É fundador do Nós, Cidadãos! e autor da letra do hino do partido, "Somos Nós Cidadãos/ Gente anónima em frente/ É preciso dar as mãos/ Para um país diferente", musicada e interpretada por José Cid, um amigo de há muitos anos. "Toda a gente gozou comigo: "Então agora és letrista?" Não, agora Mendo Castro Henriques é político, mas a verdade é que tem outras letras na gaveta, "e hão de lá estar por muito tempo", mas nunca se sabe.
Professor universitário, quatro filhos, três netos, aos seis anos, para desespero do pai, ocupava-lhe o escritório com grandes cidades construídas com Lego e Mecano. Passou pelo Liceu Pedro Nunes, "uma grande escola, com professores extraordinários", participou no MAESL [Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa] contra o regime e foi representante do seu curso, lembra-se de dirigir RGA com duas mil pessoas.
Esteve para seguir Finanças por pressão da família, e até entrou para o ISEG [Instituto Superior de Economia e Gestão], mas quando ia para o anfiteatro, a caminho de Matemáticas Gerais, arrependeu-se e voltou para trás: "Não é isto que eu quero", pensou. Foi para Filosofia, aquilo de que realmente gostava, e fez a sua carreira a partir daí. Em 1975 casou e ficou muito absorvido pela vida familiar, "era preciso ganhar a vida".
Só quando voltou à Defesa Nacional, no ano em que se doutorou, começou a pensar outra vez na política como coisa pública. Diz que chegou tarde, em 2007, para fundar o Instituto da Democracia Portuguesa, por causa do "Erro da Ota", que deu um livro, e sempre com o objetivo de reforçar a sociedade civil.
O Nós, Cidadãos, que começou por ser um movimento, transformou-se em partido e nas europeias conseguiu 1,05% dos votos [34.672 votos], uma subida em relação às legislativas de 2015 [0,40%, 21.439 votos]. Agora, concorre em 19 círculos eleitorais, deixando de fora Castelo Branco, Portalegre e Açores, onde não conseguiu listas. Em conversa com o SAPO24, explica a visão do partido para o país.
É fácil fazer um partido em Portugal?
Claro que não. Tal como em qualquer país europeu, partimos de culturas cívicas diferenciadas, e é preciso suscitar a revolta dos cidadãos. Os vários grupos do país vêem a crise que atravessamos muitas vezes segundo ângulos próprios, e o que o Nós, Cidadãos! fez foi dialogar com grupos de cidadãos, é essa a nossa origem.
Esteve para existir uma coligação com o Aliança, pensaram nisso?
O Nós, Cidadãos tomou a iniciativa de propor ao Aliança aquilo a que chamámos uma ligação ao centro. Houve conversações, essas conversações seguiram o seu caminho e, no fim, cada um seguiu de modo próprio.
Até já nos chamam o novo centro, por causa da nossa sigla: NC
Em que divergiram e porquê ao centro?
Para nós existe, claramente, como mostram os 19% de eleitores indecisos neste momento, um espaço ideológico por ocupar, porque os partidos tradicionais - PS e PSD - esvaziaram-se ideologicamente. O PSD sofre isso na perda de apoio, o PS ainda não sente esse problema porque tem o poder. Outros partidos extremaram-se, talvez não tanto como na Europa, mas já temos movimentos de partidos de direita ou de esquerda radical. O eleitor português estava habituado a escolher dentro de uma sociedade com coesão, dentro de valores estáveis, mas viu que os políticos tradicionais não estão à altura dos actuais desafios, não sabem renovar as agendas políticas - porque uma coisa é fazerem os programas eleitorais, outra coisa é dar uma mensagem muito forte de confiança e de esperança perante a crise. Essa é a tal atitude, força, timbre ideológico que os partidos tradicionais perderam e que esvaziou o centro. Aí surge o Nós, Cidadãos. Até já nos chamam o novo centro, por causa da nossa sigla: NC.
O Bloco Central possivelmente está morto para sempre e resultou [...] de uma degradação dos quadros políticos, que passaram a ser políticos profissionais
O Bloco Central nunca resultou em Portugal...
Mas são coisas diferentes. O Bloco Central possivelmente está morto para sempre e resultou do esvaziamento desses dois grandes partidos [PS e PSD] e, talvez, de uma degradação dos quadros políticos, que passaram a ser políticos profissionais, muitos deles vindos das juventudes partidárias, que deixou de recrutar na sociedade civil. Aliás, é uma regra básica da ciência política: uma democracia funciona bem quando opta para dentro de si a sociedade civil, e degrada-se quando a classe política se isola e desaparece. Em italiano isto é mais bonito, chama-se "recambio perfecto", e é o que o Nós, Cidadãos está a fazer com pessoas como José Roquette, Henrique Neto, Eduardo Correia ou Mariana Abrantes, ou seja, chamar à política pessoas da sociedade civil. Isto aconteceu de uma forma maravilhosa no 25 de Abril, na Assembleia Constituinte, estava lá a sociedade portuguesa, ninguém duvida, e por isso criaram uma solução duradoura, que foi a revolução da democracia. Neste momento precisamos da revolução da cidadania.
Com todo o respeito que temos pelos problemas das minorias, para nós o grupo que está mais em risco é o da maioria dos cidadãos
E que revolução é essa, exactamente?
Com todo o respeito que temos pelos problemas das minorias, para nós o grupo que está mais em risco é o da maioria dos cidadãos. Quer dizer, vemos uma certa cultura política que leva os grupos minoritários a vitimizarem-se, ou em função da orientação sexual ou da classe de rendimentos ou da etnia... E por sua vez isso é utilizado pelos extremos para uma cultura do ódio e do rancor, para separar a sociedade. Há uma certa cultura do divisionismo. Nós recusamos isso, achamos que primeiro está a sociedade portuguesa, que tem a sua liberdade de pensar de maneira diferente, mas não ao ponto de tornar a sociedade numa guerra e num conflito entre minorias. Depois isso é transformado na esquerda, quando interessa à esquerda, na direita, quando interessa à direita. Os partidos sem assento parlamentar são excluídos.
Existe no eleitor o sebastianismo 2.0, uma forma de abstencionismo do século XXI
Hoje, para a generalidade dos cidadãos, a questão da esquerda ou da direita pesa menos do que os temas transversais?
Absolutamente. Até costumo dizer que existe no eleitor o sebastianismo 2.0, uma forma de abstencionismo do século XXI. E, ao contrário dos partidos e de muitos observadores, não digo que a culpa é dos eleitores. Os eleitores estão a pôr o dedo na ferida e a mostrar a responsabilidade dos políticos profissionais, que lhes servem más agendas. O eleitor quer, basicamente, que o seu fim de mês seja um pouco melhor e quer ter um horizonte de fim de ano um pouco mais aprazível. Naturalmente que o Nós, Cidadãos tem o papel de dizer que não existe um pote ao fim do arco-íris e que é preciso desde já fazer correções muito importantes, muito decisivas, que propomos em áreas como a justiça, a saúde, a administração pública, o sistema eleitoral ou o emprego. Se essas correções forem feitas já, com urgência, então o seu fim de mês vai melhorar.
Antes de passarmos às correções, concorda com o voto obrigatório como forma de combater a abstenção?
Não acho necessário. A democracia é um direito e um dever, devemos sempre começar pelo apelo à consciência, à liberdade. Isso seria apenas um expediente, e a política não deve viver de expedientes, deve viver do despertar de consciências. Não são as medidas avulso que melhoram a qualidade da democracia, embora essas medidas possam ser pensadas, e temos algumas no nosso programa - votações ao sábado e ao domingo, o voto premiado, em que quem recebe uma soma por ir votar é o eleitor e não o partido. Mas antes disso é preciso incutir nas pessoas uma confiança que tem a ver com o facto de que o país existe e tem interesses permanentes. E o eleitor tem uma voz nisso.
Uma das nossas reivindicações é mexer na Lei do Referendo
Vamos então às correções de que fala e podemos começar por aqui, por aquilo que o Nós, Cidadãos preconiza para o sistema eleitoral.
Queremos, por exemplo, baixar o número de pessoas que são precisas para a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para formar um partido são necessárias 7500 assinaturas, para uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos são necessárias 20 mil. Isto faz sentido? O mínimo seria pôr a iniciativa ao nível do partido, porque um partido é muito mais perene. Mas há outros aspetos, como as cláusulas leoninas sobre o referendo, sobre as matérias que têm de ser aprovadas pelo Parlamento. Isto é, há muitas matérias em que o Parlamento diz: "Sim, sim, façam referendos, mas no fim nós é dizemos se é válido ou não". Isto é matar o referendo. No limite, é quase inconstitucional, sobrepor a vontade dos representantes eleitos à vontade expressa pelos eleitores. Portanto, uma das nossas reivindicações é mexer na Lei do Referendo.
Mudar em que sentido e o que seria referendável?
O sistema político eleitoral tem de ser mudado no sentido de valorizar mais o referendo. Tem tudo a ver com aproximar o Estado do cidadão, não o tornar ele, o governo. O Estado somos nós, não estamos no tempo de Luís XIV, "L'État, ces't moi". As grandes questões nacionais devem ser submetidas a referendo, que não deve ser controlado tipo torneira pela Assembleia da República. Por exemplo, achamos que a eutanásia não é uma questão para ser decidida por representantes políticos, é claramente uma questão social, da vida das pessoas. Não são 230 representantes políticos que dizem se a eutanásia é boa ou má. Em Portugal só houve três referendos até hoje, e dois sobre o mesmo assunto [aborto] - e o referendo sobre a regionalização muito mal explicado. Estamos no século XXI, queremos o que se chama uma democracia participativa. Temos de ultrapassar aquela fase terminal da democracia, em que só de quatro em quatro anos nos exprimimos, e chamar as pessoas a dar a sua opinião sobre as grandes questões. Aliás, isso é bom porque põe as pessoas a falar dos assuntos que interessam e que não ficam circunscritos aos representantes políticos, muitas vezes sujeitos à disciplina partidária e coisas do género.
O referendo tem ou não tem perigos?
Tem, não vamos para uma democracia referendária, mas vamos para uma democracia representativa em que o instrumento referendo deve estar presente.
Pode dar-me o exemplo de outro tema a referendar?
A prazo, faria também um referendo sobre uma questão a que também chamamos regionamento, porque as regiões não têm de ser iguais, e não são: uma coisa são as regiões autónomas, outra coisa são as regiões metropolitanas, outra coisa é o que chamamos regiões agropolitanas - isto vem da sociologia norte-americana.
Pode explicar o que é o regionamento?
Em palavras mais simples: faltam câmaras municipais em Portugal, por exemplo.
Será bom viver no Cacém, no leito de cheia, e estar à espera das ordens do Dr. Basílio Horta, que está a cuidar das coisas de Monserrate, em Sintra, e não liga às coisas do Cacém?
Há pouco a troika veio dizer-nos o contrário, que temos câmaras a mais. Foi um ai, Jesus e acabámos a fundir freguesias.
Mas pode-se fazer a união de câmaras e a criação de câmaras novas, segundo o rácio populacional. Vivem dois milhões de portugueses no Grande Porto e 2,5 milhões de portugueses na Grande Lisboa. O país é uma espécie de tabuleiro que foi inclinado para o litoral. Não vamos abrir uma guerra de bandeiras, porque sabe-se que as pessoas têm orgulho no seu concelho, e isso deve-se manter. Mas, tal como Londres e Paris foram divididas há mais de 20 anos, também o poderíamos fazer. Por exemplo, Queluz podia ter uma câmara, tem massa populacional para isso. Portugal tinha 302 concelhos desde Mouzinho da Silveira, 1832, e tinha 17 distritos. Em 1927 foi criado o distrito de Setúbal e depois de 1974 foram criados cinco ou seis concelhos, como Vizela e Trofa, passámos a ter 308 concelhos. Passaram todos estes anos não há uma adaptação aos novos portugueses. Será bom viver no Cacém, no leito de cheia, e estar à espera das ordens do Dr. Basílio Horta, que está a cuidar das coisas de Monserrate, em Sintra, e não liga às coisas do Cacém?
Para que servem as juntas de freguesia?
Possivelmente até é preciso reestabelecer juntas de freguesia. O debate traz a luz. Há um problema com as autarquias em Portugal, somos o único pais europeu que ainda não tem regiões. Achamos que deve haver criação de câmaras e fusão de câmaras.
Uma das questões que se coloca com a regionalização, descentralização ou regionamento, como lhe quiser chamar, é a da duplicação ou triplicação de estruturas e custos. Como se revolve?
É um problema dos políticos profissionais, que incutiram nas pessoas que eles é que mandam em tudo. Por isso, as pessoas dizem: "Lá estão os tachos", e entram no tal sebastianismo 2.0. Consideramos que é preciso chamar as pessoas participar, porque, afinal, estão muito mais esclarecidas do que pensamos. Os políticos profissionais é que as tomam como burras, e até lhes convém, porque assim votam sempre nos mesmos. E não vão buscar os abstencionistas e os indecisos.
Um dos problemas do Estado português é que resolver problemas atirando-lhes dinheiro
Logo no início desta conversa falou em prioridades, em medidas...
Deixe-me interromper apenas para dizer que, independentemente das medidas avulsas, que têm a sua forma de concretização e, mais importante, o seu orçamento, acreditamos que cada medida deve vir uma atitude de mobilização dos cidadãos, da sociedade civil, e não se deve resolver apenas atirando-lhe dinheiro. Um dos problemas do Estado português é que resolver problemas atirando-lhes dinheiro. O caso dos incêndios é um exemplo, atira-se dinheiro para os meios aéreos, dinheiro para os serviços de protecção, e depois fica tudo mais ou menos igual, porque não se mudou a cultura das pessoas que intervêm no terreno.
Os idosos são muito maltratados em Portugal, são metidos em campos de concentração, que se chamam lares
Ia perguntar-lhe por aquilo que são as causas prioritárias para o Nós, Cidadãos, que enumerou no início desta conversa.
O nosso primeiro rumo é contra a precariedade das pessoas e dos ecossistemas, não dissociamos. Desde logo as questões da natalidade e dos idosos. Os idosos são muito maltratados em Portugal, são metidos em campos de concentração, que se chamam lares. Depois temos o problema da natalidade e criámos a expressão família startup, ou seja, jovens casais para os quais propomos que sejam feitas deduções à matéria coletável se tiverem o primeiro filho. Dantes, os jovens casais não se preocupavam com impostos. Hoje, vejo tudo à volta do IRS, casam-se ou separam-se para facilitar... Deduzir 25% com o primeiro filho, 35% ou 45%, os números podem ser apurados depois, mas é um incentivo extraordinário para que se possa ter filhos.
O número de salários mínimos em Portugal disparou de 300 mil para 700 mil
O emprego jovem é um dos principais problemas da atualidade. Também é preciso resolver esse.
Os números do emprego do governo Costa são mais positivos do que os do governo Pàf, ninguém duvida disso. Neste momento, a taxa de desemprego está em 6,8%, mas isto é o que se vê à frente, e é positivo. O que não é positivo é que, por exemplo, o número de salários mínimos em Portugal disparou de 300 mil para 700 mil. Costa está a criar a geração do salário mínimo, e isso é gravíssimo. Por outro lado, surgem dezenas de milhares de pessoas de países do leste, da Ásia, mas com salários muito baixos, apenas estão a esmagar a base salarial, não vão resolver o problema dos vencimentos. O caso está mal parado. Recentemente saiu a legislação que aumenta de três para seis a duração dos estágios não remunerados - três já era um escândalo, daqui a pouco serão nove? É trabalho escravo, quase. Está a haver uma cosmética do emprego, com a geração do salário mínimo, com aquilo a que chamámos a democracia do call center, e isso não ajuda a economia portuguesa. Veja a precariedade dos jovens investigadores, eu sou universitário, vejo que vivem com o credo na boca. Isto é um problema de precariedade de qualidade de vida.
Está a haver uma cosmética do emprego, com a geração do salário mínimo, com aquilo a que chamámos a democracia do call center
Falou na precariedade dos ecossistemas, sem dissociar esse problema das pessoas. Refere-se a quê, concretamente?
Por exemplo, todos sabem que há um problema de água em Portugal e no mundo - aquíferos inquinados, alterações climáticas a perturbar a água disponível... Uma medida que já devia ter sido pensada é a criação de centrais de dessalinização. Há dez anos era mais complicado, mas hoje, com a chamada osmose reversa, é quase peanuts. Existem tecnologias extraordinárias em Israel, Espanha... Por que motivo o Algarve não tem centrais de dessalinização ao longo da costa? Tem um problema de águas potáveis. Portugal é o país dos melhores estudos e das piores implementações, veja o caso do mar...
Quando Portugal tem a maior plataforma continental.
Há trinta anos que está tudo mais ou menos mapeado, como devemos aproveitar cada pedaço. Estamos a falar de [quase] quatro mil milhões de metros quadrados. Mas fazer-se - criar uma Marinha de alto-mar de pesca, explorar os fundos mineralíferos ao largo dos Açores, aumentar a piscicultura - isso não se faz. Não acontece nada. Não podem ser medidas avulsas, tem de ser medidas para uma economia sustentável, circular, mas utilizamos a água da canalização para lavar carros, a mesma que bebemos.
Em janeiro deste ano convidámos o juiz Carlos Alexandre para ser o nosso candidato europeu. Ele hesitou, e depois acabou por dizer que não tinha condições
Porque não podemos falar de todas as medidas para todas as áreas, e apenas as principais, gostava de saber o que têm previsto na área da justiça, que foi, nas europeias, uma das bandeiras do partido.
O nosso segundo grande grupo de medidas é pela transparência, pela dignificação da justiça, contra a corrupção. Fomos talvez a primeira força a apresentar um programa completo contra a corrupção, em 2015. Em janeiro deste ano convidámos o juiz Carlos Alexandre que, aliás, é um ex-autarca do PS, da assembleia geral de Mação, para ser o nosso candidato europeu. Ele hesitou, e depois acabou por dizer que não tinha condições. Logo a seguir convidámos o Dr. Paulo Morais, antigo autarca do PSD. Como disse antes, olhamos ao centro, não queremos saber se as pessoas vêm de um lado ou de outro lado, queremos que tenham mérito.
Por falar em juízes: Rui Rangel, um juiz polémico, foi das pessoas a apoiar o Nós, Cidadãos. Onde é que isso vos deixa?
O juiz Rui Rangel era o representante da Associação de Juízes pela Cidadania e foi nessa qualidade que esteve presente em sessões que precederam o Nós, Cidadãos.
Voltemos, então, à transparência...
A nossa medida mais importante tem a ver com o Procurador-Geral da República. Durante décadas o Procurador-Geral da República era o homem da lei da rolha, o homem que impedia que uma geração nova de procuradores muito bons e brilhantes avançasse. Os processos eram arquivados, pura e simplesmente. Com as duas novas ocupantes do cargo [Joana Marques Vidal e Lucília Gago] melhorou um bocadinho, mas pensamos que há um problema: a justiça é um dos três poderes soberanos - legislativo, executivo e judicial - o procurador tem um papel central e, como é que aparece? Aparece da mesma maneira que se nomeia um director-geral ou um chefe de serviços: o governo decide, vai ao presidente da República, e é nomeado. Isto não é democrático, não dá independência.
Não queremos procuradores-gerais nomeados, de cabide, queremos procuradores do povo, eleitos pelos seus pares e pelo governo
Segundo o Nós, Cidadãos, como deveria ser feita a escolha do Procurador-Geral da República?
A nossa proposta é muito simples: o Procurado-Geral da República deve ser eleito. Há várias formas de fazer a eleição, o mínimo é fazer intervir os pares: o Conselho Superior do Ministério Público, que representa os procuradores, o Conselho Superior de Magistratura, que representa os juízes, e depois pode ser o governo, também, que representa os portugueses. Não queremos procuradores-gerais nomeados, de cabide, queremos procuradores do povo, eleitos pelos seus pares e pelo governo. Para nós esta é uma medida que vai ao coração do problema da justiça.
E qual é o problema da justiça?
Vários, desde a morosidade dos processos, que se arrastam tanto que às vezes prescrevem, à falta de quadros, de funcionários - nós, que estamos no processo eleitoral, vemos as pessoas afadigarem-se, recebemos emails às onze da noite, mas isto é no direito constitucional, porque depois há o direito penal, o direito civil, o direito administrativo... Os tribunais estão inundados, há estudos que indicam que faltam 2500 funcionários judiciais. Mas há ainda outro problema decisivo, que é o problema das custas judiciais para os particulares, que é um escândalo. Já pagamos impostos e taxas para tudo, e temos umas custas judiciais exorbitantes. No programa do Nós, Cidadãos está a diminuição severa, até à quase extinção, conforme os casos, das custas judiciais.
Custas essas que foram aumentadas há não muito tempo, para demover as pessoas de recorrerem aos tribunais, já carregados de processos.
Outro escândalo. Está a ver o que isso significa: para o senhor não ter uma constipação, vou cortar-lhe o nariz. Não pode ser assim e isso significa que o ministro das Finanças não está a ir buscar o dinheiro onde devia. E, aliás, outro ponto do nosso programa, sabemos onde se pode ir buscar dinheiro.
Onde?
Um dos sítios onde se pode ir buscar dinheiro é à negociação das PPP [parcerias público-privadas] rodoviárias, que está exigida por pessoas de todos os quadrantes, desde o antigo ministro do centro-direita Bagão Félix, até ao Dr. João Cravinho pai, ex-ministro do PS.
Temos uma posição que não é nem a do pessimismo passista, nem a do optimismo costista. E eles são assim porque só vivem para o presente, não pensam no futuro
A renegociação das PPP nunca será fácil e, menos ainda, rápida...
Não será fácil porque é uma intervenção feita, pelo menos, a três: governo, Assembleia da República e bancos, que são os tomadores das operações. É difícil, mas não é impossível. Há cláusulas leoninas que dão juros de 17% aos concessionários, inaceitáveis num momento em que os juros estão tão baixos ou quase nulos. E se foi possível a Agência das Gestão de Tesouraria e da Dívida Pública fazer a negociação da dívida pública portuguesa, um trabalho extraordinário - aliás, montado por um antigo aluno meu, o Dr. Vítor Bento, que fez o mestrado comigo na Católica - é porque temos cérebros para montar um sistema para renegociar as PPP. Temos uma posição que não é nem a do pessimismo passista, nem a do optimismo costista. E eles são assim porque só vivem para o presente, não pensam no futuro.
Isso supõe que os governos pensassem a dez anos, pelo menos, e que os partidos se entendessem sobre determinadas matérias.
Uma das nossas medidas é exatamente propor um pacto suprapartidário para estabilizar o número de ministérios - o das secretarias de Estado, não. Durante dez anos os partidos deviam acordar em que não se mexe no número de ministérios, porque são eles que projectam o futuro, as políticas estruturais. Nos anos 80, o Dr. Cavaco Silva aboliu os gabinetes de planeamento - que vinham da altura dos Planos de Fomento - em todos os ministérios, com a desculpa de que íamos para a União Europeia, não era preciso planeamento. Mas não eram precisos porquê? Porque passaram a existir os escritórios de advogados, aos quais passaram a ser pedidos pareceres de tudo e de mais alguma coisa, desde o Ministério da Defesa, onde estive como diretor, ao Ministério da Educação.
O Estado português perdeu o sentido do futuro, que ficou entregue a empresas de outsourcing e a consultores
Apesar de os ministérios terem lá juristas...
Postos na prateleira. Muitos deles com o chamado pontapé para o alto da prateleira: "Olhe, está aí, mas não faça nada, temos lá fora uns advogados", aqueles que dão voz, para fazer uns estudos. Foi um erro brutal. O Estado português perdeu o sentido do futuro, que ficou entregue a empresas de outsourcing e a consultores. Está completamente errado, somos completamente contra isto e a favor da valorização dos quadros da função pública.
Falou na falta de quadros, mas há também a questão da alocação de recursos humanos ou não?
Pode ter a certeza: ponto 13.7 do nosso programa eleitoral: "deve haver uma bolsa central de colocação dos funcionários do Estado". Porque há ótimos funcionários, mas se estivessem mobilizados, e podem passar até da administração local para a administração central. Estão ao serviço do Estado, e devia haver uma colocação central dos funcionários, sim, e não a tal arbítrio de cada ministério.
Como seria gerida essa bolsa central?
Haveria uma agência estatal para a colocação dos funcionários, isso também não seria novidade. Temos um estudo a mostrar que há um subaproveitamento de quadros de altíssima qualidade em Portugal. O problema não é diferente do português cá fora, que trabalha mal, tem uma produtividade baixíssima, 60% da média da União Europeia, e vai lá fora e trabalha bem. Explique-me porquê.
Há muitas empresas em que os funcionários podem até ser doutorados ou super, mas o patrão está só interessado em comprar um Ferrari, não está interessado em gerir bem
Como sou eu a entrevistadora, peço-lhe eu a explicação.
Eu explico. A primeira razão tem a ver com as más práticas do Estado português, o bloqueio, a "burocratite". A segunda razão tem a ver, de certo modo, com a má qualidade da gestão intermédia em Portugal: há muitas empresas em que os funcionários podem até ser doutorados ou super, mas o patrão está só interessado em comprar um Ferrari, não está interessado em gerir bem. Há muitos casos assim, a gestão não é boa - já para não falar daqueles grandes gestores, que goram considerados líderes da Europa, receberam comendas e depois vieram a revelar-se...
Umas encomendas.
Há um problema de gestão em Portugal. O terceiro grande problema tem a ver com a falta de cultura de esperança e de sentido cívico, as pessoas não se empenham: "Ah, isso não tem futuro", "ah, é para o dia-a-dia", e seguem o exemplo dos políticos profissionais, seguem a falta de futuro, não cultivam a consciência do bem, a coesão, o bem comum. Resumo, há um problema de Estado, estamos em todos os rankings de más práticas, há um problema de má gestão e, finalmente, há o problema da falta de confiança e de expectativa.
Afirmou que se pode ir buscar dinheiro a vários sítios. Não sei onde, mas sei que não houve investimento público - ou privado - nesta legislatura.
O problema do governo Passos, com o seu pessimismo, ou do governo Costa, com o seu optimismo é não aproveitar as vantagens competitivas de Portugal. Isso vê-se de muitas maneiras. Atraímos investimento, mas apenas os vistos gold, o imobiliário, o turismo. E o facto de Portugal ser o país mais central do mundo entre três continentes, ter os melhores portos atlânticos, como Sines, Setúbal, Lisboa ou Leixões, preparados para receber os navios post-Panamax? Mas não há interfaces de transporte dos portos portugueses para a Europa, qualquer dia a Autoeuropa vai-se embora, está a gemer todos os dias, todos os anos. Porquê? Porque não se faz a ferrovia que permitiria o transporte rápido das mercadorias. E porque não se aproveito o aeroporto de Beja?
Escreveu um livro sobre assunto: "O Erro da Ota", a propósito da localização do novo aeroporto.
Que, por acaso, agora foi abaixo. Existe o chamado lobby da Ota, em Alcochete, e existe o lobby da Ota, no Montijo. Beja será importante como hub de carga - tem duas pistas paralelas com três quilómetros de extensão, onde podem aterrar os maiores cargueiros do mundo, e não está no meio de um complexo urbano, os aviões podem andar 24 horas por dia. Beja não é passageiros, ao contrário do que alguns dizem. Sobre interface de transportes é isto. Depois, relativamente ao investimento, aproveitam-se pouco as vantagens competitivas de Portugal, quando não se insiste na agricultura biológica, na horticultura. Portugal tem um clima que permite, por exemplo, ter as primícias, somos o país que pode ter legumes mais cedo, o que significa que em Fevereiro podemos estar a exportar. Finalmente, os investimentos que resultam das patentes e da investigação científica em Portugal - Henrique Neto, da nossa comissão de honra, criou a indústria de moldes. São estes nomes que queremos trazer para o Nós, Cidadãos e que nos procuram e de que o país precisa, porque estão afastados de qualquer esquema agenciador de negócios de que os velhos partidos tentam libertar-se, mas que é difícil.
se viesse um observador de Marte e lhe pedissem para ver quatro canais e dizer qual deles é a televisão pública, tenho a certeza de que ele não saberia identificá-la
É professor universitário. Já falámos de diversos sectores, áreas, mas não falámos ainda da educação.
É a nossa quinta área. A educação não deve parar nunca, a aculturação também não e literacia científica também não. Dou-lhe o exemplo da televisão pública: se viesse um observador de Marte e lhe pedissem para ver quatro canais e dizer qual deles é a televisão pública, tenho a certeza de que ele não saberia identificá-la. Porque são todas iguais. Mas pode-se fazer diferente, veja a BBC. Podia pegar em jovens investigadores, jovens empreendedores e colocá-los em programa. Isso seria serviço público. Mas há medidas de ordem profissional e medidas de ordem conceptual. A primeira coisa que mudava era não mudar tanto. Porque há vício de estar permanentemente a mudar a legislação e a obrigar os professores do ensino básico e secundário a ser umas baratas tontas. Não se pode mudar de legislação como quem muda de camisa e é preciso valorizar a autonomia dos professores, que são adultos e sabem que se lhes derem capacidade, se lhes tirarem tarefas burocráticas completamente loucas de cima - agendas e atas - ficam libertos para o trabalho pedagógico. Do ponto e vista profissional é preciso criar condições e não perseguir professores que têm 25 anos sem vínculo permanente. Uma medida é: após três ou quatro anos de contratação sucessiva, um professor passa a ter vínculo permanente. Pensamos também que do ponto de vista da estabilidade e da confiança dos professores é possível adoptar soluções como a região autónoma da Madeira, para a reintegração integral dos 942. Aliás, escrevi uma carta a António Costa a dizer: 942 é o número de emergência da educação. Respondeu a agradecer e a dizer para enviar para o ministro da Educação. Essa restituição pode ser faseada e, segundo os números, custa cerca de 300 milhões de euros. Se há dinheiro para os juízes... Mas há outras áreas.
Por exemplo?
Por exemplo, os museus principais não estão abertos sete dias por semana, a pessoa chega lá à segunda-feira e está fechado. Isto é uma estupidez num país do turismo. Um museu não fecha, é um cartão de visita de uma cidade. Ou no desporto: somos um país de desportistas, mas a concentração excessiva nos negócios do futebol cria um problema às outras modalidades. Temos uma medida relativamente às SAD [sociedades anónimas desportivas], que recebem milhões pelos direitos de transmissão televisiva - ouvi falar em qualquer coisas como 400 milhões no caso do Sporting e 300 milhões no do Benfica. Exigimos que houvesse uma taxa de 5% sobre esses direitos de transmissão.
Os clubes pagam impostos sobre isso, ou não?
Está a dizer que os clubes são pobres?
Não, estou a fazer-lhe uma pergunta.
Os clubes têm uma obrigação de serviço social. E cumprem bem, mas pensamos que os devemos encorajar a cumprir mais, através de uma taxa sobe o direitos de transmissão televisivos, para criar um fundo de fomento das outras modalidades: basquete, hóquei, andebol, ginástica, etc. Há três anos o Sporting foi campeão em 64 modalidades das 65 modalidades.
É sportinguista?
Não, mas fiz o meu neto sócio, recomendado pelo sócio 1650 [José Roquette]. Mas é isto, educação, cultura e ciência ao longo da vida. São áreas muito importantes, para mim, que venho da cultura, da educação. Mas não é só uma questão pessoal, tem a ver com uma frase de que gosto muito: a cultura e a ciência são a questão do século XXI. O principal problema do aluno tem a ver com o isolamento criado pelo telemóvel, pelas redes sociais. O aluno, basicamente, é um digitador de telemóveis, hoje. Estão interessados na flexibilidade curricular, e Portugal está a ser pioneiro nisso.
Para terminar: foi diretor na Defesa. Como analisa hoje o caso Tancos e que comentários faz aos acontecimentos mais recentes?
O caso Tancos é grave e é importante, mas não pode ser usado como uma falsa bandeira, que é como se diz em linguagem militar quando se cria um alvo que para todos se distraírem. Nestas alturas há muitas vezes um empolamento de questões graves, mas que têm um sítio próprio para ser tratado, que são os tribunais. Em vez de as forças políticas se preocuparem com o destino imediato das pessoas, lutam entre si numa briga de galos. O Nós, Cidadãos não faz isso, é diferente.
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