“Não tenho sentido a água salgada”, confessa Carlos Moura. Há mais de um mês e meio que o proprietário da H2OMadeira não sai da marina da Calheta, na ilha da Madeira, com a embarcação cheia de turistas, oceano dentro, à procura de se cruzar com as maravilhas da natureza que habitam nas águas atlânticas.
A última vez que Carlos sentiu o mar foi na manhã do dia 14 de março. “Foi uma daquelas situações que foi mesmo de repente. Tínhamos duas viagens marcadas para dia 16 e para a frente tínhamos algumas pessoas, o normal para época baixa. Entretanto, várias empresas decidiram criar um grupo para as marítimo-turísticas e dentro do grupo houve quem começasse a tomar a iniciativa de cancelar as viagens que tinham agendadas. Tendo em consideração o que estava a acontecer a nível nacional, tudo dava a entender que esse era o melhor caminho e que estava na hora de fazer mais alguma coisa para ver se a gente conseguia parar isso. Por isso também decidi cancelar as minhas viagens do dia 15 e as viagens futuras e depois é que foi decidido fechar tudo, pelo governo cá da região e também nacional”, conta.
O primeiro caso de infeção pelo novo coronavírus registado na Região Autónoma da Madeira aconteceu a 16 de março, dois dias depois de Carlos ter fechado a loja na marina e suspendido as viagens de barco, e 14 dias depois do primeiro caso identificado no continente. A 19 de março o governo regional instaurava uma política de quarentena obrigatória de 14 dias para quem chegasse à ilha e pedia ao governo que encerrasse o aeroporto, algo que não chegou a acontecer, tendo ficado definido um condicionamento: passaram a operar-se apenas dois voos semanais operados pela TAP e um número máximo de 100 passageiros autorizados a desembarcar.
A atuação do governo madeirense foi rápida e precisa, graças a isso conseguiu que à data registe apenas 86 casos positivos de Covid-19 e nenhuma morte. Aliás, não há um caso de infeção novo no arquipélago desde o dia 23 de abril. As medidas rígidas, o encerramento quase total da ilha ao resto do país, aos países da União Europeia e ao restante mundo foram uma batalha que Miguel Albuquerque travou em três dias, levando de vencido António Costa que entre o primeiro caso de infeção e o encerramento das fronteiras terrestres demorou 14 dias; não esquecendo, claro, que o perímetro de decisão de um e outro é diferente, assim como o facto de se tratar de uma ilha e de um território continental A saúde dos madeirenses ficou a salvo, mas economia entrou em declive. Afinal, como pode uma ilha que vive do turismo, em que o setor representa mais de 26% do PIB regional e é responsável por mais de 20.000 postos de trabalho sobreviver ao isolamento e a um mundo que só mexe onde o medo deixa.
Nuno Freitas é vice-presidente da Madeira Rural, uma empresa com alojamentos rurais na ilha e que organiza todo o tipo de atividades, desde passeios pela montanha a viagens de barcos. “Temos imensas atividades e todas elas, desde o dia 15 de março, estão paradas porque não há clientes. Nós precisamos de um elemento para trabalhar que é o turista, sem esse elemento não há maneira de faturar, não há nada. É um pouco impossível este ramo se reinventar, como o ramo da restauração onde passaram a fazer take-away. Nós, na animação turística, não nos podemos virar para outro lado porque precisamos de uma pessoa física para realizar a atividade”, explica.
“Penso que fomos o primeiro setor a fechar e vamos ser o último a abrir. O ano de 2020 é para riscar do mapa.”, desabafa Nuno.
Carlos dúvida que volte a navegar ainda este ano, conta que tem duas embarcações, mas que devido às limitações das certificações para observação de cetáceos, só pode utilizar uma, um semi-rígido de 12 lugares, e que tal não lhe vai permitir cumprir as medidas de prevenção de distanciamento social e, ao mesmo tempo, manter o negócio viável. “É uma embarcação que tem duas filas de seis lugares. Se for para cumprir os dois metros de distância, e eu ainda não medi com a fita métrica, estou a imaginar que em 12 lugares só posso levar três pessoas. É impossível, as despesas são muito superiores. Por isso, mesmo que isto recomece e comece a haver turistas, se esta situação dos dois metros de distância for imposta, não sei se vou conseguir trabalhar. Só mais para a frente…”, diz.
Com recurso aos apoios anunciados pelo governo e com umas contas para acertar com o governo regional, devido às obras feitas em 2019 na marina da Calheta, Carlos acredita que conseguirá aguentar-se até ao final do ano, mas não mais do que isso. Fazendo o balanço, não está propriamente mal quando comparado com outras situações que conhece.
“Conheço outra empresa dentro da minha área que tem duas embarcações, tem mais funcionários e estão a começar a passar uma situação bastante complicada porque é um negócio de família, já de avós... eles estão, acredito eu, com a faca no pescoço. São uma empresa grande, mas com o número de despesas que têm... eu acho que ainda me consigo aguentar bem até ao fim do ano. Se não vai ser extremamente complicado e não sei se a outra empresa consegue, por exemplo”, diz.
A Madeira que não é a do turismo é uma ilha difícil, entregue apenas aos seus, uma população que nas últimas décadas se dedicou à arte bem receber para mostrar às gentes de todo o mundo o porquê de ser conhecida como a Pérola do Atlântico. Agora não há bancas de fruta a colorir as avenidas, perdeu a fauna de selfie sticks, câmaras fotográficas, smartphones e tablets a desfilar em grupo junto à marginal, os hotéis não têm gente, a poncha está por fazer, a espetada por assar, o bolo do caco à espera de saltar para a chapa e ser barrado com manteiga de alho. O teleférico do Funchal à zona alta da ilha é um carrossel abandonado, os estádios dos vários clubes da ilha, anfiteatros à espera do espetáculo. Nada mudou, está tudo no mesmo sítio à espera de acontecer, mas faltam os outros. E o vazio deixado por quem dá ritmo à ilha tem um preço grande.
O ano até tinha começado bem. “Antes da pandemia, nos meses de janeiro e fevereiro, conseguimos inverter a tendência do ano passado e regressámos aos resultados positivos no alojamento turístico na região. Em fevereiro, tivemos 112,5 mil hóspedes e 586,8 dormidas, que traduzem um crescimento de 7,8% e de 8,4%, respetivamente, em comparação com o mês homólogo do ano anterior. Nos dois primeiros meses de 2020, o acumulado foi de 211,3 mil hóspedes e de 1.117,4 mil dormidas, com um crescimento médio de 5,3% e de 4,6%, respetivamente”, conta Eduardo Jesus, secretário Regional de Turismo e Cultura, ao SAPO24.
Mas o vírus chegou à Europa e “travou fortemente a economia”, deixando a atividade do setor reduzida a zero.
“O turismo é o setor que está mais a sofrer. Cada mês com a atividade reduzida a zero, o PIB da Região Autónoma da Madeira contrai cerca de 2,2%, o que dá uma leitura da dimensão deste problema, com consequências para as empresas, para colaboradores dessas mesmas organizações e em toda a dinâmica direta e indireta que o setor produz. Este valor percentual traduz-se em cerca de 110 milhões de euros mensalmente, pelo que se pode ver a partir daqui o impacto da pandemia na Madeira neste momento e igualmente no verão”, explica Eduardo Jesus.
O futuro é incerto, diz o secretário regional, dando o exemplo da vizinha Espanha e do caso de Itália para explicar que cada dia é uma nova pista para o que será o turismo nos próximos tempos. “Inclusivamente, a nível da própria União Europeia, não existem consensos. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, num dia, desaconselha reservas para férias de verão, e, poucos dias depois, o comissário europeu, responsável pelo Mercado Interno, Thierry Breton, manifesta esperança de que possamos viajar dentro da Europa já este verão”, diz.
“De qualquer forma, acreditamos que, para a Madeira, surja primeiro o mercado nacional, pela proximidade e maior confiança”, conta, ao mesmo tempo que confessa que, simultaneamente, estão a analisar “os mercados tradicionais”. “Estamos cientes da sua importância para o destino e queremos estar preparados para o momento do arranque”, afirma.
Apesar do cenário ser pouco animador, Eduardo Jesus diz acreditar que as medidas rigorosas assumidas pelo Governo Regional da Madeira desde o primeiro momento poderão permitir “uma retoma da economia mais favorável”.
“A questão é que falamos de turismo, que vive da procura externa ao arquipélago, pelo que a retoma só acontecerá quando os mercados emissores de turismo para a Região Autónoma da Madeira estiverem sãos. Ou seja, mesmo que estejamos bem, é necessário que quem nos procure venha de regiões sem problemas de saúde. Se não for assim, haverá constrangimentos para voltarmos aos níveis de atividade que tínhamos até há poucas semanas”, salienta.
Como principal medida para proteger o setor, o governo regional da Madeira lançou a ‘Linha de Crédito Investe RAM COVID-19’, com vigência até 31 de dezembro de 2020, “que tem por objetivo apoiar a tesouraria e a manutenção de postos de trabalho do setor empresarial da Região. Disponibiliza 100 milhões de euros, também para o setor turístico, e tem a possibilidade de converter-se em fundo perdido ao fim de 18 meses”. A Associação de Promoção da Madeira, a que Eduardo Jesus também preside, dispõe de uma verba num valor global de apoio de curto prazo que ronda os 660 mil euros, onde se inclui a isenção de quotas aos associados durante um período de três meses.
Para além dos apoios financeiros, o governo regional entende que é necessário vencer o medo que possa existir do turista em vir passar férias à região. Daí que tenha nascido o ‘Covid safe Tourism Destination’, um processo de certificação de boas práticas em relação à gestão de riscos biológicos e pode aplicadas a empresas do setor do turismo, como sejam hotéis, turismo rural e alojamento local, restaurantes, agências de viagens, animação turística e transporte de pessoas, rent-a-car, e ainda escritórios ou outros estabelecimentos oficiais de turismo.
“A decisão de partir para a certificação do destino numa lógica de garantia da oferta em termos de saúde surge dessa necessidade, mas também do facto do destino Madeira dispor de todas as condições para o fazer. Não são só os mais de 200 anos de atividade ou mesmo o facto de tudo ter surgido no âmbito do turismo terapêutico que nos dá essa legitimidade. Nesta fase, e nos tempos mais próximos, a segurança sanitária ganha uma importância vital para o relançamento dos destinos turísticos”, comenta.
Vencer o medo e devolver a vida à ilha é o objetivo. No dia quatro de maio, reabre o comércio e os serviços públicos, mas as escolas continuam fechadas. "A nossa ideia é, eventualmente, em junho, se tudo correr bem, abrir as creches e os jardins de infância, mas é também necessário dizer que os nossos professores estão, muitos deles, numa situação de grande vulnerabilidade pela idade que têm. [...] Não vou correr riscos. Eu não posso ter uma situação de insegurança relativamente às nossas crianças", disse Miguel Albuquerque na quarta-feira em conferência de imprensa.
É com prudência que se avança para o desconhecido, uma ilha habituada a albergar os seus e os outros, espera que os outros possam chegar para poder reerguer a economia.
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