“Há um policiamento da própria linguagem, daquilo que é uma linguagem metafórica, poética, que parece que é uma coisa tida para os escritores, uma coisa autorizada aos poetas e isso é terrível, porque retira das possibilidades de linguagem a criação de beleza, a beleza não só na própria linguagem, mas a linguagem é uma visão do mundo e, portanto, retira beleza ao mundo e, portanto, há um empobrecimento”, considerou Mia Couto.
O escritor moçambicano foi um dos convidados do Festival Literário Tinto no Branco, em Viseu, e, perante centenas de pessoas falou de si, da sua família e da sua escrita e, num diálogo aberto com Tito Couto, seu primo, acabou por lamentar o “empobrecimento que está a acontecer na língua” a propósito do desejo do PAN de alterar os provérbios que incluam animais numa conotação negativa.
Entre uma ou outra brincadeira com alteração de provérbios, Mia Couto disse que tinha de aproveitar “e matar já todos os coelhos, com uma só cajadada, antes que depois não seja possível” e lamentou que “se empobreça a língua ainda antes de ser dita, com os policiamentos no pensamento”.
“Há uma interdição daquilo que se chama um pensamento socialmente ou politicamente incorreto e a gente não sabe bem o que é isso e isso é uma enorme limitação, uma espécie de amputação daquilo que seria mesmo um direito de pensar errado, um direito de evitarmos isto que é um lado puritano, uma certa invasão do lado puritano, do lado que tenta purificar o mundo”, disse mais tarde à agência Lusa.
Neste sentido, “e para dar o nome aos bois”, acrescentou que “o problema é que isso nasceu nos Estados Unidos da América, e isso já é a emergência do peso desse lado puritano, desse lado de um certo cristianismo evangélico que procura de novo purificar o mundo”.
“Acontece é que é uma cultura que se exporta, que domina e que rapidamente se instala como a cultura moderna e que desconhece que há outras culturas e que há outras maneiras de ver o mundo e que essas maneiras de ver o mundo se todas se subordinarem este mundo fica muito chato, sem graça nenhuma”, defendeu.
Neste sentido, o escritor moçambicano lembrou à agência Lusa o poeta brasileiro Manuel de Barros que dizia que “fazer poesia é errar bonito” e, também por isso, Mia Couto defendeu que ler poesia às crianças será uma das formas de as retirar do “policiamento à obediência da gramática, da regra, do falar correto, que não dá erros”.
“Se reter aquilo que é revisitar a linga para além dos limites, para além da norma e ter a ousadia de dar erros. Fazer poesia é errar bonito então esse errar é criar beleza e errar implica sempre uma subversão, implica sempre uma ousadia, implica um erro”, disse.
Mia Couto disse que a escola “tem de cumprir o lado disciplinador, tem de ensinar a norma, a regra” mas, depois, “falta ensinar o prazer de desrespeitar a regra, falta ensinar essa indisciplina da alma, que falava Fernando Pessoa, que só essa possibilidade de culminar a disciplina e indisciplina como os dois lados da mesma moeda é que permite que a criança perceba, que pode haver um enorme prazer, um jogo infinito” no errar e na poesia.
“Uma das razões que eu sou feliz é que eu tenho em coisas tão próximas, como falar, como escrever, como estar com os outros a possibilidade de fazer o jogo, combinações infinitas”, disse.
Mia Couto falou à agência Lusa a importância que Fernando Pessoa teve quando viveu “os dramas existenciais aos 14 anos”, porque “os dramas existenciais que resultam disso, de uma certa maneira reducionista de ver o mundo, em que se tem que ter só uma identidade”
“Fernando Pessoa dizia de uma forma que eu entendia que cada um de nós é uma multidão e isso não é um problema, não é uma falta de saúde, e eu aceitei ser múltiplo por via desta terapia que foi a poesia”, explicou.
E a poesia, no entender do escritor moçambicano, “já vem com as crianças, elas vêm com esse infinito de poesia, elas têm essa carga, porque ainda têm disponível um outro olhar sobre o mundo, um olhar mais mágico, mais encantado”.
“Mas, isso depois é amputado, é disciplinado de uma maneira que hoje me parece bastante grave”, apontou sem querer responsabilizar os adultos, uma vez que, no seu entender, todos “são culpados e vítimas”.
Mia Couto contou um episódio com o neto mais velho, quando avistou uma cobra disse ao avô que “era um animal com um pescoço muito grande” e, neste sentido, o escritor disse que “seria terrível se o tivesse corrigido a dizer que era uma cobra ou uma serpente” uma vez que as crianças “têm a sua visão” do mundo.
“Faz-nos falta esse lado da infância dentro de nós, acho que deixámos de saber falar com as crianças e temos uma maneira muito reduzida de manter uma conversa que não passa só daquelas perguntas meio estúpidas: de que escola és? E em que ano andas? Como te chamas? E o que queres ser quando fores grande como se eles já não fossem, como se essa criança já não fosse alguém”, alertou.
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