Estes são apenas três casos concretos, noticiados na comunicação social e largamente debatidos nas redes. Mas há mais, muitos mais, que o tempo já apagou mas que ainda são feridas abertas na memória colectiva da cidade, como a destruição da Livraria do Diário de Notícias no Rossio, uma loja modernista onde se vendia cultura, substituída por um espaço asfaltado a pladur, onde se vendem trapos. Ou a castiça pensão Ninho das Águias, na Costa do Castelo, transformada numa pós-moderna e deslavada Sleep Boutique.
Em termos gerais, o que se tem assistido nos últimos anos, desde que Lisboa se tornou um pólo turístico europeu de primeira grandeza (com mais de dois milhões de passageiros mensais na Portela), são duas alterações notórias: muitos encerramentos no comércio tradicional, substituído por lojas pseudo-históricas ou que vendem bric-a-brac de plástico feito na China; e a transformação de edifícios com várias ocupações em hóteis, hostels e sleep boutiques. Nesta última vertente, o que se tem como certo é a adaptação do edifício do Diário de Notícias a hotel de charme.
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E não faltam histórias cheias de história, como a lista dos comensais do Palmeira, que incluía artistas, actores, advogados lendários, ministros, secretários de Estado, e até um Presidente da República. Ou os estúdios da Vila Martel, onde obras primas foram criadas por Columbano Bordalo Pinheiro, Francisco Franco, José Malhoa, Carlos Reis, Eduardo Viana e Nikias Skapinakis, entre outros.
Brama-se contra os turistas, que só provocam congestionamentos (os tuc-tucs...), contra os proprietários, que só pensam nos lucros, e contra a Câmara, que "não faz nada".
Mas pouco se fala em soluções. Ou, o que é quase a mesma coisa, em razões. Umas e outras merecem ser avaliadas, por ordem inversa – isto é, primeiro as razões, depois as soluções.
não chegar à situação em que as pessoas que ficam nos hotéis só têm hotéis para frequentar
Que o turismo é um benefício para a cidade, parece indiscutível. Não só pelo rico dinheirinho que traz, numa economia em que as tradicionais remessas dos emigrantes ficam com eles, como pela alegria e movimentação que anima a cidade. A Baixa, concretamente, que era um deserto onde só passavam alguns cabisbaixos funcionários a caminho dos transportes fluviais, transformou-se num permanente festival de rua, com esplanadas cheias e artistas alternativos a exibir as suas habilidades. As noites lisboetas, tanto nos restaurantes como em incontáveis propostas de bares e clubes, já se medem pelas famosas noites madrilenas, com multidões a cantar, a dançar e a consumir. Só mesmo os conservadores mais rezingas e os tugas mais tugas é que se podem queixar desta apropriação dos espaços públicos por gente nova, civilizada e bem disposta que, ainda por cima, respeita e venera as nossas características urbanas e culturais. Todos dizem que a cidade é linda e os alfacinhas uns amores de pessoas.
Onde é que está o problema? O problema está em equilibrar o tecido tradicional da cidade com o afluxo de pessoas que vem, precisamente, porque esse tecido existe. Ou seja, para por as coisas à maneira das redes sociais, "não chegar à situação em que as pessoas que ficam nos hotéis só têm hotéis para frequentar".
Isso será verdade, mas apenas se se ultrapassar o ponto de equilíbrio. E a grande dificuldade está em definir esse ponto. Não é que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) não pense no assunto (já lá iremos); é que, para a CML, como para outros organismos que podem influenciar as decisões, como o IPAR, há constrangimentos de vária ordem que os impedem, até mesmo legalmente, de encontrar o tal equilíbrio que ninguém consegue definir quantitativamente. Quantos hotéis Lisboa precisa? Quando é que o número de hotéis chega ao ponto de reduzir sensivelmente a vida normal da cidade, tirando-lhe interesse e logo reduzindo as necessidades de hotelaria?
Quanto às lojas tradicionais, muitas delas desactualizadas, decadentes e que pouco vendem aos lisboetas e ainda menos aos turistas, de que modo se consegue mantê-las de porta aberta? Subsidiando-as com dinheiro do contribuinte? Compensando com isenções fiscais a falta de modernização? E as lojas novas, pseudo-tradicionais, como regulamentar o exagero do pseudo e com que direito definir que pastéis de bacalhau com recheio de queijo da Serra é uma horrível corrupção dos verdadeiros pastéis salpicados de salsa e do verdadeiro queijo a escorrer pelo prato? Porque não achar que, graças à inventividade estimulada pelos turistas, o pastel de bacalhau com recheio de queijo da Serra não é um avanço gastronómico e civilizacional?
Já lá vai o tempo em que os senhorios, justa ou injustamente, eram vistos como uns capitalistas gordos que exploravam os arrendatários. Hoje sabemos de incontáveis casos em que o que os proprietários recebem não chega para mandar pintar os espaços comuns. Para isso se mudou a lei do arrendamento. Só que essa mudança foi excessiva. Os inquilinos comerciais passaram de uma protecção impraticável, para uma exposição incomportável. Os senhorios, se querem reformar os seus edifícios, têm de aumentar as rendas, ou trocar de arrendatários. Ou será preciso inventar um mecanismo que torne esses custos possíveis e partilhados entre as duas partes. A Lei do Arrendamento carece de ser mudada, e essa mudança só pode vir do Governo ou da Assembleia da República. A Câmara, o mais que pode fazer é propor, sugerir, implorar.
o que define uma loja histórica?
Então, sendo assim, o que faz a Câmara no meio disto tudo? Preocupa-se, e não é de hoje. No verão de 2015, quando Graça Fonseca era responsável pelos pelouro Economia e Inovação e Catarina Vaz Pinto pela Cultura, criou-se o programa "Lojas com História" e foi nomeado um Conselho Consultivo constituído por trinta olissipólogos, lojistas, historiadores, jornalistas, etc. e um Grupo de Trabalho de três especialistas, recrutado no Departamento de Design da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
Com a saída de Graça Fonseca para o Governo, houve um período de pouco movimento, mas, entretanto, o actual vice-presidente da autarquia, Duarte Cordeiro, já entrou em acção e o processo está em andamento. Mas o funcionamento enreda-se nas próprias indefinições de que falamos. Por um lado, a mudança na Lei do Arrendamento, indispensável, não depende da CML e, além do mais, há que definir como serão as mudanças para gerar o tal equilíbrio entre as duas partes e dar alguma protecção às lojas históricas.
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Por outro lado, o Grupo de Trabalho está a tentar definir uma coisa bastante indefinível que é o conceito de Loja Histórica. Não pode ser apenas a antiguidade, há que avaliar o mérito estético das instalações. Assim como a possível rentabilidade. Digamos: uma drogaria, ainda faz sentido em 2016? Poderá evoluir para outro tipo de loja – uma perfumaria e para-farmácia, por exemplo? E o que fazer com uma carvoaria?
Isto, no que diz respeito às lojas. Quanto aos edifícios, o problema também está nas definições. Neste particular, talvez seja melhor estudar caso a caso, mas o caso-a-caso é a antítese duma legislação democrática. Voltando ao restaurante Palmeira: estava num edifício abandonado à sua sorte desde o incêndio do Chiado, entaipado e sem inquilinos. Era uma mancha de desleixo mesmo ao lado dos Grandes Armazéns do Chiado, sem utilidade para ninguém. A sua reconstrução – pois restauro não seria suficiente – exige que o restaurante encerre durante um ano ou dois e que depois, muito naturalmente, pague uma renda proporcional ao espaço que vier a ocupar. Aqui está um caso que não tem solução racional à vista.
Para este artigo consultamos inúmeras pessoas, entre elas Duarte Cordeiro, vice-Presidente da CML, Catarina Portas, membro do Conselho Consultivo e activa militante da ideia das Lojas Históricas, e Frederico Duarte, do Grupo de Trabalho das Belas Artes. Em todos eles se vê uma genuína preocupação pelos problemas e um evidente empenho em resolvê-los. Mas, pelo menos por ora, ninguém tem competência, legal ou moral, para impedir que uma barbearia se transforme num fast-food.
A modernização das cidades, benéfica ou maléfica, é um processo inexorável. Como resolvê-la de modo equilibrado, é a resposta de mil milhões de euros.
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