O pai, o deputado federal Rubens Paiva, foi torturado e morto pela ditadura militar brasileira em 1971 e o seu corpo continua desaparecido até hoje - a certidão de óbito viria a ser corrigida 25 anos depois.

A mãe, Eunice Paiva, foi advogada de Gilberto Gil, Rita Lee e Sting e consultora do Banco Mundial e da ONU, defensora dos direitos indígenas. Criou sozinha cinco filhos, quatro raparigas e um rapaz. Tudo muda quando lhe é diagnosticado Alzheimer: "De repente, a minha mãe desaparece, mas não desaparece fisicamente, está viva".

Marcelo Rubens Paiva, "Cacareco" para os amigos (o nome de um hipopótamo de um jardim zoológico local), jornalista e escritor, perdeu o pai aos 12 anos, ficou tetraplégico aos 20, depois de ter fraturado uma vértebra do pescoço num mergulho num lago em Campinas (recuperou parcialmente o movimento dos braços).

Em 2015 publica "Ainda Estou Aqui", livro onde reconstitui as memórias da família, história adaptada para cinema por Walter Salles, amigo antigo, agora candidato ao Óscar de Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz (Fernanda Torres).

Com a promessa de não revelar nenhum pormenor que possa estragar o prazer de ler ou ver "Ainda Estou Aqui" (e os dois são bem diferentes), publicamos a entrevista de Marcelo Rubens Paiva ao SAPO24 e as relações entre os dois países não ficaram de fora. É mais o que nos une ou o que nos separa? "O tambor dos negros mudou toda a música brasileira, a nossa literatura é muito mais diversificada. A gente cada vez mais se separa, mas acho que alguma coisa nas nossas almas ainda nos une bastante".

"A partir da adolescência passei a sofrer muito preconceito, as pessoas afastaram-se de mim com medo de estarem envolvidas com uma família de um desaparecido político"

Nasceu em 1959, era miúdo quando a ditadura começou (1964), cresceu com ela. O que recorda desse tempo?

Quando a ditadura acabou tinha 26 anos. Como criança não senti muito, a diferença é que o meu pai foi exilado. Na verdade, foram duas ditaduras, uma que começou em 1964 e foi até 1968, outra de 1968, com o Ato Institucional N.º5 [13 de dezembro], a 1985, que acabou com todos os direitos civis individuais - foi aí que os protestos foram proibidos, que a juventude foi embora do Brasil ou caiu na luta armada ou foi presa. Foi quando os artistas, os intelectuais, professores, padres foram expulsos do Brasil, como aconteceu com Fernando Henrique Cardoso.

Mas, num primeiro momento, lembro-me da ditadura porque tivemos de ir a Brasília, quando o meu pai estava na embaixada, passei o meu aniversário de cinco anos na embaixada. Depois, o meu pai foi para o exílio, mudámos de cidade - alguns amigos também - o meu pai voltou.

E lembro-me de conversas políticas na minha casa. Quando tinha dez ou 11 anos o meu pai já explicava o que tinha acontecido, porque é que tinha sido cassado, o que representava a ditadura, havia discussões nas escolas.

A partir de 1968, quando aconteceu o golpe em cima do golpe, como nós dizemos, a ditadura endureceu e aí dava para perceber, ouvíamos notícias, líamos nos jornais sobre o sequestro de embaixadores, sobre terroristas. E havia pessoas que se escondiam na minha casa - aliás, desde a minha infância que havia pessoas a esconder-se em minha casa, sabíamos o que estava a acontecer.

Agora, a rotina de uma criança de dez, 11, 12 anos não muda, continua igual: vai para a escola, vai brincar, vai para a praia. Mas, a partir da adolescência, depois do que aconteceu com o meu pai, aí passei a sofrer muito preconceito, as pessoas afastaram-se de mim com medo de estarem envolvidas com uma família de um desaparecido político. Nessa altura mudei de cidade, do Rio de Janeiro para São Paulo.

Lembra-se da última vez que viu o seu pai?

A última vez que vi o meu pai? Não lembro.

"O Brasil ficou muito mais careta"

No fim da ditadura em Portugal, muitos portugueses foram exilados para o Brasil...

Lembro-me muito bem, o Fernando Gasparian [empresário e político brasileiro, do Partido do Movimento Democrático], que era muito amigo do meu pai, recebia muitos portugueses em sua casa.

Patrícia Reis junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 27 de fevereiro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "A Desobediente - Biografia de Maria Teresa Horta", publicada pela Contraponto.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

Mais do que uma narrativa biográfica, "esta obra é uma conversa íntima, em vários momentos sussurrada ao ouvido, com uma mulher, poetisa, mãe, ativista política e uma das vozes mais influentes e inquebrantáveis de Portugal", lê-se na sinopse do livro.

Saiba mais neste artigo.

Lembro-me de o Brasil ser muito mais moderno do que Portugal, mais avançado nos costumes. Hoje, não é assim. O Brasil sempre foi careta e ninguém sabia ou está a ficar careta, mais do que Portugal?

Ficou, né? O Brasil ficou muito mais careta. Era mais progressista do que Portugal, Portugal tinha a influência do salazarismo, da Igreja católica. Quando se democratizou, quando aceitou a independência das colónias, quando recebeu os emigrantes de Angola, mudou bastante, tornou-se uma sociedade muito mais progressista, abriu-se para a Europa. O Brasil continuou o mesmo, na verdade. Continuou a ter leis muito conservadoras em relação às drogas, em relação aos direitos das mulheres.

Estamos a celebrar os 50 anos do 25 de Abril em Portugal. A Constituição do Brasil é de 1988, tem 36 anos. Isso faz diferença?

O Brasil está a fazer um caminho que não terminou ainda. Ainda não se julgaram os torturadores, o exército brasileiro ainda não está no controlo dos civis, não sabemos o que é ensinado nas academias militares - sei que aprendem a visão da ditadura, que os militares estavam a salvar o Brasil do comunismo -, os direitos individuais ainda não são respeitados.

Acho que a ditadura brasileira não terminou. É muito difícil as pessoas entenderem o que é o regime democrático ou o que é o regime republicano. Você vê hoje um congresso completamente autoritário, de direita, e que manobrou para ter o controlo do orçamento. Vê o desprezo das elites, de certas elites políticas, pela cultura, pela educação, pela saúde. Bolsonaro foi um exemplo disso, a ditadura ainda está muito presente.

"No Brasil, a ditadura foi derrotada, mas não houve Nuremberga, não foram presos generais"

A ditadura é um tema mal-resolvido? Soube que a certidão de óbito do seu pai apenas foi corrigida recentemente. 

Não basta ter uma certidão de óbito, os arquivos não foram abertos até hoje. Os militares que torturaram e mataram o meu pai foram promovidos, ganharam medalhas, alguns estão vivos e a receber pensões. Não existe uma punição, não houve um rompimento como aconteceu na Argentina, em Espanha, no Chile.

É fundamental que esse julgamento seja feito. Imagine o nazismo sem o julgamento dos nazis, sem os Julgamentos de Nuremberga. É o que  acontece com o Brasil, a ditadura foi derrotada, mas não houve Nuremberga, não foram presos generais.

Mais, no Brasil, a rodovia principal do estado de São Paulo chama-se Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura, o general que deu o golpe. E uma avenida importantíssima tem este nome. Mas há muitos mais, São Paulo é uma vergonha, as estradas todas têm nomes de grandes esclavagistas, ditadores. A única estrada que tem um nome digno é a Ayrton Senna.

No Brasil, tivemos os chamados bandeirantes, os paulistas que entravam pelos rios para pegar ouro e escravizar indígenas. Três estradas principais têm nomes de bandeirantes, estátuas de bandeirantes, monumentos de bandeirantes. É muito cruel, é muito chocante. Porque destruíram a população indígena do estado, de ouros estados, mataram, escravizavam.

Sem fazer "spoiler", o livro e o filme têm diferenças. No filme, ao contrário do livro, a tortura é subliminar.

Foi um pedido meu. A intenção do filme é a história da minha mãe, é sobre ela, não é sobre o meu pai. A minha mãe foi presa, mas não viu tortura e não foi torturada. Então, o filme respeita o olhar dela, que é quem narra o filme.

Além disso, acho que não é preciso mostrar uma cena de tortura para saber o que é a tortura. Acho que o filme inteligente é aquele que vê sem precisar de mostrar. Já houve muitos filmes com cenas de tortura, inclusive filmes sobre a Guerra do Vietname, sobre a Segunda Guerra Mundial, toda a gente sabe o que é a tortura, já todos viram, para quê mostrar?

"A pessoa com Alzheimer perde a alma, vira um corpo - e um corpo que dá trabalho, um corpo de criança, que você precisa alimentar, você precisa limpar, você precisa carregar"

A sua mãe sofria de Alzheimer, morreu em 2018, aos 89 anos. Decidiram interditá-la e foi nomeado seu cuidador. Como foi o processo?

A minha mãe começou a perder a memória com 74 ou 75 anos. E foi desaparecendo. Um processo lento, muito, muito lento. Tanto que no livro há uma cena em que ela conversa com o juiz e com as advogadas que estão a tratar da interdição. Ela está consciente, mudou de casa, organizou mobília, quadros, abriu conta num banco novo, perto de casa, ia aos sítios, à farmácia.

Cada caso é um caso, cada família é uma família. São várias formas de demência e várias formas de cuidar. Costumo dizer que a pessoa com Alzheimer perde a alma, vira um corpo - e um corpo que dá trabalho, um corpo de criança, que você precisa alimentar, você precisa limpar, você precisa carregar. Vira um bebé. É muito cruel, mais ainda para uma pessoa que teve uma história tão digna, tão rica, com tantas histórias para contar e que sempre cuidou de todos nós. De repente, a minha mãe desaparece, mas não desaparece fisicamente, está viva.

Uma história com a sua mãe que o tenha marcado e que tenha ficado fora do filme, pode contar?

O filme é muito o ponto de vista da minha mãe, foi uma decisão nossa. Ficaram de fora as minhas histórias naquele período, por exemplo, quando fui para uma quinta e fiquei escondido durante doze dias, sem saber se a minha mãe ou o meu pai estavam vivos ou não, porque tinham medo que eu também fosse preso.

Há também os conselhos da minha mãe como mãe, que me deu no meu amadurecimento, as descobertas que eu fazia com o tempo sobre o que tinha acontecido. E o Alzheimer, todos os processo do Alzheimer - infelizmente, não havia tempo para tudo, o filme já estava com duas horas e dez, focámo-nos mesmo na ocorrência da prisão dela e na luta dela. 

"Quando vi o filme pela primeira vez, em Veneza, chorei sem parar"

Qual a sua reação quando viu o filme "Ainda Estou Aqui" pela primeira vez, no cinema?

Bem, eu tinha lido o roteiro, tinha participado das discussões sobre o roteiro, o que ia ficar, o que era prioritário, cada cena - cheguei até a sugerir coisas, diálogos. Por isso eu estava um pouco preparado, mas, mesmo assim, quando vi o filme pela primeira vez, em Veneza, chorei sem parar.

Estava ao lado das minhas irmãs, foi um evento muito comovente. Primeiro, porque a minha avó nasceu em Módena, que é ali perto, e então sentíamos ali o clima de casa. Depois, coincidentemente, foi um encontro familiar de toda a gente, estava todo o mundo pela Europa, e quando chegou o convite para ir a Veneza, alugaram Airbnb, encontrámo-nos todos, levei os meus dois filhos, vi as minhas irmãs, que não vejo quase nunca, os sobrinhos, primos que moram noutros países. Foi muito emocionante ver a nossa história ser aplaudida, ser vista e ser reconhecida: Eunice Paiva e as suas palavras serem difundidas para o mundo. Descobrimos que a nossa história era uma história que interessava a todos, que é uma história universal.

A sua mãe era também sua revisora. Era a sua principal crítica? 

A minha mãe era uma pessoa muito culta, muito ligada em literatura, tinha um bom gosto incrível. Lembro-me que lia Henry James, Fitzgerald, lia literatura moderna. Ela era crítica, mas não era... Entendeu o meu estilo coloquial, jovem, os temas que eu abordava. Tudo isso ela respeitou. O que ela não gostava é que eu falasse palavrão, só isso.

"Como qualquer homem, casei, tive filhos, namorei, bebi, fui a festas, dancei, pulei carnaval, viajei pelo mundo todo"

Como foi crescer no meio de mulheres?

Crescer num ambiente feminino foi bom e ruim. Bom porque eu era o rei da casa, até hoje sou. Ruim porque não tinha um amigo homem com quem trocar confidências. Mas acho ótimo, achei ótimo, porque conheci o universo feminino, que é muito mais interessante, muito mais rico do que o masculino.

Perdeu o pai aos 12 nos, aos 20 anos ficou tetraplégico (história que conta em "Feliz Ano Velho"), viu a sua mãe sucumbir em vida. Qual o acontecimento que mudou a sua vida?

Já me fizeram essa pergunta uma vez, num documentário, e a minha resposta foi surpreendente até para mim. Mas hoje em dia entendo a resposta. O momento que mudou a minha vida foi quando Caio Graco, editor da Brasiliense, me convidou para escrever "Feliz Ano Velho", me sugeriu escrever um livro com a minha história.

É um amigo do meu pai, amigo da família, sabia a minha história, sabia que eu tinha sido um jovem bastante ativo nos anos 70, culturalmente, politicamente. Sofri o acidente com 20 anos. Ele foi a minha casa e disse-me: "Porque é que você não escreve o que te aconteceu?" Tinha a melhor editora do Brasil, uma coleção de novos escritores, e eu escrevia contos, crónicas, escrevia em jornais alternativos.

Acreditei nele e comecei a escrever "Feliz Ano Velho". E isso mudou não só a forma como estou na minha profissão, porque depois disso escrevi mais de dez livros - sobre o sistema, peças de teatro -, como também mudou a forma como eu coloquei para fora todas as angústias da minha vida, como eu lidei com as minhas tragédias. E foi uma forma de militar, de ser ativista e de colocar o dedo na ferida da ditadura brasileira, contar a história da ditadura, uma lição.  

Que pessoa hoje seria Marcelo Rubens Paiva se não tivesse sofrido esse acidente? 

Não tenho a menor ideia. Mas sobrevivi escrevendo, militando, a ser ativista dos direitos humanos, dos direitos das pessoas com deficiência. E, como qualquer homem, casei, tive filhos, namorei, bebi, fui a festas, dancei, pulei carnaval, viajei pelo mundo todo.

Entre os livros que escreveu está "Bala na Agulha", uma crítica à classe política brasileira.

"Bala na Agulha" é um livro sobre a corrupção dos políticos brasileiros, um romance policial inspirado no período Collor de Mello [1990-92].

"O Brasil tem problemas históricos que não foram resolvidos. A escravatura não foi resolvida, a ditadura não foi resolvida"

Se o livro fosse escrito hoje, o que é que mudava?

Nada [ri]. Isso é terrível, terrível. Apesar de o nosso ministro da Economia ser talvez das pessoas mais honestas que conheço.

Muitos comparam o Brasil com o voo da galinha, mal chegou a levantar voo e já está no chão outra vez. Porquê?

O Brasil tem problemas históricos que não foram resolvidos. A escravatura não foi resolvida, a ditadura não foi resolvida. Há pouco eu falava no nome das ruas... Ontem estava numa paragem de autocarro para ir para casa. Demorou muito e passaram vários autocarros. Um dizia Marquês de São Vicente, outro Princesa Isabel. E pensei, meu Deus, estamos em 2025 e os autocarros vão para lugares ainda da monarquia brasileira. Como é possível? [ri] Devia ser o autocarro para a Inteligência Artificial, o autocarro para Silicon Valley.   

Moro num bairro chamado Perdizes, todo ele com nomes indígenas. Moro na Rua Cayowaá, equina com a Rua Paracuê, duas tribos indígenas. Todos os nomes ao redor são indígenas: Caiubí, Apinajés, Apiacás... Estes são nomes de bairros importantes de São Paulo, importantíssimos. Anhangabaú é o símbolo de São Paulo. No entanto, é a terra dos bandeirantes. São contradições em cima de contradições.

São Paulo foi fundada por jesuítas, mandados pelos portugueses como embaixadores. São Paulo foi fundada pelo padre Anchieta (existe uma estrada que vai até Santos com o nome dele), que fez uma escola para catequizar os índios, para os educar, para os ensinar a vestir. Então os índios passaram a acreditar em Deus e Jesus. Agora, veja a contradição: os primeiros compradores de escravos africanos no Brasil eram jesuítas. É uma história cheia de contradições, não acabam nunca.

E é uma loucura estar numa paragem de autocarro numa avenida chamada Bandeirantes, passarem autocarros com nomes de marqueses e princesas e ir para um bairro cheio de ruas com nomes indígenas. 

Podia ser uma cena dos Monty Python?

[Ri] É exatamente Monty Phyton, uma grande sopa de conflitos históricos não resolvidos: jesuítas, bandeirantes, indígenas escravizados, negros, imigrantes. Uma loucura, este país.

Deus é uma construção do Homem ou o Homem é uma construção de Deus?

Ahahahahahahah! Você quer me indispor?

Era só uma provocação(zinha).

Olha, não acredito em Deus, acredito em deuses. Acredito em deuses do Iorubá, em deuses angolanos, em deuses indígenas, na mitologia grega. Acredito em todos os deuses. 

Quais são hoje as suas grandes causas?

Infelizmente, é o machistas, fascistas, racistas não passarão. E a grande causa que, infelizmente, voltou é o fascismo, que está em alta no mundo.

"O tambor dos negros mudou toda a música brasileira, a nossa literatura é muito mais diversificada. A gente cada vez mais se separa, mas acho que alguma coisa nas nossas almas ainda nos une bastante"

O filme é também importante por essa mensagem?

Acho que está a ser. Esgotou em França, onde a extrema-direita quase ganhou as eleições, em Itália, que tem um governo de uma primeira-ministra com inspirações em Mussolini, está a esgotar até nos Estados Unidos, que estão a viver o pesadelo Trump. Acho que o filme veio numa hora em que as pessoas estavam a precisar de ouvir um pouco as palavras de Eunice Paiva, palavras de conciliação e de tolerância.

Ganhou um bolsa para estudar nos Estados Unidos. O que guarda dessa época? 

Morei nos Estados Unidos na época do boom da Internet, em 1994/95. Vivia em Palo Alto, na Califórnia, onde está a Universidade de Stanford. Silicon Valley era uma região bastante progressista - São Francisco era a capital gay, era gay friendly. Mas os Estados Unidos mudaram muito, os ricos ficaram mais ricos e os pobres ficaram mais pobres. Ainda conheci os EUA quando existia uma certa dignidade, respeito pelo outro.  

Quando morei lá, Palo Alto tinha várias livrarias, cinemas e dois os três sem-abrigo. Quando voltei, acho que 15 anos depois, tinha 100 sem-abrigo, nenhuma livraria e várias lojas da Mercedes, da Lamborghini e da Ferrari. Virou uma nova geração, sem empatia, sem noção de bem-estar social, que tomou o poder nos Estados Unidos. De lá para cá isso só piora.

Brasil e Portugal. É mais o que nos une ou aquilo que nos separa? 

Ah, o que nos une é a língua, a arquitetura, a comida. Mas fomos separados por causa da influência indígena e negra na nossa cultura, na nossa maneira de ser, não é? O espírito brasileiro é um espírito muito misturado, muito dinâmico, e tem também a influência das imigrações; São Paulo é uma cidade muito italiana, por exemplo, as pessoas falam de um jeito 'italianado'.

Mas é assim, o tambor dos negros mudou toda a música brasileira, a nossa literatura é muito mais diversificada. Mas é difícil dizer, a gente cada vez mais se separa, mas acho que alguma coisa nas nossas almas ainda nos une bastante. Tenho um pouco de ascendência portuguesa, o meu Paiva é português, o meu avô Paiva é descendente de portugueses. Mas sou muito italiano, na maneira de ser, na maneira de falar, na maneira de ver a vida.

Sobre o que vai escrever a seguir?

Já escrevi, já está pronto. É um livro chamado "O Novo Normal", sobre quando fui pai, quando me separei, quando houve a pandemia e o governo Bolsonaro. E quando a minha mãe morreu. É um livro que praticamente é uma sequência do "Ainda Estou Aqui". Já está escrito, vai ser publicado pela mesma editora depois do Carnaval. E é uma obra que não é igual, mas é muito semelhante a tudo o que eu tenho feito.