As imagens do campus de Chapel Hill correram mundo em maio, devido a uma violenta carga policial contra manifestantes pró-Palestina e ao arrear por estes da bandeira norte-americana em frente ao edifício da administração da universidade, substituída pela palestiniana.
O episódio terminou com o reitor a sair do edifício, rodeado de polícia de choque, a descer até ao mastro e a hastear a bandeira dos Estados Unidos novamente – com alunos conservadores e as câmaras das televisões a acompanharem de perto.
Pedro Lopes de Almeida, professor assistente do Departamento de Estudos Românicos da universidade, recorda o episódio à Lusa, numa altura em que já não há acampamentos pró-Palestina, mas continuam manifestações de apoiantes desta e de outras causas, democratas e republicanos, num ambiente “extremamente politizado”, ainda mais em tempo de eleições crispadas, e quando o reitor da universidade é republicano e a maioria dos professores e estudantes liberais e progressistas.
“Houve uma forte ação repressiva por parte da administração da universidade, que resultou em confrontos com feridos”, recorda o professor de Estudos Portugueses, Brasileiros e da África Lusófona. Ao mesmo tempo, desencadearam-se contra-manifestações de grupos de estudantes pró-republicanos, alguns de extrema-direita.
Sendo a administração da universidade hoje tendencialmente republicana, liderada por um antigo executivo de um fundo de investimento, grande parte dos estudantes e corpo docente não se reveem na “orientação política” que está a ser imprimida à universidade. Em outubro, o Senado de estudantes, que representa os alunos pós-graduados, aprovou uma moção de não confiança na administração.
“Sentimos que não estão a proteger os nossos estudantes, estão a representar interesses políticos e partidários no interior do campus”, afirma Lopes de Almeida.
Fundada em 1795, esta universidade é a mais antiga do sistema de ensino superior público e constitui uma “bolha” progressista num estado cujo interior, mais rural, é fortemente republicano. O receio agora é que a repressão de currículos académicos progressistas na Florida, estado vizinho a sul e também hoje maioritariamente republicano, se estenda à Carolina do Norte.
“Aqui também há a preocupação de que se chegue a esse ponto, absolutamente. Em vários Estados, temos assistido a ingerências diretas, muitas vezes do poder político, naquilo que é o trabalho das universidades e isso preocupa-nos”, afirma Lopes de Almeida.
“Vimos isso na Florida com casos de censura, de formatação de currículos. Aqui na Carolina do Norte, também os mesmos tipos de iniciativas políticas de ingerência na vida da universidade”, adianta o docente.
Há poucos meses, o Conselho Geral da universidade, que integra membros nomeados politicamente e com poder executivo, decidiu extinguir, unilateralmente e de forma imediata, todos os programas de Diversidade, Igualdade e Inclusão (DEI, na sigla inglesa), que visavam aumentar a representatividade de grupos e comunidades historicamente marginalizadas. Todos os gabinetes ligados a DEI foram de um dia para o outro extintos e os seus funcionários transferidos, suspensos ou despedidos.
Para Pedro Lopes de Almeida, que em 11 anos nos Estados Unidos já passou por universidades situadas em envolventes mais liberais – Brown (Rhode Island) e Santa Barbara (Califórnia) – o fim do DEI foi “um choque brutal” pela sua natureza antitética.
“O meu trabalho, em particular como professor nas áreas das Humanidades, é estimular o pensamento crítico, estimular a diversidade, estimular o maior acesso, uma maior democratização do saber, do conhecimento. E a universidade passou uma mensagem clara de que isso não é bem-vindo aqui”, frisa.
“Nós sabemos que o Partido Republicano, sobretudo ao longo da última década, tem vindo a radicalizar-se numa trajetória anti-universitária, anti-Academia, anti-intelectualismo, anti-humanidades e isso é muito preocupante porque coloca em risco a nossa missão, o nosso trabalho (…) de construir pensamento crítico, construir uma sociedade mais igualitária, mais pensante, mais crítica, mais emancipada”, adianta.
Para o docente de um dos maiores programas de língua portuguesa dos Estados Unidos, com cerca de 300 estudantes a trabalhar com português anualmente, a maior abertura a culturas e línguas estrangeiras é percebida pelos setores conservadores como uma ameaça. “O que é muito assustador quando pensamos no futuro deste país”, alertou.
Richard Vernon, diretor do Centro de Estudos Portugueses da Universidade, também identifica “interesses opostos” entre corpo docente e a administração, com uma agenda conservadora.
Caso Trump ganhe a 05 de novembro, “o que está a passar na Florida passaria por todo o país”: “menos liberdade académica, uma agenda mais conservadora, um endoutrinamento dos alunos”, afirma.
“Seria proibido, imagino, falar de algumas coisas, falar criticamente da história do país, criticar o governo… seria um Estado absolutista”, adiantou à Lusa.
Um dos estados da confederação que lutou na guerra civil norte-americana contra a abolição da escravatura, a Carolina do Norte tem ainda presentes as marcas da segregação racial, que durou até meados do século XX.
No centro do campus esteve até 2018 uma estátua – “Silent Sam” (“Sam Silencioso”) – erguida 100 anos antes em homenagem aos soldados confederados. Foi retirada devido a protestos, mas muitos no estado ainda se reveem no que representa, relata o docente.
“A ideia do ‘wokismo’ tem sido instrumentalizada pelos conservadores para atacar as universidades, para atacar literatura, as artes”, rotulando negativamente o conceito de que “todas as pessoas merecem o mesmo tipo de respeito, que as minorias raciais e de género devem ser consideradas pessoas humanas e devem ter acesso a plenos direitos”, adianta.
Apesar da ameaça latente, Pedro Lopes de Almeida afirma-se otimista quanto ao futuro da liberdade de pensamento no país, tendo em conta o contacto que vai tendo com centenas de estudantes de vários estados que passam pelas suas aulas e são expostos a culturas diferentes e novas “perspetivas sobre a vida, as artes, a sociedade”.
“Acho que não veremos uma mudança radical no futuro imediato, vai levar várias gerações. Mas foi por isso que eu escolhi esta profissão, ser professor, porque acredito que todos os dias contribuímos um bocadinho para um futuro melhor”, afirma.
“Se desses estudantes, um punhado deles no futuro for diferente daquilo que tradicionalmente são as raízes de uma sociedade colonial, eu dou-me por satisfeito”, acrescentou.
Paulo Dias Figueiredo, Agência Lusa
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