso como ela fez, sem exibir um ego.

Por outro lado, ela foi bastante dura com os políticos do seu partido – você fala disso, e fiquei muito surpreendido por saber que deitou abaixo os seus mentores políticos.

Bem, ela não é sentimental. Pode ser implacável, quando a situação o exige. Foi constantemente sub-avaliada e isso é uma enorme vantagem. Surpreende sempre, quando age implacavelmente, como fez com o seu maior mentor, Helmut Kohl, que colocou o partido numa situação embaraçosa. Mas não havia ninguém no CDU (Partido Democrata-Cristão) que tivesse coragem de lhe dizer que estava na altura de se ir embora – excepto Merkel, a sua protegida. E acabou com a carreira dele, ao escrever num jornal que o rei estava morto, basicamente. Foi assim que abriu caminho para a chancelaria. Diz-se em Berlim que o cemitério nas traseiras do Bundestag (o Parlamento alemão) está cheia de corpos das suas vítimas, e de algum modo isso é verdade, ela sabe aproveitar a sua aparência pouco entusiasmante e a atitude nada ameaçadora. 

Sabe, às vezes tive a sensação de que estava a escrever o segundo volume de “O Príncipe” de Maquiavel, que poderia chamar-se “A Princesa” – uma história cheia de políticos, alguns muito óbvios. Ela tinha uma maneira de expor publicamente o narcisismo de pessoas como Putin, Trump ou Orbán, de mostrar como eles são ridículos, porque nunca mordeu o isco deles. Não só não deu um salto quando Putin trouxe o seu cão, como fez de conta que não tinha reparado. Quanto ao Trump, quando lhe atirou um doce e lhe disse “não diga que não lhe dei nada”, ficaram todos atónitos (os participantes na reunião do G7, em 2018) mas ela não reagiu, como nunca reage a provocações, porque sabe que isso deixa os provocadores furiosos. Ignora-os, como nós ignoramos as crianças mal-educadas.

Ela demonstrou como fazer política sem arrogância – “não é sobre nós, é sobre como resolver os problemas”.

Kati Marton
créditos: Desassossego

Livro: A Chanceler. A Notável Odisseia de Angela Merkel

Autor: Kati Marton

Editora: Desassossego

Preço: € 16,93

Política sem ego é uma contradição.

Pois é. 

Ela é a mentora de Ursula von der Leyen, não é? Que também é uma cientista.

Não, é médica. E tem sete filhos. Notável. As mulheres têm de desempenhar vários papéis. Ter um único interesse é uma postura masculina. Nós, mulheres, temos de prestar atenção aos nossos filhos e já agora tomar conta do jantar.

O que Merkel conseguiu, como política, foi manter-se “normal”; nunca se mudou do seu pequeno apartamento, fazia sempre as compras no supermercado, vi-a a comprar sapatos, tinha uma aparência indiferente – usava um único estilo de roupa, o equivalente ao fato escuro que os homens usam.

Sabe aquelas tiras de cores Pantone? Vi uma fotografia que mostrava a Merkel com o mesmo casaco e calças de todas as cores, como uma paleta Pantone!

Ela tem um costureiro de Hamburgo que faz aquele modelo sempre igual com cores diferentes. É desinteressante, mas ela quer ter uma aparência desinteressante, não quer desviar as atenções para o que veste.

Uma originalidade, sem dúvida. E funcionou.

Funcionou muito bem. E nunca houve um Chanceler alemão que tivesse saído quando quis. É ela a primeira.

Adenauer? Willy Brandt? 

Não, nenhum deles.

E acha que ela não vai voltar?

Não, não é uma monarca ou uma ditadora, é uma democrata. E nem queria candidatar-se da última vez (em 2017). Candidatou-se porque o Trump tinha sido eleito e não queria deixar a situação nas mãos de Trump e Putin!

Sabe que ela não é muito apreciada em Portugal? O Schäuble — Ministro das Finanças alemão entre 2005 e 2017 —  ainda menos.

Não gostam dela em Portugal com razão, porque ela era a Rainha da Austeridade e não levou em conta o sofrimento das pessoas durante a crise financeira. Isso aconteceu em Portugal e, mais ainda, na Grécia. Contudo, como é uma pessoa prática e não dogmática, está sempre a aprender, inclusive com os seus próprios erros. Anos depois, conseguiu fazer aprovar um fundo europeu de recuperação destinado aos países mais atingidos pela pandemia de Covid-19 – e não foi um empréstimo, mas sim um subsídio. Muito diferente do seu tom de pregador – e de mau pregador – durante a crise financeira de 2008.

Então, ela é um “trabalho em andamento” [Marton utilizou a expressão "Work in Progress"], é capaz de evoluir. E aqui voltamos à “política sem ego”, a política em que o que interessa são os resultados, não ganhar prestígio pessoal. É o que podemos aprender com ela: “Não é sobre mim, é sobre nós. O seu lugar no governo não é a sua pessoa e, por favor, vá-se embora discretamente”, do modo que ela fez, como acto final demonstrativo de como dever funcionar uma democracia.