Hoje é a única deputada portuguesa a representar o Bloco de Esquerda no Parlamento Europeu, mas já foram três. Está no Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde e é presidente da Delegação para as Relações com os Países do Maxereque (inclui Líbano, Jordânia, Síria e Egipto) e membro da Comissão de Assuntos Económicos e Monetários e da Comissão Especial sobre os Crimes Financeiros e a Elisão e a Evasão Fiscais. Apesar de não ser agradável estar sozinha, Marisa Matias não se incomoda: “Foi uma escolha democrática”.
Marisa Matias nasceu no início de 1976, em Alcouce, Condeixa-a-Nova, uma aldeia com menos de 100 habitantes e onde a democracia demorou a chegar. “Quando andava na primeira classe tinha de ir a pé para a escola, seis quilómetros para um lado e seis quilómetros para o outro. Depois passámos a ter escola, a ter uma extensão do centro de saúde na freguesia, a ter transportes públicos. Agora perdemos tudo. Senti na pele essas conquistas e o valor da democracia na vida das pessoas. E também acompanhei o retrocesso de tudo isso, o desmantelamento do Estado social”, diz.
Socióloga e investigadora da Universidade de Coimbra, foi a segunda responsável portuguesa por uma diretiva comunitária em 25 anos, conseguindo que a legislação contra medicamentos falsificados fosse aplicada em todos os Estados-membros. Antes disso, apenas Jorge Moreira da Silva (PSD) tinha conseguido fazer legislar no sentido da criação do quadro de comércio de direitos de emissão de gases com efeito de estufa.
Foi em 2011, e a falsificação de medicamentos estava a crescer de forma desmesurada, com as apreensões a aumentar 400% desde 2005. Estimava-se então que entre 1% e 3% dos medicamentos à venda fossem falsificados.
De lá para cá, Marisa Matias foi fazendo caminho, e é peremptória ao afirmar que “os grandes disparates que se cometeram na União Europeia foram ao nível das políticas económicas”. Hoje, continua a lutar sobretudo pelo ambiente, pelos refugiados - e a desumanidade das retomas a cargo - e pelo combate à evasão fiscal, que vale sete orçamentos europeus.
Nasceu depois do 25 de Abril, em fevereiro de 1976. De que forma é que isso a marcou?
Nasci e tornei-me adulta numa aldeia muito pequena, com menos de 100 habitantes: Alcouce, concelho de Condeixa-a-Nova, no distrito de Coimbra. Penso que é por isso que respeito tanto o Estado social e os serviços públicos… A democracia não chegou ao mesmo tempo a todas as regiões do país e eu senti na pele a diferença.
Sei perfeitamente que vivi na geração que teve maior igualdade de oportunidades, de outra forma nunca poderia ter feito o percurso que fiz
De que maneira?
Quando andava na primeira classe tinha de ir a pé para a escola, fazia seis quilómetros para um lado e seis quilómetros para o outro. Depois passámos a ter escola, passámos a ter uma extensão do centro de saúde na freguesia, passámos a ter transportes públicos, coisas que antes não tínhamos. Senti essas conquistas e o valor da democracia na vida das pessoas, por isso a valorizo tanto. Da mesma maneira que sei perfeitamente que vivi na geração que teve maior igualdade de oportunidades, de outra forma nunca poderia ter estudado ou ter feito o percurso que fiz.
Porquê?
Estudei numa altura em que não havia propinas, em que o ensino era verdadeiramente público. Mesmo trabalhando para ajudar a pagar as despesas, se não fosse o ensino público não poderia ter feito o que fiz. Mas também acompanhei o retrocesso disso tudo, o desmantelamento do Estado social. Tudo isso me marca como pessoa e como ativista política. A nossa vida, a experiência, define as coisas que acabamos por defender e em que acabamos por acreditar. Vivi em Alcouce até aos 22 anos e quando acabei a faculdade fui viver para Coimbra, onde já tinha começado a trabalhar.
Em que é que trabalhava?
Trabalhei em várias coisas: em bares, fiz limpezas, trabalhei como secretária enquanto estava a fazer licenciatura, fui rececionista. A esquerda que eu integro não tem nada contra trabalhar para estudar, tem contra o trabalho sem direitos, contra trabalho precário e com períodos de experiência inaceitáveis. A questão está em saber se crianças que nascem em locais diferentes, com condições socioeconómicas piores terão as mesmas oportunidades na vida, é isso que o Estado deve garantir. Eu sinto que tive, mas os meus sobrinhos já não têm. Já não há escola, já não há centro de saúde, já não há transportes…
A política europeia também serve para reduzir assimetrias. No entanto, a abstenção é elevadíssima, as pessoas parecem desconectadas…
Isto da abstenção, sobretudo nas eleições europeias, é mesmo grave, quase 70% em termos globais. Portugal tem uma política muito nacionalizada, não há grande conhecimento do que se passa aqui [Parlamento Europeu] porque também não há muita comunicação.
Por culpa de quem?
Penso que as culpas são partilhadas por todas as partes envolvidas. Uma coisa é sermos realistas e percebermos que o que se passa na Assembleia da República vai influenciar o voto, as pessoas votam quase sempre no que lhes é mais próximo e naqueles com que se identificam mais. Gostava muito que a votação nas europeias fosse para avaliar o que fizemos, as propostas que temos, mas não sou ingénua ao ponto de acreditar que não vai estar em causa a atuação dos partidos a nível nacional.
Tirando as diretivas relativas aos sacos de plástico, ao roaming ou ao artigo 13, os portugueses sabem o que se discute na Europa?
A questão é que fazemos as discussões no Parlamento Europeu primeiro e em Portugal essas matérias só se discutem quando se vai fazer a transposição para o direito nacional. O hiato temporal é inevitável, porque entre ser aprovada uma legislação e essa legislação ser transposta, integrada no direito nacional, passam dois ou três anos. Isso é incontornável.
O mercado de falsificação de medicamentos rendia lucros anuais na ordem dos 500 mil milhões de euros
O que é que fez no Parlamento Europeu que a tenha feito sentir que fez a diferença por Portugal, pela Europa?
Muitas coisas. Desde logo a diretiva de combate aos medicamentos falsificados marcou diferença. Tínhamos um mercado de falsificação de medicamentos que rendia lucros anuais na ordem dos 500 mil milhões de euros e não havia garantias para as pessoas que estavam a tomar esses medicamentos, fosse insulina, quimioterapia ou outra coisa qualquer. Foi um dossier que tive em mãos e negociei durante mais de dois anos, mas confesso que quando foi aprovado senti que podia fazer a diferença: legislar para 28 países, 500 milhões de pessoas, é uma coisa da maior importância. Eliminámos do circuito de distribuição medicamentos falsos, que são assassinos silenciosos, porque mesmo que não estejam a fazer mal, não estão a fazer bem a quem precisa de medicamentos regularmente. É um risco de saúde pública.
E na atual legislatura?
Mais recentemente, quando foi votado serem ou não aplicadas sanções a Portugal, o facto de ter sido uma decisão que ficou a cargo dos coordenadores e coordenadoras da comissão de Assuntos Económicos e Monetários, e sendo eu a única portuguesa com assento nessa votação, que foi tão renhida, fez uma diferença imediata. Por outro lado, os financiamentos às Ciências Sociais e Humanidades, sistematicamente eliminados nas propostas iniciais da Comissão Europeia, no âmbito dos programas de Investigação e Inovação, foram repostos por propostas minhas, de que fui relatora ou relatora sombra. Também se têm vindo a conquistar direitos, ainda agora votámos um relatório que apresentei com propostas de licença de maternidade, paternidade e subsídio de doença para quem está a fazer investigação em projetos europeus, que não existiam. Em muitas áreas há a perceção de que as medidas talvez não sejam muito reais para as pessoas, mas dedicamo-nos a estes dossiers ao longo de vários meses, às vezes anos, e o impacto é sentido. Claro que também há dossiers nos quais tive responsabilidades e que não correram tão bem.
Por exemplo?
Ainda neste mandato fui relatora do processo “Land use, land change and forestry, que tem a ver com a forma como são contabilizados os gases com efeito de estufa no caso da reutilização dos solos e da reflorestação. Bati-me até ao final por uma proposta mais justa e que não valorizasse tanto a reflorestação que é feita nos países nórdicos, que é para fins comerciais e ganha-se créditos por reflorestar mas depois as árvores são cortadas logo que possível para o mercado - porque é uma fonte de financiamento desses países - e beneficiasse mais os países do sul, muito fustigados pelos incêndios. Imagine o que é o aumento de emissões nessas alturas - que depois não se contabiliza ou não recebe créditos de forma mais acentuada para uma reflorestação séria, para ficar no território. Há aqui um mecanismo que acaba por favorecer o lóbi dos países do norte. Esta casa preferiu compensar um modelo de reflorestação mais apontado para o negócio e não tanto para verdadeiramente fazer captura de dióxido de carbono da forma mais natural que existe. Há coisas que, dependendo de como conseguimos maiorias, correm bem ou mal. Mas todas afetam a vida dos cidadãos. Neste caso votei contra a minha própria proposta, que foi completamente alterada.
Normalmente com quem é que o Bloco de Esquerda, integrado na Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde faz alianças?
A maior parte das alianças, inevitavelmente, são negociadas entre famílias políticas. Evidente que muitas vezes temos em mãos dossiers que, para obterem maiorias, têm de ser negociados até além da identificação ideológica esquerda-direita, de outra forma, e não existindo uma maioria de esquerda neste parlamento, eu nunca teria conseguido fazer aprovar rigorosamente nada. A maior parte das decisões são dessa natureza: quando estamos a falar do combate à fraude, evasão e elisão fiscal - fui vice-presidente de duas das comissões especiais que lidaram precisamente com o LuxLeaks [Luxemburgo Leaks, escândalo financeiro que revelou operações secretas de mais de 300 empresas para fugirem ao fisco] - tivemos de fazer um entendimento global. Mas, por exemplo, quando debatemos questões de liberdades, de direitos fundamentais, há uma aliança mais fixa dos partidos da esquerda com os verdes e os liberais [Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia], como em política económica os acordos mais recorrentes são entre os socialistas e democratas [S&D] e o Partido Popular Europeu…
E há também a altura em que se unem por filiação nacional, digamos assim…
Sim, há áreas em que nos juntamos mais por filiação nacional, como quando é para ativar fundos de apoio, como aconteceu no caso da Madeira, por causa dos incêndios e das chuvas torrenciais, ou quando nos unimos contra os têxteis do Paquistão, ou quando estamos a tratar de questões relacionadas com a PAC [Política Agrícola Comum], como o fim das quotas leiteiras. Por definição, a aliança é entre família política, mas a geometria varia bastante.
Estamos a falar de fugas que, só no espaço da União Europeia, são o equivalente a sete orçamentos comunitários
Quase todas as medidas implicam financiamento, dinheiro. O orçamento da UE é cada vez mais limitado. Como contornar isso?
Não há dinheiro para tudo porque não há vontade política. Se houvesse mesmo vontade política bastava haver um real combate à fraude fiscal, à evasão fiscal, à elisão fiscal, ao branqueamento de capitais e já havia dinheiro. Estamos a falar de fugas que, só no espaço da União Europeia, são o equivalente a sete orçamentos comunitários. Portanto, não se pode dizer que não há dinheiro, o que ele está é muito mal distribuído, muito protegido em alguns setores e nada protegido noutros. Há uma sobrecarga de impostos quando falamos, por exemplo, do trabalho, mas não há sobrecarga, nem sequer carga, quando falamos de multinacionais e do setor financeiro. Tudo depende do modelo de União Europeia que queremos.
Esta coisa de as multinacionais e grandes empresas não terem de pagar impostos nos países onde geram lucros, mas sim onde lhes oferecem melhores condições, é de uma profunda injustiça
E que modelo de União Europeia quer?
Não se está a falar de alguma coisa muito inaceitável ou sequer chocante, está-se a falar de cumprir os valores inscritos nos tratados. Se não há vontade política para acabar com a concorrência desleal que existe entre os países da União Europeia por causa dos acordos fiscais, isso é que é esquisito. Esta coisa de as multinacionais e grandes empresas não terem de pagar impostos nos países onde geram lucros, mas sim onde lhes oferecem melhores condições, é de uma profunda injustiça do ponto de vista fiscal e faz com que muito dinheiro que faz falta às contas públicas não esteja lá. O mesmo se pode dizer das empresas digitais. Vivemos na era digital, é certo, mas não é normal que empresas que têm o mesmo tipo de atividade sejam taxadas de forma diferente: as que têm sede fiscal nestes países pagam em média 6%, quando as PME pagam três e quatro vezes mais, quando ainda por cima têm maiores custos com localização, trabalhadores, etc. Acredito que se tivéssemos um caminho orientado para a justiça fiscal não haveria falta de recursos. Só que não há vontade política para isso - e estamos a falar de recursos disponíveis que estão muito além daquilo que vai deixar de ser a contribuição do Reino Unido.
Porque é que considera essa concorrência desleal?
É um jogo viciado, este de pagar na Holanda, no Luxemburgo, Chipre, Malta ou em qualquer paraíso fiscal segundo os acordos que se fazem. Eu não posso fugir aos impostos no sítio onde trabalho; pago impostos na Bélgica e, como a taxa sobre o meu rendimento na Bélgica é inferior à que eu pagaria em Portugal, ao apresentar a declaração em Portugal pago lá a diferença. Também no seu caso paga os impostos onde exerce atividade, como acontece a qualquer trabalhador ou a qualquer pequena e média empresa - que representam mais de 80% do tecido industrial europeu. Não têm outra opção. É essa a perversão. Isto, obviamente, não vai contribuir em nada para o orçamento comunitário, a não ser para o aumento das contribuições sobre os Estados-membros. Mas conseguimos nós dizer que a Holanda e outros pagam mais à UE por atraírem multinacionais e os seus impostos? Portanto, o melhor é fazer a coisa de forma simples e não complicar o que não precisa de ser complicado.
O Eurobarómetro diz que as principais preocupações dos europeus são com o crescimento económico, com o desemprego jovem, com as alterações climáticas e protecção do ambiente, com a imigração e com o terrorismo. Qual a sua estratégia para cada uma destas áreas?
Algumas dessas áreas não se podem dissociar, porque o combate às alterações climáticas está relacionado com a questão do crescimento económico, por exemplo. Precisamos de reverter o modelo de crescimento que temos neste momento, que é completamente inimigo da defesa do ambiente e do planeta. E não temos mais nenhum, só temos este. Devíamos estar a apoiar ou a trabalhar num modelo de desenvolvimento económico que fosse também ele amigo do ambiente, no sentido de nos começarmos a proteger daquele que pode ser um momento trágico e irreversível: o aumento da temperatura do planeta. Depois será tarde de mais. Na verdade, temos cerca de 12 anos para reduzir em mais de metade o nível de emissões atual, já estamos atrasados.
Como é que isso se faz?
Passa por articular o crescimento económico com a política ambiental em todos os domínios, verificar o impacto em termos de emissões de todas as políticas associadas e fazer uma reconversão da economia. Isso é possível, ir caminhando para esquemas de menor desperdício, maior autonomia energética de cada um dos países, circuitos de distribuição mais curtos. Em áreas em que somos auto-suficientes, como o leite, por exemplo, não há nenhuma razão para tantas importações. Há coisas que se poderiam ganhar desta forma, sobretudo porque não há aqui perdas verdadeiramente significativas se se entender o bem coletivo como principal. Penso, de qualquer forma, que os maiores disparates têm sido cometidos ao nível das políticas económicas.
Não podemos continuar com esta atitude hipócrita de lamentar o terrorismo e de continuar a alimentá-lo em nome do negócio
E em relação ao terrorismo?
Em relação ao terrorismo era essencial ter uma verdadeira política para o desenvolvimento, mas, e sobretudo, acabar com a venda de armas por parte de países da União Europeia para territórios em conflito. No caso do Médio Oriente e das guerras na Síria, no Iémen, etc., as armas são francesas, são espanholas, são alemãs, são inglesas, não são armas árabes. Ou não comprar petróleo a territórios ocupados por terroristas, porque é isso que financia o terrorismo. Estes seriam elementos fundamentais de cooperação entre Estados-membros. O que não podemos é continuar com esta atitude hipócrita de lamentar o terrorismo - e reforçar a segurança -, mas não fazer rigorosamente nada para diminuir o conflito nas zonas onde ele existe e de continuar a alimentá-lo em nome do negócio.
E quanto à imigração?
Sobre isso, é óbvio que a União Europeia precisa de imigrantes. Muita da riqueza da União Europeia é gerada com trabalho imigrante e, portanto, não entro nessa narrativa de que é fechando fronteiras que se resolve o problema. Tanto assim é que precisamos e continuamos a recrutar trabalho imigrante de forma continuada. Em relação aos refugiados, não há nenhuma justificação para não termos recebido as pessoas que nos procuraram - e que, como disse antes, estão a fugir de guerras que nós alimentamos com armamento europeu - quando essas pessoas representam 0,2% da população europeia.
Esta teimosia, esta narrativa da invasão, que é falsa, promoveu o silenciamento das mortes no Mediterrâneo: 20 mil registadas nos últimos anos
O que pode dizer a quem defende o fecho de fronteiras?
O direito internacional obriga a proteger as pessoas com o estatuto de refugiado. Além de quase todos os países de onde eles vêm terem recebido muitos refugiados europeus durante a Segunda Guerra Mundial e em muito maior quantidade do que estamos a receber. Foram todos bem tratados. Foi esta teimosia, esta narrativa da invasão, que é falsa, que promoveu o silenciamento das mortes no Mediterrâneo: 20 mil registadas nos últimos anos. Estamos a ser coniventes com um crime contra a humanidade, é isto. Teríamos tido condições de trabalhar nas duas frentes: resolver os problemas na origem e recebendo as pessoas dignamente, coisa que não foi feita. Com isso alimentou-se narrativas que fazem crescer as forças da extrema-direita, a divisão entre os países, o ódio, a raiva e o medo, que não ajudam nada à construção europeia, só à destruição do projeto europeu.
Esse assunto leva-me à Turquia, o eterno candidato a membro da União Europeia, a quem pagámos para receber refugiados.
O processo com a Turquia foi no sentido de os manter fora de fronteiras. Fizemos outsourcing com a Turquia, com a Líbia e com outros países. Sendo que a Turquia nem sequer assinou qualquer dos acordos internacionais para proteção dos refugiados. Há situações, relatos de pessoas que são pessimamente tratadas, sem o mínimo respeito pelos direitos humanos. E os seis mil milhões de euros pagos à Turquia tinham dado e sobrado para recebermos as pessoas com dignidade. É uma narrativa política que não bate certo.
Dar a alguém o estatuto de refugiado ou trazer essa pessoa de um país em guerra, mesmo sendo familiar, é quase impossível, e as instituições dão-se ao luxo de nem responder a quem pede ajuda. Porque é que é mais fácil levar uma pessoa para um campo de refugiados do que deixá-la num local onde já tem um projeto de vida, uma solução?
É o desconhecimento total. Por exemplo, os refugiados sírios que saíram são mais qualificados. Como diz [António] Guterres, e bem, com esta política, a União Europeia o que fez foi deixar a gestão do fluxo de refugiados às redes de traficantes. Só quem tinha oito mil ou dez mil euros para pagar é que conseguiu sair do país. As pessoas com menos qualificações, com baixos rendimentos ficaram refugiadas no próprio território. Para fora foram os médicos, advogados, arquitetos, professores universitários, são esses que estão nos campos de detenção, nos campos de refugiados.
E como é que alguém, um cidadão europeu, pode pedir ajuda a um deputado?
Pode pedir. Há o caso de um refugiado sírio em Portugal, que veio ao abrigo do programa de Jorge Sampaio, e que foi estudar arquitetura para a Universidade de Évora. Pediu-me ajuda a mim e à deputada Ana Gomes [PS]. A família fugiu e ficaram todos separados: a irmã mais nova nunca conseguiu sair de Damasco, o pai foi parar ao Reino Unido, o irmão mais novo à Turquia, a mãe à Alemanha e ele a Portugal. Perderam contacto e pediram-nos ajuda para trazer o irmão da Turquia - antes foi uma trabalheira para trazer a mãe, médica cardiologista, de um campo na Alemanha. Para trazer o irmão, engenheiro na Turquia, contactámos várias vezes os serviços e várias vezes tivemos resposta a dizer que, por ser jovem e sírio, não tinha autorização para vir para Portugal porque havia risco de terrorismo - quando o que estas pessoas estão a fazer é a fugir ao terrorismo, não são terroristas. É muito difícil, mas com insistência…
Estas pessoas não são tratadas como pessoas, são tratadas abaixo de animais, (...) Não têm nome, não têm idade, não têm vida, não têm história, não têm sonhos, não têm nada.
Por isso pergunto: faz sentido separarem famílias, colocarem as pessoas em campos de refugiados quando elas já têm uma solução noutro local?
Essa é a questão, o sistema não está preparado nem programado para resolver estas questões. O que está a acontecer agora com as retomas a cargo é das coisas mais injustas e mais desumanas… Ao entrarem na União Europeia e ao serem distribuídos por campos de detenção, é atribuído aos refugiados um número de ficheiro. Ninguém se preocupa com a reunificação familiar, nem com absolutamente nada. Estas pessoas não são tratadas como pessoas, são tratadas abaixo de animais, para ser honesta. Não têm nome, não têm idade, não têm vida, não têm história, não têm sonhos, não têm nada.
Pode explicar o que é a retoma a cargo?
O que aconteceu foi que essas pessoas foram distribuídas por vários países. Aqueles que conseguiram saber onde estava a família, e por estarem em território europeu, foram juntar-se à família. Só que agora estão a ser sujeitos a processos de retoma a cargo: vão buscá-los onde eles estão e fazem-nos regressar aos países onde eles tinham sido distribuídos, mesmo que já estejam integrados. Ainda há pouco estive na Covilhã, num centro que acolheu os 18 refugiados do “Aquarius”, e estava lá um jovem refugiado que inicialmente tinha vindo para Portugal, mas que entretanto conseguiu ir para a Alemanha, onde tinha conhecidos. Foi obrigado a regressar a Portugal por causa do processo de retoma a cargo. Isto não faz sentido nenhum, até porque se as pessoas estiverem mais integradas, com gente que conhecem, a fazer o que gostam, as coisas vão correr melhor do em que comunidades onde estão desamparados, onde rejeitados por tudo. Não pode correr bem.
Não gosto de [Frans] Timmermans nem de [Manfred] Weber
Que candidato gostaria que ficasse à frente do Parlamento Europeu?
Não tenho um candidato - será um acordo entre as diversas famílias políticas, provavelmente PPE e o S&D serão ainda os dois grupos mais votados. Mas não gosto de [Frans] Timmermans nem de [Manfred] Weber.
Que pasta gostaria que Portugal tivesse na Comissão?
Não tenho preferência, acaba por ser uma relação de forças. O comissário Carlos Moedas fez um bom trabalho na pasta da Ciência e Inovação, que à partida não parecia ser uma grande pasta.
A nível nacional, a atual coligação poderá manter-se? E que consequências políticas poderá ter para o Bloco de Esquerda?
A política é ideologia, vai além das instituições, dos governos e dos parlamentos - não me parece que tenhamos de pensar se prejudica ou não o Bloco de Esquerda. Ninguém é ingénuo ao ponto de achar que num quadro em que um partido que tem uma relação de forças com mais peso, não sairá beneficiado naquilo que é bom. Mas numa situação em que é preciso assumir responsabilidades, não devemos querer saber que partido sairá prejudicado deste acordo, e sim como sairá o país.
Como sai o país?
Penso que o país saiu melhor. Agora, se é reproduzível ou não, isso depende da relação de forças antes e depois das eleições. E não me parece que se deva já fazer esse caminho, encontrar uma solução antes do resultado das eleições.
A propósito de alianças, não lhe perguntei sobre o Brexit e o entusiasmo com que os eleitores do Reino Unido irão votar…
Provavelmente estas eleições serão entendidas como um segundo referendo. Mas é uma imagem vergonhosa, aquela que as autoridades britânicas e a União Europeia estão a dar ao não conseguirem chegar a um acordo em quase três anos. Embora Michel Barnier tenha colocado as linhas vermelhas onde tinham de estar, na proteção dos cidadãos e da liberdade de circulação de pessoas e bens, na questão da fronteira da República da Irlanda com a Irlanda do Norte. O problema é que a União Europeia foi, em primeiro lugar, conivente com o senhor [David] Cameron e com as suas desventuras, ao permitir que se acabasse com o programa “Mare Nostrum” e ao permitir a maluqueira do referendo para ele se manter no poder. E, depois, ao alimentar também todas estas desventuras da senhora [Theresa] May e da sua disputa do poder pelo poder, a luta interna entre conservadores e trabalhistas.
Podem fazer-se referendos, e o referendo é um instrumento como outro qualquer, o que não se pode é referendar tudo
Isso significa que não se podem fazer referendos quando os resultados podem ser diferentes daqueles que alguns políticos desejam?
Podem fazer-se referendos, e o referendo é um instrumento como outro qualquer, o que não se pode é referendar tudo - é um instrumento que deve ser usado com peso e medida.
Concorda que se referende a saída ou permanência na UE?
Se recuarmos um bocadinho na história e percebermos os termos e a leviandade com que se chegou a este referendo, penso que dá para perceber não só como se brinca com estes instrumentos, como também com a União Europeia. Acredito que hoje não existe nenhuma forma de se ser europeísta sem ser crítico do projeto europeu e da maneira como ele evoluiu, porque tem evoluído num sentido muito negativo. E aí temos a extrema-direita a provar que muitos dos problemas reais das pessoas não foram respondidos, foi isso que criou espaços vazios. Espaços agora ocupados pela extrema-direita e que são a antítese de qualquer coisa que se possa construir em conjunto. Há decisões que podem tomar-se por referendo, mas depende dos termos. Aqui o referendo foi usado por David Cameron como forma de evitar que o UKIP [Partido de Independência do Reino Unido] elegesse alguns deputados para o parlamento nacional. E assim se joga a permanência de um país na UE (com a conivência da UE, volto a dizer).
Como é que se pode levar as pessoas a interessarem-se por política?
As pessoas, mesmo aquelas que não se interessam por política, acabam por estar a ter uma atitude política, porque a não participação é uma aceitação do que existe. Existe um défice democrático muito grande, não só nas instituições, nos partidos (sem exceção) e que está a levar à ascensão da extrema-direita. Porque é que os espaços vazios não foram ocupados por forças mais progressistas? É uma pergunta que devemos fazer para perceber onde está o erro. Provavelmente estamos muito longe das populações, embora haja um esforço, ele não é suficiente. Mas também não há um sentido de responsabilidade por parte das pessoas, há uma espécie de lavar de mãos em relação aos resultados. Vivendo nós em democracia, acredito que haja muitas pessoas que não se veem representadas nos partidos políticos existentes, mas há condições para se fazerem representar, para criarem os seus movimentos, para termos um bom modelo de cidadania. Hoje debate-se sobre se o voto deve ser obrigatório ou não, e penso que o voto obrigatório não pode não ser acompanhado por outra forma de fazer política, em que as pessoas participem ativamente.
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